capitulo 02

1235 Words
HELENA NARRANDO: A primeira coisa que senti foi a luz. Clara demais. Crua demais. Abri os olhos com dificuldade, como se minhas pálpebras pesassem toneladas. Um teto branco se revelou acima de mim, e um zumbido baixo preencheu meus ouvidos. O cheiro me atingiu em seguida: desinfetante. Hospital. Tentei mover a cabeça para o lado, mas uma pontada forte atravessou minhas têmporas, me obrigando a fechar os olhos de novo. O ar parecia denso, pesado, quase sufocante. Meu corpo estava estranho… pesado, dolorido. Quando me arrisquei a sentar, um ardor agudo no meio das minhas pernas me fez soltar um gemido baixo, involuntário. Meu estômago se revirou. Algo estava errado. Muito errado. Olhei em volta, tentando entender onde estava. Um quarto simples, paredes brancas, um armário baixo, um monitor cardíaco desligado ao lado da cama. Pela porta entreaberta, pude ver um corredor. E, do lado de fora, meus pais conversando com um médico. Eles falavam baixo, mas a expressão do meu pai era carregada, e a da minha mãe… distante. Tentei puxar da memória a última coisa que lembrava. Festa. Cobertura da Camila. Música alta. Um copo na minha mão. E depois… nada. Um vazio preto. Meu coração acelerou. A porta se abriu. Meus pais entraram no quarto, e o médico permaneceu do lado de fora, fazendo anotações em uma prancheta. — O que… o que aconteceu? — minha voz saiu fraca, rouca. — Por que eu vim parar aqui? Meu pai não respondeu de imediato. Apenas enfiou a mão no bolso, tirou o celular e jogou o aparelho sobre a cama, com um movimento brusco. O impacto fez o colchão afundar e o som seco ecoar no quarto. — Olha isso — disse ele, com a voz dura. A tela acendeu. E então, o inferno se abriu diante de mim. A imagem tremida mostrava três rostos que eu conhecia muito bem, colegas de sala da faculdade. Eles estavam na escada de incêndio. E eu… eu estava ali também. Bêbada. Inconsciente. Sendo tocada. Sendo violada. Senti o ar sumir. Levei a mão à boca, como se pudesse impedir que o choro escapasse, mas foi inútil. As lágrimas vieram de qualquer jeito, quentes, cortantes. — Meu Deus… — sussurrei, sentindo o corpo inteiro tremer. — Não… não pode ser… Meu pai se aproximou, o rosto duro, os olhos gelados. — Você vai ficar de boca fechada. Entendeu? Levantei o olhar, incrédula. — O quê? — Você não vai falar um “a” dessa porcaria pra ninguém. Se abrir a boca, vai manchar o nome da nossa família. Engoli seco, sentindo o estômago embrulhar. — Eles… eles precisam pagar pelo que fizeram. A polícia… Ele riu. Uma risada curta, fria. — Polícia? — repetiu, com desprezo. — Ninguém vai saber disso. Olha pra você, Helena. Olha a sua roupa. Bêbada, igual a uma vagabunda. Senti como se cada palavra fosse uma lâmina afiada rasgando minha pele. Virei o rosto para minha mãe, buscando algum sinal de apoio, de humanidade. Mas ela apenas permaneceu calada, os braços cruzados, o olhar fixo em algum ponto do chão. O silêncio dela doeu mais do que qualquer grito. O médico entrou, quebrando o clima sufocante. — Senhorita Helena, você já pode ir para casa. Recomendo repouso e hidratação nos próximos dias. Assenti, sem forças para responder. O trajeto de volta foi silencioso. Meus pais à frente, e eu atrás, olhando pela janela do carro sem realmente enxergar nada. Quando chegamos, subi direto para o meu quarto. Fechei a porta, tirei os sapatos e me joguei na cama. O peso do mundo parecia ter se instalado sobre o meu peito. E então chorei. Chorei até a garganta queimar, até meus olhos arderem, até não sobrar mais nada dentro de mim além de um vazio gelado. Eu sabia, naquele momento, que algo dentro de mim havia quebrado. E não tinha conserto. Três dias. Foram três dias trancada no meu quarto, com as cortinas fechadas e o mundo inteiro do lado de fora. Não comi nada. Não quis ver ninguém. O som mais constante era o da minha própria respiração entrecortada, misturado aos soluços que eu já nem conseguia controlar. O travesseiro estava encharcado, e minha garganta queimava de tanto chorar. Às vezes eu ficava apenas encarando o teto, imóvel, tentando não pensar. Mas era inútil. As imagens vinham mesmo assim, como facas, e o nojo que eu sentia de mim mesma era sufocante. Eu não queria falar, não queria me mover, não queria existir. A porta foi aberta com um estrondo, quebrando o silêncio. Meu pai entrou sem bater, com passos pesados, a expressão irritada. — Chega dessa frescura — ele disse, a voz seca como gelo. — Você vai voltar pra faculdade. Levantei os olhos para ele, a visão turva de lágrimas. — Eu não posso… — minha voz saiu baixa, mas carregada de desespero. — Eu não consigo… — Consegue sim — ele cortou, com frieza. — Você tem uma hora pra estar pronta. Ou vai desse jeiito mesmo. — Eu não… — tentei argumentar, mas minha voz se perdeu no choro. Ele se aproximou da porta e a bateu com força antes de sair, deixando o eco da madeira preenchendo o quarto. Fiquei ali, abraçada aos joelhos, tremendo. Cada músculo do meu corpo implorava para ficar, mas a ameaça dele ecoava na minha cabeça. Eu sabia que, se não obedecesse, ele me arrastaria até lá sem se importar com nada. Levantei contra a minha vontade, cada movimento pesado como chumbo. Fui até o banheiro, lavei o rosto na tentativa inútil de esconder os olhos vermelhos e inchados. Coloquei uma calça jeans, uma camisa larga e prendi o cabelo num coque baixo. Quando desci, Gael já me esperava na porta, com a chave do carro na mão. Ele me olhou de relance, mas não disse nada. Sempre foi discreto. Sempre soube quando não devia fazer perguntas. O caminho até a faculdade pareceu mais longo que o normal. A cada esquina, meu estômago revirava mais. Senti o gosto amargo de bile na boca, mas forcei a engolir. Chegamos. Olhei para o relógio: já estava atrasada. Atravessei o corredor de cabeça baixa, tentando ignorar os olhares. Abri a porta da sala no meio da explicação do professor. Ele parou por um segundo, apenas para me acompanhar com os olhos, e depois continuou a falar. Fui até o fundo e me sentei. Não peguei caderno, não abri o notebook. Só fiquei ali, imóvel, com as mãos entrelaçadas no colo, encarando um ponto fixo na parede. As palavras do professor eram apenas ruído distante. Quando a aula acabou, eu ainda estava naquele estado de transe, até sentir alguém se aproximando. O perfume doce denunciou antes da voz. — Helena? — Camila parou ao meu lado, inclinando-se um pouco. — Está tudo bem? Levantei o rosto devagar, sentindo as lágrimas começarem a subir outra vez. — Você sabe que nada está bem — minha voz tremeu, mas saiu firme o suficiente. — Você sabe o que aqueles três fizeram comigo. Ela piscou, surpresa, como se não esperasse a acusação. — Eu… não sei do que você está falando… Senti uma mistura de raiva e dor ferver dentro de mim. — Não se finge de sonsa, Camila. O silêncio entre nós pesou. Ela desviou o olhar, mordendo o lábio inferior, como se procurasse uma resposta que não viesse. E, naquele momento, eu soube que ela sabia.
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