A bruxa salta da água para cima de mim com uma força impressionante.
Caímos no chão em um baque s***o.
Enquanto rolamos pela margem, posso finalmente sentir seu cheiro: menta, algas marinhas e pinha.
Ela é uma dez.
Que pelo cheiro, provavelmente domina a água e o ar.
Não pode ser coincidência eu ter encontrado duas bruxas poderosas em menos de um dia.
A Dez teve uma pequena vantagem quando pulou em cima de mim me pegando desprevenida. Uma vantagem que não a deixarei aproveitar.
Dou um chute em seu estômago e rolo para cima dela, seus braços estão magros e fracos, m*l deveria ter força para fazer nada.
Mas a adrenalina lhe dá forças e m*l consigo contê-la enquanto se debate e grunhe feito um animal selvagem.
Dou um soco em sua têmpora, o que parece desconcertá-la por um momento, estico o braço para puxar a espada, mas ela agarra meu pescoço e começa a chacoalhá-lo enquanto faz força.
E dói pra c*****o.
E me irrita também. Pra c*****o.
Puxo seus braços com uma força exagerada, e isso parece machucá-la, prendo-os embaixo dos meus joelhos e dou um berro na cara dela.
Que para de se debater apenas para dar uma cabeçada na minha testa.
Minha visão escurece e acabo rolando de lado, o que é bom, já que desembainho minha espada.
Tenho que admitir, o esforço é válido.
Quando ela avança novamente sobre mim com unhas e dentes, cravo minha lâmina em sua barriga.
Quando seu olhar encontra o meu, há reconhecimento e algo a mais neles.
Algo que me recuso a interpretar.
- Sou Aria – diz ela com a voz fraca e rouca.
E é tudo que consegue pronunciar antes de virar cinzas.
§§
Tenho pesadelos com olhos cor de cobalto e essa única frase por semanas.
O que me deixa mais m*l-humorada do que já sou normalmente.
O que é muito. Tipo, muito mesmo.
Treinei 10x mais até estar exausta o suficiente para apenas me jogar na cama e apagar na mesma hora.
Queria que o cansaço fosse o suficiente para me ajudar a não ter sonhos, mas não é.
O que é uma d***a.
Por que ela foi me dizer que seu nome era Aria?
É tão mais interessante m***r desconhecidos.
Mais interessante ou mais fácil? Eis a questão.
Sou acordada pelo que me parece a milésima vez em que Aria diz com a voz baixa e rouca o seu nome para mim, com seus grandes olhos azuis grudados nos meus, em uma súplica silenciosa.
Sua voz sumindo enquanto era mandada para longe...
Me levanto de supetão.
O dia não clareou ainda e estou de saco cheio de me lamuriar, não posso sentir culpa pelo resto da vida, se eu não fizesse, alguém faria. Melhor que seja eu.
Simples assim.
Coloco uma blusa e saio rapidamente do quarto.
Enquanto caminho pelo complexo, vejo que já há Ajudantes acordados, arrumando as coisas para quando o Grande Mestre e os Soldados despertarem.
Saio para tomar ar fresco.
A brisa da manhã serve bem para esse propósito.
Após minutos andando, avisto a masmorra.
Somos proibidos de ir até lá.
Olho em volta para checar se há alguém por perto. Como não há, deixo a curiosidade me vencer e caminho naquela direção.
O que pode acontecer se eu for vista aqui?
Não sei.
É só não ser vista então.
Não há ninguém vigiando torre sinistra e impotente quando me aproximo dela. O monumento é feito de pedras grossas e parecem suportar muito bem o que quer que haja lá dentro.
Sinto calafrios só de pensar em entrar nesse lugar. Parece impossível de sair.
E quem se aproximaria daqui?
A masmorra exala morte.
De repente, sinto um pânico ridículo de ser pega aqui. Mas a adrenalina faz com que eu coloque minhas pernas em movimento e logo espreito para dentro do complexo.
No térreo, não há nada, nada além de correntes com punhais espalhados e um banco.
Acho que é o banco do vigia.
Um vigia ausente.
O interior é silencioso.
Silencioso demais.
Subo a escada lateral, no topo, dá para uma porta.
Colo meu ouvido nela apenas para escutar um grito de agonia.
Um grito que possivelmente sangraria meus ouvidos, não fosse pela porta o abafando. Abro uma fresta, só para ver o Grande Mestre arrancando lascas da pele de uma mulher.
Que por trás de todo sangue, suor e lágrimas, identifico um leve cheiro de lírio e verbena. Uma de ar então. Talvez uma nove, mas é quase impossível identificar sua essência. Seus olhos violeta focam mim enquanto berra, e meu estômago já embrulhado, parece ficar do tamanho de um arroz.
Quero ajudá-la, quero berrar para que o Grande Mestre pare com aquilo.
Mas eu não faço isso.
Não posso.
Não ainda.
Pela pequena fresta, não consigo ver a totalidade do espaço, mas tenho um vislumbre de diversas celas, lotadas de bruxas amarradas pelo braço acima da cabeça. Algumas com membros faltando, outras desmaiadas pela dor ou exaustão.
Eu não sei.
- Se aproxime querida – diz a voz de Ryan.
Meu sangue congela e sinto minha pressão batendo nos pés.
Ele me pegou.
Quase fecho a porta e saio correndo.
O que me impede é ver July soltando uma faca menor que a de Ryan – também ensanguentada, e se aproximar com a confiança de uma pessoa que só pode estar familiarizada com o ambiente.
Agora é a vez do meu queixo cair.
- Posso tentar? – pergunta ela.
Mal posso acreditar no que estou vendo.
Ryan entrega a faca que está usando para abrir talhos nas costas da bruxa para July, que repete os movimentos anteriores do Grande Mestre como se o fizesse desde sempre.
São os mesmo cabelos louros, os mesmos olhos azuis da menina que divide o quarto comigo, e mesmo assim, me recuso a acreditar.
- A sua parte do acordo está para ser concluída – Ryan fala com a cabeça voltada em sua direção.
Não posso ver suas feições, mas consigo visualizar cabelos grisalhos que combinam com o cavanhaque que ele mantém.
Eles parecem conhecer bem um ao outro. Como se fossem... Amigos.
- Sim – ela responde. – E então o Rei cumprirá a dele.
O Rei?
- De fato – diz Ryan. – E nosso Rei costuma manter sua palavra.
- Suponho que sim.
O Grande Mestre a analisa.
- Você não é nobre só pelo sangue July, você merece ser o que se tornará, e é por isso que o rei insistiu tanto para que fosse lapidada.
Ela estufa o peito diante do elogio.
Essa pequena frase diz mais sobre July do que eu soube durante toda a minha vida. Primeiro: ela é filha de nobres e está aqui voluntariamente. Segundo: ela se reporta ao Rei.
A pessoa que eu mais odeio no mundo todo.
E ela poderá sair daqui.
- A cerimônia de iniciação é em dois dias – diz July.
A cerimônia de iniciação define as patentes dos soldados. De forma definitiva.
É um grande evento e muitos acordos são feitos nesse dia.
- De fato – repete ele.
Já fiquei tempo demais aqui, preciso me afastar, começo a fechar a porta lentamente...
- Mas você ainda não é a melhor do acampamento – estagno onde estou. – Você terá que vencer a Erin no dia da cerimônia.
- Sei disso – July responde entredentes. – Ela é forte demais, rápida demais, inteligente demais. Não consigo encontrar pontos fracos, e os venho buscando a longos, dez anos.
É a vez do Grande Mestre estufar o peito. Um treinador feliz por ter treinado bem demais seu bichinho.
- De fato, July, de fato. Erin é meu maior tesouro.
Os dois continuam conversando com naturalidade. Como se pessoas não estivessem sendo torturadas e brutalizadas.
Já sei, bruxas não são pessoas.
Mas quem disse isso? O sofrimento em seus rostos é o suficiente para ver que são em parte humanas, que tem sentimentos, dores e amarguras como qualquer um.
Deixo a masmorra com mais ódio do que eu já tinha dentro de mim.
Se é que isso é possível.
Está na hora de mostrar para que vim.