“Suas palavras eram como um analgésico, me acalmavam, mas não curavam a ferida profunda.”
Helena
Os gritos desesperados da mãe me tiram do sono, saio da cama com tanta pressa que caio no chão porque meus pés ficaram presos nos cobertores; após me recuperar do golpe, subo correndo as escadas até o quarto dos meus pais, onde acontece uma cena de cortar o coração.
— Meu bebê, cadê meu bebê! - O choro da mãe é tão cheio de dor que me atravessa a alma, trazendo lágrimas aos meus olhos - Fernando, nosso bebê.
— Eu sei, Maia, eu sei. - Papai a pega nos braços na tentativa de acalmar seus soluços.
Enquanto isso, encosto-me na parede oposta à porta e abaixo-me até ficar sentada no chão, quero chegar mais perto, colocar o outro ombro na mãe e ser seu apoio e conforto. No entanto, não posso, não quando sou a culpada pela sua dor.
— Se eu tivesse escutado, nada disso teria acontecido...
— Traga meu filho para casa, tire-a daqui, ela é má, não merece estar aqui. Tire-a daqui, Fernando, por favor. - Ela continua implorando ao meu pai.
— Nossa filha é boa, Maia. Você não sabe o que está dizendo.
Coloco a mão na boca para silenciar o soluço que quer escapar de mim. Ela quer me trocar pelo filho que perdeu, ela me odeia o suficiente para pedir minha morte. Em que momento tudo isso aconteceu? Eu sei a resposta para isso, foi há cinco anos; ainda assim, eu esperava que houvesse um lampejo de amor por mim.
Acho que eu estava errado.
Com o coração batendo incontrolavelmente, eu me levanto do chão e caminho até o quintal, mas esbarro no meu irmão antes de chegar à porta.
— Helena... - Ele chama, sua voz cheia de pena.
— Não, não diga nada.
— Ela não quis dizer isso, tenta justificar.
— Carlos, ela quis dizer isso cada palavra, irmão e não importo o que você, papai ou o psicólogo digam, ela nunca vai me perdoar, como ela poderia depois do que eu fiz? Nem eu me perdoei.
— Helena...
Ignoro seu chamado enquanto passo por ele a caminho do pátio. Uma vez lá fora, deixo o ar frio da noite acariciar minha pele, as lágrimas fluem mais livremente agora que estou sozinha. Com o rosto erguido para o céu, choro pelo dano que causei a esta família, choro pelo irmão que perdi, pela minha mãe que vive na escuridão, pelo meu pai que luta para nos sustentar e pelo meu irmão que finge que nada aconteceu.
Costumávamos ter cinco anos, até que uma tragédia nos levou. Apesar de todo esse tempo, a memória continua lenta.
— Venham aqui, vermes. Sou Kevin, meu irmão de dez anos na época.
— Você vai ter que me pegar, Lena! - Ele grita enquanto corre sem roupas pelo quarto.
Cruzo os braços fingindo estar falando sério, mas é o suficiente para ele correr por aí para me fazer rir. Eu o persigo com as roupas nas mãos, mas ele foge feito um louco, se recusando a se vestir.
— A mamãe vai ficar brava se te encontrar nu, Kevin. - Eu tento chantageá-lo.
— Vista-se antes que ela chegue. Deixe estar, por favor - você tem que fazer tudo o que eu quero, Lena!
— Isso não funciona comigo, garoto. - Ponho a língua para fora -Se você se vestir, eu te levo para tomar um sorvete grande.
Se você não pode lutar contra seus inimigos, junte-se a eles.
— É um acordo, Lena.
Ele pega as roupas da minha mão e corre para o quarto para se vestir. Pego minha bolsa, verifico se minha carteira tem dinheiro e espero meu irmão mais novo voltar.
Sua chegada foi uma surpresa para mamãe e papai, mas isso não faz com que o amemos menos. Kevin é a luz do nosso dia.
— Pronto? - pergunto quando o vejo voltando.
— Sim, eu quero um sorvete gigante, Helena.
— O que o bebê quiser.
— Não me chame de bebê, eu sou um homem! - Ele responde em um tom indignado.
— Homens usam roupas, Kevin!
— Bem, talvez não.
Brincamos o resto do caminho até chegarmos ao parque, nos aproximamos da barraca de sorvete e pedimos um de chocolate e um de baunilha para ele. Sentamos em um banco e não demora muito para que ele esteja com o rosto sujo da substância açucarada.
— O que você quer ser quando crescer, irmã mais velha? - Ele pergunta após alguns minutos de silêncio.
— Eu quero cozinhar, preparar sobremesas de derreter corações. - Respondo de brincadeira - E você?
— Isso seria ótimo. Eu compraria todos para você, é por isso que quero ser milionária, para ter dinheiro para suas sobremesas.
— Você certamente vai conseguir.
Terminamos de comer o sorvete, limpamos o rosto com os lenços que carrego na minha super bolsa e seguimos para casa. Kevin está pulando alguns passos na minha frente, mas eu o chamo quando nos aproximamos da faixa de pedestres.
— Eu vou tomar cuidado, Lena diz em um tom cansado.
— Se você cair, a mamãe vai ficar chateada.
— Eu não vou cair...
A frase fica no ar porque cai bem na beirada da calçada. Corro para pegá-lo, mas quando chego, ele já está se levantando e limpando suas roupas.
— Eu disse para você não correr, Kevin! - ele grita, tomado pelo medo do que poderia ter acontecido.
— Estou bem, não aconteceu nada. - Ele dá de ombros como se nada fosse, minimizando que quase caiu na estrada.
— Você é insensível, e eu estou preocupado com você. Não vou te convidar para tomar sorvete de novo, Kevin.
Ele abre a boca para responder, mas tudo acontece rápido demais. Um ciclista perde o controle da bicicleta, me empurrando para a estrada. Estendo a mão com a intenção de agarrar algo, mas não há nada. Para minha surpresa, Kevin puxa meu corpo, mas vira o dele e acaba sendo quem cai na estrada.
Grito de terror quando um carro levanta seu corpo, gira no ar algumas vezes antes de cair no chão, o som é tão chocante que estremeço, tenho certeza de que nunca vou esquecer.
— Não, não, não. - n**o repetidamente enquanto corro em sua direção - Kevin. Reclamo seu nome sem obter resposta. - Alguém chame uma ambulância!- grito para as pessoas que começam a nos cercar.
— Senhorita, não se mova. - diz alguém se aproximando de nós. — Sou médico, vou examiná-la para obter assistência.
— Por favor, ele é meu irmãozinho, por favor - imploro, ele sabe o que quero dizer. Ele não dorme.
Afasto-me para dar espaço a ele, mas fico perto para verificar se ele não o machucou mais. O estranho começa a verificar seu corpo com movimentos suaves, mas firmes. Quando ele passa as mãos sobre o tronco do meu irmão, ele tosse sangue; o olhar do homem colide com o meu e não há esperança em seus olhos.
— Não! Eu grito, como se ele fosse o culpado. Ele vai ficar bem, ele tem que ficar bem.
Eu me aproximo novamente e gentilmente seguro o rosto do meu irmãozinho, sorrio quando seus olhos abrem um pouco e se concentram em mim.
— Lena, eu sussurro, eu te amo, irmã mais velha.
— Eu te amo mais, você está tomada - Tudo vai ficar bem, nós iremos para o hospital e você vai se recuperar - eu prometo.
— E você vai me dar sorvete, ele diz.
— Vou te dar todo o sorvete do mundo, juro.
Os paramédicos chegam, estabilizam você da melhor forma possível e te colocam na maca. Eles me deixam ir com eles e, durante todo o trajeto, continuo implorando ao universo para salvá-lo, para não deixar que nada aconteça com ele em vista das nossas vidas. Assim que chegamos, eles o levam para o pronto-socorro e o conectam às máquinas.
Eles me negam a admissão, mas consigo escapar quando eles se confundem. Eles tiram a camisa dele e limpam o peito, que está cheio de caroços que logo vão ganhar um tom roxo. Eles examinam uma das pernas dele, que a essa altura percebo que está em uma posição estranha e quebrada. Coloco a mão na boca para não fazer barulho quando os vejo cortá-la na lateral, na altura das costelas, e inserir um tubo que drena o sangue.
Os minutos parecem horas enquanto trabalham nele; se estão participando é porque ele vai se recuperar, certo? E como se fosse uma piada r**m do destino, as máquinas começam a fazer sons que alarmam a equipe médica. Elas correm de um lado para o outro, cercando meu irmão a ponto de eu só conseguir ver uma de suas pernas. Em um momento, um dos médicos sobe em cima dele e começa a reanimá-lo.
— Não, por favor, não.
— Kevin - como se minha voz fosse trazê-lo de volta, mas não traz.
— Hora da morte...
— Não! - entro na sala antes de terminar aquelas palavras - “Continue tentando, ele não pode morrer. Não deixe meu irmão morrer.”
— Lena - diz alguém atrás de mim.
— Ele está vivo! - Fico ao lado da maca e gentilmente seguro sua mão, com medo de machucá-lo. - Abra os olhos, ocupada. Prometo que haverá bastante sorvete para você.- os segundos passam e ele continua ali, inerte na maca - Kevin, por favor. Não me deixe, abra seus lindos olhos para mim.
Nada, nem um único movimento.
— Senhorita?
— Ele é meu irmãozinho! Ele me salvou! - Você tem que deixá-lo ir? Eles não podem me pedir isso, eu não posso perder...
— Hora da morte, 4:30 da tarde.
— Kevin, por favor - estou me afogando em lágrimas enquanto continuo dizendo o nome dele repetidamente.