Onde Nascem as Promessas

1000 Words
POV Aurora – 8 anos Acordei com o som do riso deles. Quer dizer… gargalhadas. Risos altos, quentes, misturados ao barulho de talheres batendo, copos sendo servidos, cadeiras raspando no chão. O som da felicidade — só que infelizmente, essa felicidade não era a minha. Por um segundo, tive vontade de levantar e sair correndo e descer as escadas saltitando. Quis acreditar que, talvez naquele dia, teria um lugar à mesa, seria um dia diferente. Que alguém ali olharia pra mim e diria: “Bom dia, Aurora. Dormiu bem? Como você está se sentindo hoje? Preparei um café da manhã delicioso, vamos, senti-se que você vai se sentir melhor depois de comer.” Mas eu sabia que não. Naquela casa, esperança era só mais uma forma diferente de se machucar, situações que só me confirmavam. Então fiquei sentada na cama, cobertor nos ombros, com os olhos em meus pés balançando pro lado de fora. O chão estava gelado. O tipo de frio que não vem do inverno — vem do que falta. Ouvi a voz doce da minha mãe ecoando lá de baixo: — Helena, querida, passa o suco de laranja para o seu pai. E a dele respondeu logo em seguida, satisfeito: — Minha menina. Sempre tão educada. Você é meu único orgulho, minha preciosa. Criamos você muito bem. Fechei os olhos. Era o mesmo teatro de sempre. Um ritual ensaiado, onde todos tinham um papel — menos eu. A excluída. Me vesti devagar. A camisa da escola estava curta, e o zíper da mochila quebrado. Mamãe tinha prometido comprar outra, mas promessas, na minha casa, eram como o vento: só serviam pra fazer barulho, nada mais. Quando desci as escadas, os risos morreram. Como se eu tivesse apagado a luz só com a minha presença, era como se eu tivesse sugado toda a felicidade deles, deixando um clima de tristeza. Mamãe me lançou um olhar frio. Papai desviou o olhar rapidamente e virou a página do jornal. Helena sorriu — aquele sorriso treinado, perfeito, que só eu sabia que era mentira, ótima atriz. Sentei à mesa. Peguei uma fatia de pão. Sem manteiga. Frio. Como sempre. Nenhuma novidade pra mim. — Você podia ser mais apresentável, olha só sua aparência, porque não se arruma como Helena? — murmurou mamãe, sem me encarar. — E menos sonsa e feia — completou Helena, mexendo o suco com a ponta do canudo e o sorriso A voz dela era um veneno disfarçado de mel. Não sei por que, mas só eu conseguia ver, toda aquela encenação. Não respondi. Aprendi que às vezes o silêncio é o único escudo que tenho. Mas, dentro de mim, uma frase ecoava baixinho: “Não é pra sempre.” “Não é pra sempre.” --- Mais tarde na escola, a professora me chamou no fim da aula. O cheiro de giz e papel me envolvia, e pela primeira vez no dia alguém disse meu nome com doçura. — Aurora, querida, está tudo bem em casa? Pisquei devagar, na verdade, estava tentando entender. Ela olhava pra mim com preocupação, mas havia algo nos olhos dela… medo. Medo de ouvir a verdade. — Tá sim, professora, claro que está. — Tem certeza? — insistiu ela, com a voz quase num sussurro. E então aconteceu. A primeira mentira que eu contei com calma. A primeira vez que percebi que fingir doía menos do que explicar. — Tá tudo ótimo. Por que não estaria? Ela sorriu, aliviada, e eu também sorri — por fora, tentei fazer o mesmo sorriso teatral de Helena. Por dentro, senti um aperto. Mas, estranhamente, também uma faísca de poder. Se mentir me protegia, talvez eu pudesse aprender a sobreviver. --- POV Aurora Naquela tarde, voltei do colégio sozinha. Helena foi na frente com uma colega. Elas riam de algo que eu nunca entenderia — e nem queria, não fazia questão de participar da conversa delas. O sol já estava baixo, o céu meio dourado, meio triste. Foi quando vi uma senhora sentada na frente de uma casa simples, com um cachorro no colo. Um vira-lata velho, com pelos marrons escuros e as patas brancas, com as orelhas caídas e olhos castanhos remelentos, combinando com sua pelugem. Ela me olhou e sorriu. Um sorriso de verdade. — Quer fazer um carinho? Ele é mansinho, não se preocupe. Me abaixei devagar e toquei o focinho dele. Era quente. Vivo. Diferente do toque de qualquer pessoa da minha casa. — Qual o nome dele? — perguntei. — Promessa — ela disse. — Porque quando ele chegou, eu prometi que nunca mais ia deixar ninguém machucar ele. Meu peito apertou. Os olhos arderam. Mas eu não chorei. Eu tinha que aprender a não parecer fraca, chorar seria minha última opção. Só levantei, agradeci, e segui andando com aquele nome queimando na memória. Promessa. --- POV Aurora À noite, desenhei Promessa no meu caderno. Não foi um desenho perfeito, mas pra mim estava maravilhoso. Modéstia a parte eu sabia desenhar muito bem, sempre gostei de desenhar e só fui evoluindo. Os traços tremiam, mas o olhar do cachorro ficou firme. Debaixo do desenho, escrevi devagar, com letra trêmula: “Um dia, eu também vou me prometer. Nunca mais vou deixar que me quebrem por dentro.” Fechei o caderno. Apaguei a luz. Deitei e fiquei olhando o teto até o sono me vencer. E pela primeira vez, sonhei comigo mesma. Mas era uma versão diferente. Mais velha. Tinha olhos duros, cicatriz no rosto e um sorriso que eu ainda não sabia ter — o sorriso de quem sobreviveu. No sonho, ela se aproximou, ajoelhou-se diante de mim e disse: — Você ainda não sabe, mas já começou a sair daqui, não se preocupe, tudo vai se resolver. Acordei com o coração disparado, o quarto ainda mergulhado na penumbra. Por um instante, achei que ela estava certa. Porque alguma coisa em mim — uma coisa pequena, silenciosa — tinha mudado. Não era força ainda. Era só o começo dela. ---
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