A coisa que mais odeio

1669 Words
Na manhã seguinte, acordo com as trombetas tocando, um anúncio e um aviso de que todos devem se levantar imediatamente. Pulo da cama e visto minha roupa de treino. Um conjunto de moletom, preto e largo – que não pode e nem deve marcar minhas curvas, já que, nas palavras do Grande Mestre, não podemos copular, somos soldados e a escória. Nascemos para servir e não somos ninguém. Motivacional né? Amarro os cadarços da bota preta e desço para comer. July ainda está dormindo. Hmmm. Que se f**a. Que leve chicotadas para acordar, eu não me importo. Enquanto passo pelo corredor, as pessoas vão abrindo espaço para mim, m*l olho em seus rostos, e ninguém é corajoso o bastante para me encarar. Eu sou a c****a do Grande Mestre. O nome dele é Ryan. Um nome de bosta para uma pessoa mais ainda. Eu sou designada para as missões mais importantes e raramente falho. Raramente? A quem estou tentando enganar? Eu nunca falho. Entro no salão e sou recebida pelo cheiro de mingau, pão, frutas e de cervo. Me sento em uma mesa ainda vazia – e que nunca tem mais do que as quatro pessoas que eu tolero, e uma das moças da cozinha traz meu café. Exatamente aquilo que farejei: mingau, pão, frutas e cervo. Sorrio para ela e agradeço gentilmente o favor. São as únicas que realmente gosto e tem meu raro e sincero sorriso. Para estar aqui, só há duas opções: 1- Você foi vendido como e*****o, é órfão, ou foi abandonado. 2- Ou você se voluntaria. Quem não tem serventia para ser soldado se enquadra no que eles chamam de ajudantes. Entre eles, estão os cozinheiros, aqueles que cuidam da limpeza da cozinha, dos quartos, banheiros, limpeza de estábulo – no caso dos homens, pátios, ou que trabalhem em todos os serviços que rodeiam isso. Resumindo: somos todos escravos. Não sei como perceberam alguma força em mim quando cheguei aqui. Que bom que sim, senão eu arremessaria a bandeja na cara desses folgados que agem com superioridade – pessoas que não podem escolher a própria vestimenta, e acabaria enforcada. Uma vez guardião, sempre guardião. As pessoas não são realocadas depois de categorizadas. Temos alguma notoriedade fora daqui, somos vistos como os grandes guerreiros do rei, mas ainda assim não passamos de escravos. Não podemos constituir família, nem nos relacionar... Não que eu queira alguma dessas coisas, mas gostaria de ter o direito de escolha. - Oi rabugenta – diz Rob. Um daqueles que eu suporto. - Oi raio de sol – devolvo com a voz afetada. Ele franze as sobrancelhas. - Por que seu cabelo está solto? Passo a mão involuntariamente sobre meus cabelos só para encontrá-los firmemente presos em um coque baixo. Rob morre de rir da minha reação. Não posso culpá-lo. Mostro a língua para ele. Mas realmente não me lembro de ter prendido meu cabelo antes de sair do quarto. Todos somos obrigados a cortá-los de acordo com as regras do regimento. Nós mulheres por exemplo, os cortamos um pouco abaixo dos ombros e retos, fáceis de prender. Nunca maior, nunca menor. Também seguindo o padrão já pré-estabelecido pelos Mestres do Rei, Rob tem seus cabelos louros em um corte baixo, raspado dos lados. Por isso eu odeio aqueles que se voluntariam. Quem em sã consciência iria querer isso? Em contraste com o cabelo de Rob, os meus cabelos são pretos como nanquim, assim como meus olhos. É impossível ver a pupila. Acho que me confere a aparência de implacável, e filha do d***o, como me chamam pelas costas. Como se eu não soubesse. Não que digam isso na minha frente. Mas July adora me contar. O rapaz à minha frente, devora o café da manhã, idêntico ao meu, Rob gosta de homens, o que torna a vida dele mais difícil do que o normal, já que sua tentação dorme sob o mesmo teto. E por isso e só por isso, eu quase gosto dele. Já ouviram aquela expressão: o que os olhos não veem o coração não sente? Os olhos de Rob veem até demais, e esse é o problema. - Erin – me viro em direção da voz. - Você vai sair em missão hoje, se apronte – que novidade... - Sim senhor – digo ao Grande Mestre. Que apenas me olha de cima a baixo e vai em direção à sua mesa. Seu olhar parece me despir. E toda vez que vejo esse homem, tenho vontade enfiar minhas unhas em seus olhos. Unhas que não posso deixar crescer – a instituição não permite. Engulo meu mingau e uns pedaços de carne, Sara e Cam aparecem a essa altura, mas nada de July. Hehehe, deve estar dormindo ainda. - Rob, você sai em missão comigo hoje. Sara e Cam me lançam olhares de súplica, doidos – como qualquer ser em sã consciência, para sair desse lugar. Mas minha decisão foi tomada. E a coisa que mais odeio é ser questionada. Odeio ainda mais do que a submissão. Levanto e vou vestir minha armadura. Nada de treino hoje, então. §§ Fomos mandados para a floresta de da Floresta da Água. Eu amo e odeio esse lugar. Amo porque a paisagem é exuberante, acho que não existe nada que se compare a floresta das águas. Há rios e riachos para todos os lados, vegetações rasteiras e azuladas se espalham por todo o terreno, pequenas árvores que batem, no máximo, em meu ombro e uma variedade arbustos que chegam até minha cintura. Tenho um metro e setenta. Não entendo por que alguém se esconderia aqui. Há peixes, anfíbios e uma infinidade cobras. Quase todos venenosos, então, quase nada de alimentos. Não há cavernas e é quase impossível fazer fogo, nuvens de chuvas passam de um lado a outro pelo território, a cada quinze minutos. E é por isso que odeio esse lugar: é impossível se sentir seca. Ou seja: sem comida, sem fogo e sem abrigo. Por que uma bruxa se esconderia aqui? A não ser que seja uma que tenha afinidade com esse elemento. Mas para sobreviver aqui, teria que ter um poder considerável, e não acredito que uma bruxa desse porte possa ser encontrada aqui. Na verdade, não sei se ainda existem bruxas fortes assim. - Encontrei uma pegada – diz Rob. Entediada e um pouco incomodada de ter sido tirada dos meus devaneios, vou analisar a “pegada”. Inflo as narinas e o olho com raiva. - Essa pegada é sua Robert, por favor, não me faça perder tempo. Ele encolhe os ombros e tem a decência de parecer se sentir culpado. E com um pouco de medo. - Desculpa Erin, eu não me lembro de ter passado por aqui. Pisco para clarear a mente e olho em volta. Sim, nós passamos por aqui. E como eu deixei Rob liderar o caminho, nos perdemos do rio principal, que corta toda a da Floresta da Água. E serve de bússola para não se perder nesse lugar. Não posso nem ficar com raiva, já que fui eu que me esqueci de que ele tem um senso de direção ridículo. Mas eu estava perdida em pensamentos. Farejo o ar para tentar me situar. Nada do cheiro das árvores frutíferas da Floresta de da Floresta da Terra. A floresta que estamos é na extremidade oposta à de fogo, então é mais gelada e úmida. Se a vegetação estiver mais esverdeada do que azulada, significa que estamos nos aproximando do Leste, que infelizmente, não é o caso, já que quase posso ver os galhos acinzentados de Zéfiro. Se a bruxa entrou lá... Teremos um pequeno problema. Não viemos preparados para o frio da Floresta do Ar, nem com sapatos apropriados, com garras para fincar no chão para o caso de sermos pegos por um vento mais agressivo. Não, nem ela seria doida o suficiente para se enfiar lá, com certeza foi pro Leste, mas já que estamos aqui, vou checar o córrego mais próximo antes de dar meia volta. Rob conseguiu me irritar o suficiente para que eu desista de procrastinar. Vou olhando em volta, atenta a todo e qualquer movimento. Antes de me aproximar da água, percebo que tem algo errado. O cheiro de peixe podre invade meus sentidos de tal maneira que fico tonta e automaticamente enjoada. Cinco passos à frente e posso avistar pedaços de peixe espalhados por toda a extensão à beira do pequeno rio, ela deve estar tentando disfarçar seu cheiro, porque os peixes estão apenas estripados, com parte alguma faltando. Então a nossa linda bruxa não é burra e provavelmente conhece a área. Já que pelas faixas vermelhas percebo que essa espécie de peixe é extremamente venenosa. Como eu suspeitava, a bruxa deve ser poderosa e dominar um desses elementos – água ou ar, se não os dois. Já que sabe que poderia ser identificada pelo cheiro. Mesmo por humanos. Rob mantém uma distância segura de mim e do córrego, o cheiro de seu medo preenche o ar. - Cadê você bruxinha... Que seja eu a encontrá-la. A ansiedade e a adrenalina começam a aquecer as minhas veias. Meu coração ribomba no peito, mas não encontro nada. Caminho lentamente até a água e vejo pequenas sereias nadando por ali. Coloco a mão em minha espada, para me certificar de que ela está ali e me sentir segura. Eu só confio em minhas habilidades e nessa espada, que nunca falhou comigo. Me agacho para testar a água e as sereinhas se aproximam para pegar minha mão. Seus dedinhos gelados têm garras que cortam mais do que se pode imaginar com essa delicadeza disfarçada. Elas são predadoras, e se as criaturas do rio não mexem com elas... Mas elas nada fazem a mim. Pelo contrário, uma, que não deve ser maior que meu braço, me encara com olhos violeta grandes demais para seu rosto delicado e aponta de forma sutil para minha esquerda. Quando eu olho, tenho um segundo antes de ver os olhos azuis cobalto brilhantes.
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