Não dormi aquela noite.
A raiva me queimava por dentro, o medo tentava se esconder atrás dela, e o nome dele — Leonardo Valença — repetia na minha cabeça como uma maldição.
O relógio marcava seis e meia da manhã quando desci pra cozinha. Minha mãe estava sentada, pálida, com os olhos vermelhos. Meu pai nem apareceu.
A comida na mesa parecia um enfeite inútil.
— Ele vai voltar hoje — ela disse, num fio de voz.
— E eu não quero estar aqui quando isso acontecer.
Ela segurou minha mão. — Ele não é homem de brincadeiras, Isabella.
— E você acha que eu vou aceitar ser trocada como se fosse um cheque?
As lágrimas dela foram a resposta.
O desespero estampado no rosto da minha mãe me fez entender que aquilo era real.
Fui até o quarto, peguei uma mochila e comecei a jogar roupas dentro. Não tinha destino, mas tinha certeza de que precisava sair dali.
Quando coloquei a mão na maçaneta da porta, ouvi passos firmes.
A voz dele ecoou como aço.
— Vai a algum lugar, senhora Monteiro?
Virei devagar.
Leonardo Valença estava ali — de terno preto, camisa branca aberta no colarinho, relógio caro no pulso e aquele olhar frio que me atravessava como faca.
— Não tem o direito de entrar aqui.
— Tenho todos os direitos do mundo sobre o homem que me deve milhões.
— Meu pai pode pagar de outra forma.
— Já pagou — respondeu ele. — Com você.
Soltei a mochila e avancei um passo. — Isso é sequestro.
— É um contrato — corrigiu. — E um acordo de perdão.
— O senhor é repugnante.
— Ou prático. Depende do ponto de vista.
Ele andou pela sala, observando cada detalhe, como se estivesse analisando uma propriedade que acabou de comprar.
— Linda casa. Uma pena que esteja hipotecada.
Senti o sangue ferver. — O senhor já destruiu o suficiente.
— Ainda não. — O olhar dele voltou pra mim. — Só termina quando o seu nome estiver no mesmo documento que o meu.
— O senhor tem noção do que está fazendo?
— Absoluta. — Um meio sorriso cruzou os lábios dele. — Estou me casando com a filha do homem que tentou me enganar.
— O senhor é frio demais.
— É o que o mundo exige.
A calma dele era o que mais me irritava. Nenhum arrependimento, nenhuma hesitação. Só certeza.
Meu pai apareceu no topo da escada, abatido, envergonhado.
— Senhor Valença…
Leonardo ergueu uma mão, cortando o ar. — Sem discursos. Já dei tempo demais.
— Eu preciso de mais um dia.
— E eu preciso de uma garantia. — Ele me olhou novamente. — Ela ainda não deu o sim.
O silêncio foi cortante.
— Eu nunca vou me casar com você — declarei, cada palavra cuspida como veneno.
Ele inclinou a cabeça, como se estudasse minha reação.
— Nunca é muito tempo.
— Não existe nada que o senhor possa fazer pra me forçar.
— Engano seu. — Ele enfiou a mão no bolso e tirou um envelope. — Mandado de prisão. Assinado.
Meu pai empalideceu.
— Não... por favor, senhor Valença, não faça isso.
— Então convença sua filha. — A voz dele era gélida. — Tem até o meio-dia.
Ele saiu, deixando o papel sobre a mesa e um silêncio que parecia gritar.
Subi correndo pro quarto e bati a porta.
As lágrimas finalmente vieram, quentes, incontroláveis.
Como alguém podia ser tão c***l?
Eu nem o conhecia, e ele já havia acabado com tudo.
Fechei os olhos e respirei fundo. Eu não podia ceder. Não podia me deixar dobrar por um homem como ele.
Mas quando olhei pra baixo, vi meu pai ajoelhado no corredor, implorando.
— Filha, por favor... não deixa que me levem.
Meu coração se despedaçou.
— Pai, o senhor me vendeu!
— Eu errei! Mas juro que não queria que chegasse a isso.
— Então por que não deixa ele te prender?
Ele chorava. — Porque não quero morrer na cadeia.
Deus… era como se o mundo inteiro estivesse contra mim.
Às onze e quarenta e cinco, o som de pneus no asfalto anunciou o que eu mais temia.
Leonardo havia voltado.
Abriu a porta sem bater, como se já fosse dono de tudo.
— Já tomou sua decisão?
Cruzei os braços. — A minha decisão é não aceitar essa loucura.
— Então ele vai preso. — Pegou o telefone e começou a discar. — Delegado Cordeiro, o mandado pode ser executado.
— Espere! — gritei. — O senhor não pode fazer isso!
Ele travou o olhar em mim. — Posso, e vou.
— Por quê? — As lágrimas escorriam, mas eu não me importava. — O que o senhor ganha com isso?
— Justiça.
— Isso não é justiça, é vingança!
— São sinônimos no meu mundo.
Ele baixou o telefone e se aproximou, devagar.
— Eu te avisei que tinha uma escolha. Está desperdiçando.
— O senhor é um covarde.
— Um covarde não oferece acordos. Ele destrói sem aviso.
— E o senhor está me dando um aviso?
— Estou te dando uma chance.
As palavras saíram carregadas de ironia, mas os olhos dele... havia algo mais ali.
Não piedade — mas um tipo estranho de fascínio.
Ele estendeu a mão, como se esperasse que eu aceitasse o inevitável.
— Diga sim, e tudo termina.
Por um instante, me vi tentada a ceder só pra acabar com aquilo. Mas a raiva me manteve firme.
— Eu não sou uma moeda de troca.
— É exatamente o que é. — A voz dele baixou, rouca. — Um preço que ele precisa pagar.
— O senhor é um monstro.
— Já ouvi isso antes. — O sorriso frio apareceu de novo. — E sabe o que é pior? Sempre é dito por alguém que, um dia, acaba se rendendo.
Senti o coração disparar.
— Eu nunca vou me render a você.
— Nunca é uma palavra perigosa, Isabella.
Ele se aproximou ainda mais. O perfume dele — amadeirado, marcante — me cercou.
— Se me odiar te ajuda a sobreviver, odeie. Mas não tente me desafiar.
— E por que não?
— Porque sempre venço.
À tarde, ele marcou presença como se a casa fosse dele. Andava, falava com os seguranças, dava ordens. Minha mãe apenas observava, tentando não chorar.
Quando o relógio marcou onze da noite, ele reapareceu, sem terno, apenas com a camisa aberta no colarinho.
— Ainda acordada?
— Estou tentando entender como um homem dorme depois de destruir uma família.
Ele parou diante da janela. — Eu não destruo famílias. Eu cobro consequências.
— É isso que diz pra se sentir menos c***l?
— É isso que digo pra me lembrar de quem sou.
Houve um silêncio pesado. Pela primeira vez, notei que ele parecia cansado, mas o controle ainda estava ali, intacto.
— O senhor não sente nada, não é?
— Sinto. — Virou-se lentamente. — Nojo de mentiras.
— Então devia sentir nojo de si mesmo.
Ele riu. — Tente algo novo, Isabella. Suas provocações estão previsíveis.
— E as suas ameaças estão patéticas.
Por um segundo, os olhos dele brilharam, perigosos.
— Cuidado com o que diz.
— Vai me prender também?
Ele deu um passo à frente. — Eu poderia fazer pior.
— Como o quê? — desafiei.
O silêncio entre nós ficou denso. Ele me olhou de cima a baixo, sem pressa, com um olhar que misturava raiva e desejo.
— Você não quer saber a resposta.
O calor subiu pelo corpo.
Era ódio, era medo, era algo que eu não conseguia controlar.
Ele se aproximou mais um pouco, e eu senti o ar sumir.
— Amanhã às nove — disse, firme. — Estaremos no cartório. Vista algo branco.
— Eu não vou.
— Vai.
— O senhor não pode me obrigar.
— Posso fazer o seu pai implorar de novo.
Fechei os olhos. Era demais.
— Eu vou acabar com você — murmurei. — Um dia, eu vou fazer você pagar por tudo.
— m*l posso esperar pra ver. — Ele virou as costas e caminhou até a porta. — Boa noite, futura senhora Valença.
A porta se fechou, e a raiva me consumiu.
Joguei o copo na parede, o som do vidro quebrando ecoou pela sala.
Meu corpo tremia, meu coração parecia um tambor.
Odiá-lo era fácil. O difícil era lidar com o efeito que ele causava em mim.
Aquela presença… dominava o ar, o espaço, até os meus pensamentos.
Subi pro quarto e me sentei na cama. O luar entrava pela janela, banhando o quarto de um branco frio.
Olhei para as próprias mãos e fiz uma promessa.
Se ele acha que vai me possuir, vai descobrir que o preço de me ter é mais alto do que qualquer dívida que meu pai criou.
E se esse casamento acontecer, não será um contrato.
Será uma guerra.