Onde Morre a Coragem

1005 Words
POV Aurora A febre passou dois dias depois, mas deixou uma coisa no lugar: o vazio. Não era só o corpo que doía. Era como se eu tivesse perdido algo dentro de mim que nunca mais ia voltar. Tipo uma cor. Um som. Um pedaço da alma. Mamãe não perguntou se eu estava melhor, nem olhava direito pra mim. Papai me ignorou como sempre, também eu não existia pra ele. Helena? Fingiu que nada tinha acontecido. Ela fazia isso muito bem — fingir. Ou seja, estou invisível como sempre. Quer saber, eu ainda tentava ser reconhecido, mesmo depois de todo esse tratamento deles? Mas agora, eu também estava aprendendo. Fiquei em silêncio o dia todo. Só observando. Helena rindo com nossos pais, contando histórias da escola, as mesmas coisas de como ela foi amável com alguma colega da escola, como ajudou um professor, contou daquela maneira teatral que só eu conseguia ver. Sempre brilhando, sempre perfeita, sempre melhor em tudo. Eu olhava de longe, comendo devagar, mastigando em câmera lenta. Como se pudesse engolir junto toda a raiva que eu não podia mostrar. Às vezes, eu achava que a qualquer momento eu podia explodir. Mas explodir não me ajudava em nada. Eles só se afastam mais. Chamam de escândalo, birra, inveja da irmã, de ingratidão, de tudo, menos daquilo que eu desesperadamente queria pelo menos um pouquinho, acolhimento de mãe e pai. Então aprendi a ferver por dentro. A me virar sozinha, e a segurar e aguentar tudo que precisa. Sem vazar, sem transbordar ou transparecer. --- POV Aurora No fim da tarde, fui ao quintal, queria sair um pouco de dentro de casa. O galpão ainda estava lá, mas parecia mais triste, mais frio. Vazio. Sem Estrelinha. Só silêncio e poeira. Sem aquele calor e aconchego que tive por maravilhosos dois dias. Me sentei no chão, de costas pra porta, abraçando os joelhos com o queixo apoiado. A madeira do chão estava fria e áspera, pra mim mais que o normal. Fechei os olhos e imaginei um lugar onde eu pudesse correr sem medo, onde ninguém gritasse comigo, onde os cachorros não fossem levados embora, onde eu fosse amada e desejada pra ficar. Um lugar onde eu fosse... só eu. Sem ter que pedir permissão pra existir. Felicidade era o nome que eu queria sentir. Mas minha cabeça voltou à realidade com um estalo: passos. Os mesmos passos que reconheceria aquele som em qualquer lugar. Helena. — Você ficou com febre por causa do cachorro ou da ferida do seu braço? — ela disse, da porta. Abri os olhos. Não olhei pra ela. — Eu não sei, talvez dos dois, não sei direito. — Foi sua culpa e você sabe, não é? — Eu sei, não precisa me dizer isso de novo. — Mas ele não devia ter ido embora, acho que devia ter ficado um pouco mais — ela continuou. A voz dela tinha um tom estranho, quase... pensativo, meio suspeito vindo de uma pessoa teatral como ela. Me virei devagar. — Você deixou ele ir? — eu só queria confirmar minhas suspeitas. Ela desviou os olhos. Silêncio. O que já confirmava minhas suspeitas, era resposta que eu queria. — Ele não ia servir pra nada, nem tava vacina, ele podia ter pulgas — murmurou. — Só te deixava... mais... é... sensível demais. Sensível demais. Era isso que eu era pra ela? Um problema emocional? Mais um nome para minha lista. Talvez fosse mesmo. Mas alguma coisa em mim se endureceu ali. Como uma rachadura no concreto que, um dia, vira ruína. Estava cansada, realmente cansada. — Um dia você vai quebrar, Helena — falei, baixinho, mais pra mim do que pra ela. E eu vou rir da sua cara, rir bem alto. Ela riu. — Eu? Nunca. Eu não tenho esse tipo de sentimento, não são coisas que eu possa sentir. Eu sou rica e todos me adoram, é disso que eu preciso. Alisou seu cabelo que estava perfeitamente arrumado e depois se virou e foi embora. Dei um leve sorriso de satisfação. Naquela noite, sonhei que estava num lugar branco demais, com paredes sem janelas. Um hospital, talvez. Eu corria por corredores sem fim, procurando algo que nunca tinha visto. Mas eu sabia que era meu, não sei como, mas já sabia. Um pedaço meu que estava faltando. Quando acordei, estava com o travesseiro molhado. Chuva? Não. Lágrimas, aquelas que tentei segurar e esconder, mas teimaram em sair sem autorização. Mais uma vez. Na escola, as coisas pioraram e o bullying só aumentou. Helena começou a espalhar que eu tinha levado pulgas pra casa, por causa de um cachorro de rua. Que eu era “a menina sujinha”, meu apelido da vez. Alguns colegas riram. Outros só se afastaram, sabiam que iam sofre se ficassem perto de mim, ninguém queria sofrer como eu. A professora me olhou de um jeito estranho no recreio, mas não disse nada, outra que estava só querendo se proteger com medo dos meus pais, quer dizer dos pais dela. E eu? Baixei os olhos. Aguentei calada, mais uma vez. De novo. Porque a coragem, às vezes, não morre de uma vez. Ela morre aos poucos, sufocada por silêncios forçados. Na volta pra casa, no banco de trás do carro, eu repeti uma frase na cabeça como se fosse um feitiço: “Não é pra sempre. Não é pra sempre. Não é pra sempre.” Não sabia de onde tinha vindo. Talvez de um sonho, talvez de dentro. Mas soava como verdade. Naquela noite, escondida embaixo do cobertor, desenhei no caderno um lugar. Um lugar só meu. Com árvores grandes, uma varanda de madeira, e um cachorro dormindo aos meus pés. Era um lugar onde ninguém gritava. Onde ninguém mentia. Onde eu não precisava ter medo da minha irmã. Fechei o caderno com cuidado. E sussurrei só pra mim: — Eu ainda vou sair daqui. Pode demorar. Pode doer. Mas um dia, eles vão me ver indo embora. E quando olharem... Vai ser tarde demais.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD