CAPÍTULO 6

1179 Words
A sala cheirava a mofo, cimento molhado e tensão. Era uma antiga ala da prefeitura abandonada, adaptada para servir como “espaço neutro”. A ideia de neutralidade era uma piada. Não havia nada neutro quando se colocava membros das quatro facções no mesmo cômodo, ainda mais quando todos estavam armados — mesmo que discretamente. O lugar era silencioso. O tipo de silêncio carregado que antecede uma explosão. Ailin me mandou como representante dos Filhos de Lilith. Claro que ela me escolheu. Eu era o cão. A lâmina. A sombra. E eu odiava reuniões. Queria era um pescoço para cortar. Fui a primeira a chegar. A sala era grande, quadrada, com paredes de concreto nu. Havia uma mesa no centro — retangular, de ferro enferrujado — e três cadeiras. Sim, três. Os chefes não estariam ali. Apenas os executores. Os coringas, como Jack disse. Me encostei na parede oposta à porta, braços cruzados, olhos fixos no nada. Vinte minutos de silêncio e reflexões nada amigáveis depois, ouvi os passos. — Alguém chegou cedo demais ou tem gosto estranho por lugares decadentes. — A voz era carregada de sarcasmo e cansaço. Um pouco rouca. Masculina. Jovem. Ian. Revirei os olhos antes mesmo de vê-lo. Ele entrou como se o lugar fosse dele. Camisa escura de linho, parcialmente desabotoada, câmera pendurada no pescoço e um olhar de quem não dormia há três dias — e não dava a mínima. — Ray, certo? — disse ele, com um meio sorriso. Aqueles malditos olhos âmbar pareciam zombar da vida. — Você é mais feio do que falam. — respondi sem emoção. — Você é mais simpática do que imaginei. — ele rebateu, caminhando até a cadeira do meio e se sentando com um suspiro. — Adoro esses encontros estilo guerra fria. Sinto que faltam charutos e uma roleta russa. — Pena que você não trouxe uma arma pra facilitar a parte da roleta. Eu atiraria. Ian riu. Um riso suave, mas cheio de amargura. — Por isso te escolheram, né? Você respira ameaça. — Não. Eu respiro realidade. Você, por outro lado, parece cheirar negação. Antes que ele respondesse, a porta se abriu outra vez. E então, entrou ele. Cam. Alto, ombros largos, olhos castanhos intensos, roupas simples, nada de ostentação. Mas havia algo em sua presença que… desequilibrava. Ele não parecia estar em um território de guerra. Parecia estar em paz. Como se fosse impossível odiá-lo. — Boa tarde. — disse, a voz grave, mas surpreendentemente gentil. Quase educada demais. — Ah, o filhote de lobo chegou. — Ian comentou. Cam não reagiu. Apenas caminhou até a cadeira mais próxima e se sentou. Olhou para mim primeiro — sério, mas sem julgamento — depois para Ian, e então fixou os olhos na mesa. — Vamos ser rápidos. Cada território está sofrendo com a droga. Cada facção tem orgulho demais pra admitir que não tem controle total. E todos nós estamos lidando com o mesmo nome: Corvo. — Você já conhece o nome? — perguntei. — Meu território tem dois corpos no necrotério por causa dele. Isso é pessoal. A maneira como ele falou aquilo… não era arrogância. Era comprometimento. Honra. Quase irritante. — Ótimo — Ian disse, apoiando os cotovelos na mesa. — Temos um moralista. Uma psicopata. E um ex-viciado. Parece o começo de uma piada r**m. — Só falta o palhaço. — rebati. — Eu já tô aqui, Ray. — Ian respondeu sem hesitar, lançando-me um olhar preguiçoso, porém afiado. — Aceita. Cam respirou fundo. — Não temos tempo pra brigas internas. Essa droga tá se espalhando rápido. Não é mais uma questão de orgulho. É sobrevivência. Silêncio. Eu o observei. Cam falava como se tivesse crescido treinado pra mediar conflitos. Mas havia algo nos olhos dele... Algo contido. Como dinamite esperando o estopim certo. Ian, por outro lado, era um enigma desagradável. Não confiava nele. Seu histórico com drogas era o tipo de coisa que me dava ânsia. Mas... ele olhava para as coisas como se visse além do que estava na superfície. Como se, apesar do vício, ainda estivesse tentando entender o mundo. Isso me irritava mais ainda. — Temos rotas conhecidas? — Ian perguntou. — Algumas. — Cam respondeu. — No norte, os traficantes se movem durante festas de rua. No sul, estão usando PUBs e boates. O padrão é o mesmo: multidões, pouca segurança, e camadas de proteção entre o mandante e os entregadores. — Estão testando nossos limites — murmurei. — Vendo quem reage primeiro. Quem perde o controle. — Ailin mandou uma mensagem clara — continuei. — Ela quer respostas. E se não as tivermos, vai dar o recado da maneira dela. — O que significa? — Banhos de sangue. Ian coçou o queixo, pensativo. — E os Serpentes? Ninguém vai falar sobre eles? Cam assentiu devagar. — O nome Corvo circulava com os Serpentes antes. Mas segundo meus contatos, ele foi expulso há anos. Vinha tentando montar o próprio cartel fora do controle dos líderes. Talvez esteja usando os territórios pra vingar isso. — Ou talvez... esteja a serviço de alguém. — eu acrescentei, lembrando do rosto do meu pai. Cam me olhou. Pela primeira vez, o olhar dele hesitou. Ele percebeu. Algo na minha expressão. Algo que dizia: eu conheço essa dor. Ian percebeu também. — Esse caso é pessoal pra você, né? — E pra você não é? — retruquei. Ele ergueu as sobrancelhas. — Claro que é. Perdi amigos por causa dessa merda. E perdi a mim mesmo antes disso. Fiquei calada. Cam então tirou um papel do bolso. Um esboço. — Esse símbolo foi encontrado numa das embalagens de DreamFire. — disse, abrindo e jogando no centro da mesa. Era o desenho de uma carta de baralho. Um coringa com metade do rosto queimado. — Simbólico. — murmurou Ian. — Uma carta que pode valer qualquer coisa… ou nada. Tudo depende da mão que joga. Me aproximei do desenho. Minhas mãos se fecharam em punhos. — Essa carta não é só simbólica. É uma assinatura. — Concordo — disse Cam. — E é por isso que essa reunião precisa virar uma missão. Uma equipe. Ian ergueu o rosto. — Você quer mesmo que nós três trabalhemos juntos? — É isso ou observar os corpos empilharem. — Eu prefiro os corpos empilharem. — murmurei, me afastando. — Eu também. — Ian respondeu, já se levantando. — Mas, infelizmente, meu salário depende da sobrevivência da facção. E das câmeras. Sempre das câmeras. Cam nos observava com olhos tristes. Ele era o único ali que realmente acreditava que algo bom poderia sair disso. i****a bonito. — Então é isso? — perguntou. — Vamos tentar? Ficamos em silêncio. Eu e Ian nos entreolhamos. Nenhuma palavra. Apenas ódio disfarçado de tolerância. Finalmente, assenti com um leve movimento de cabeça. — Três coringas. Uma cidade. Um inimigo. Ian sorriu. Cam também. E pela primeira vez… algo mudou no ar. Como se a cidade soubesse que uma nova partida tinha começado. E nós éramos as peças que ninguém esperava que funcionassem juntas.
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