6. Julia

1038 Words
— Dona Marlene, se a senhora não parar de comer banana antes de medir a glicose, eu vou ter que esconder as frutas da cozinha. — Que é isso, doutora, vai tirar minha única alegria da vida? — respondeu de boca cheia, sem vergonha nenhuma, mascando a banana com a calma de quem não se abala. As meninas que estavam no corredor ouviram e caíram na gargalhada, se dobrando contra a parede. — Eu nem sou médica, dona Marlene — respondi, rindo junto — mas posso muito bem pedir pra Vera cortar sua sobremesa de vez. — Ela que tente! — retrucou com firmeza, apontando o dedo como se estivesse lançando um desafio. — Quem manda aqui sou eu! E assim seguia a manhã, no posto improvisado dentro do núcleo: rápida, barulhenta, cheia de gente falando ao mesmo tempo. Um pedia informação, outro queria desabafar, outro vinha só atrás de um café preto e de uns cinco minutos de atenção. O espaço parecia pequeno demais pra tanta energia. As horas passavam e eu já nem percebia. As meninas da equipe - Marcele, Gabi e Rita, entravam e saíam feito formiga, às vezes rindo de alguma piada interna, às vezes bufando com fichas de atendimento que nunca terminavam. A impressora dava piti de hora em hora, cuspindo papel torto e travando como se tivesse vontade própria. O ventilador velho girava mais barulho do que vento, espalhando um calor abafado que grudava na pele. Mas, ainda assim, eu estava em paz. Mais do que isso: eu gostava daquela bagunça desorganizada que parecia, de algum jeito, me acolher. Foi então que Gabi apareceu na porta, com a cara mais cínica do mundo. — Júlia, tem um senhor lá fora dizendo que é seu noivo. Levantei os olhos de repente, o coração dando um pulo. — O quê?! — Brincadeira! — ela gritou antes que eu pudesse reagir, gargalhando alto, com gosto. — Tá vendo como tua cara muda? — Você é um problema, Gabi. — E você tá diferente. — Lá vem… — cruzei os braços, já sabendo que vinha provocação. — Tá rindo à toa, andando leve… até tua bronca na dona Marlene foi de mansinho. Transou, né? — ela disparou, sem a menor cerimônia. Do outro lado da divisória, as meninas explodiram em gargalhadas. Revirei os olhos, tentando bancar a séria. — Vocês são impossíveis. — Não n**a! — Gabi gritou mais uma vez. — Tô vendo daqui o brilho, fia. Cuidado, que a gente do morro repara. Sacudi a cabeça, disfarçando o sorriso, mas era inútil. Porque sim, elas estavam certas. Eu estava diferente. Estava leve. Estava solta. E mesmo que elas não soubessem o motivo, eu sabia muito bem. Quase meio-dia, a sala finalmente esvaziou. Foi quando Vera apareceu na porta, com a bolsa pendurada no ombro e os óculos balançando na gola da camisa florida. — Almoço? — perguntou, já no tom de quem decide. Todas levantaram na hora, quase em fila. — Vamos no PF da Lúcia — anunciou. — Hoje é feijoada. — Tô dentro. — Marcele pegou a bolsa sem pensar duas vezes. — Mas se eu dormir de tarde, já sabem o motivo. — Dormir nada. — Vera avisou, firme. — Depois do almoço tem entrega de cesta básica. Quero todo mundo na ativa. Saímos juntas, descendo a escadaria. O calor escorria pelo morro como se o sol tivesse se grudado ao concreto e decidido não arredar pé. As meninas iam na frente, falantes, trocando fofocas sobre vizinhos, rindo de um cantor novo, comentando sobre a foto suspeita no status de algum ex. Eu seguia mais quieta, no meio de Vera e Gabi. A Vera caminhava com aquele jeito seguro, como quem conhece cada canto, cada sombra, cada pessoa que cruzava. Às vezes cumprimentava alguém com a mão, às vezes só lançava um olhar discreto, mas todos a reconheciam. Era respeitada, querida, mas também temida. Uma figura que não cabia em rótulo fácil. De repente, ela virou o rosto na minha direção. — Você tá gostando de estar aqui, né? — Muito. Mais do que achei que ia gostar. — respondi sem pensar, com um sorriso que me escapou. — Você se adaptou bem. O pessoal gosta de você. — Eu gosto deles também. Ela assentiu devagar, como se fosse acrescentar algo, mas não falou. Continuou andando. E eu fiquei com aquela dúvida latejando: o quanto Vera realmente via? O quanto percebia em mim? Mas deixei pra lá. O restaurante da Lúcia era pequeno, abafado, com cheiro de comida caseira transbordando até a calçada. O arroz borbulhava no fogo, a gordura da feijoada enchia o ar, e a fila se espalhava pra fora. Entramos juntas e conseguimos uma mesa de madeira comprida. Sentamos espremidas, dividindo espaço, rindo da fome antes mesmo de a comida chegar. A feijoada veio fumegante, preta e carregada, acompanhada de farofa dourada e laranjas cortadas em gomos suculentos. — Isso aqui é vida! — Rita atacou como se não comesse há três dias. — Eu daria tudo pra dormir depois disso. — Marcele murmurou, já com a boca cheia, o garfo indo e voltando sem descanso. — Dá pra ver que a vida de vocês é só sacrifício — provoquei, rindo. Vera me olhou por cima do copo de suco, os olhos semicerrados. — Você ri mais agora. — E isso é r**m? — Pelo contrário. Só não sei se é o morro… ou outra coisa. Dei de ombros, fingindo indiferença, mas o calor subiu no rosto. — Talvez os dois. Ela soltou um riso curto, mas não insistiu. Foi só uma frase deixada no ar. Uma daquelas que ninguém comenta, mas todo mundo escuta e guarda em silêncio. Depois do almoço, voltamos devagar até o núcleo. O sol pesava, as meninas reclamavam da barriga cheia, da tarde que ainda prometia trabalho duro. As vozes da rua se misturavam aos barulhos dos becos, aos cheiros de comida frita, aos gritos de criança. A vida pulsava em todos os cantos. E eu, ali no meio delas, me sentia… parte. Com o gosto da feijoada ainda na boca, o riso leve na garganta e o eco da noite passada grudado na pele. E talvez fosse esse o começo da confusão.
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