A Moeda de Troca

1304 Words
O sol nasceu sem pedir licença, como se não soubesse o que estava prestes a acontecer. Eu abri os olhos e, por um segundo, esqueci. Por um segundo, achei que era um dia qualquer. Mas então ouvi minha mãe chorando no corredor. E lembrei. Hoje era o dia em que eu deixaria de ser eu. Sentei na cama, abracei os joelhos e fiquei olhando pro vestido branco pendurado na porta. Um vestido simples, escolhido por ela, não por mim. Nenhuma mulher sonha em se casar assim: com medo, raiva e vergonha. — Filha... — A voz da minha mãe veio fraca, enquanto ela entrava. Ela trazia uma xícara de café nas mãos trêmulas. — Você precisa comer algo. Balancei a cabeça. — Não consigo. Ela se sentou na beirada da cama e segurou minhas mãos. — Eu não sei como chegamos a isso, Isabella. — Eu sei. — Olhei pro chão. — Chegamos porque meu pai se vendeu e porque o homem mais arrogante do país achou divertido me destruir junto. — Ele não é um homem qualquer, filha. — E isso é pra me confortar? Ela respirou fundo, tentando não chorar. — Talvez... talvez ele não seja tão c***l quanto parece. Ri, amarga. — Ele é pior. Houve silêncio. Lá fora, os pássaros cantavam, indiferentes. Minha mãe passou a mão no meu cabelo, como fazia quando eu era criança. — Você é mais forte do que pensa. Só... tenta não provocar esse homem. — Não provocar? — levantei a cabeça. — Ele está me forçando a casar com ele, mãe! Quer que eu sorria? Ela não respondeu. E eu entendi: não havia nada que ela pudesse dizer. O relógio marcou nove da manhã quando ouvi o som dos pneus no asfalto. Meu corpo inteiro travou. Leonardo havia chegado. Desci as escadas devagar, e lá estava ele — impecável, terno preto, gravata cinza, expressão de quem dita o destino dos outros sem um pingo de culpa. — Está pronta? — perguntou, como se estivesse perguntando a hora. — Pronta pra ir pro inferno? Sim. Um canto da boca dele se levantou. — Bom. Porque o inferno é um bom lugar pra quem sabe sobreviver. Meu pai apareceu atrás dele, visivelmente abalado. — Isabella... por favor, não faz isso piorar. Olhei pra ele, e foi como olhar pra um estranho. — O senhor já fez isso piorar por mim, pai. Leonardo observava tudo, quieto, como quem assiste a uma peça bem escrita. — Vamos? — disse ele, impaciente. — Tenho reunião às onze. — Reunião? — repeti, incrédula. — Então é assim? Sequestra uma mulher, obriga um casamento e ainda marca reunião no meio? Ele deu um passo em minha direção. — Eu sou um homem ocupado. E você é parte do meu cronograma agora. — Eu preferia ser parte de um acidente. — Não duvido. Mas acidentes não resolvem dívidas. Ele me ofereceu a mão. Eu não toquei. — Não precisa fingir cavalheirismo. — Não estou fingindo. Estou apenas poupando tempo. A frieza dele me dava vontade de gritar, mas algo dentro de mim dizia pra não dar o prazer da minha raiva. — Onde vai ser? — perguntei, engolindo seco. — Cartório central. Assinaremos o registro civil e o contrato de anulação de dívida simultaneamente. — E se eu me recusar na hora? — O seu pai assina o mandado de prisão junto. Meu coração doeu. Era c***l. Calculado. E ele sabia disso. No carro, o silêncio era ensurdecedor. Eu olhava pela janela e tentava memorizar cada rua, cada árvore. Era como se estivesse me despedindo de uma versão de mim que não voltaria. Leonardo dirigia sem expressão. Nem olhava pra mim. Os dedos longos seguravam o volante com firmeza, o relógio no pulso brilhando. Parecia um homem esculpido pra mandar. — Sempre foi assim? — perguntei, sem conseguir me calar. — Frio? — Sempre fui eficiente. — E isso é desculpa pra ser desumano? Ele desviou o olhar por meio segundo. — Humanos erram. Eu não posso errar. — Então é um robô. — Um robô não sentiria raiva quando é traído. A voz dele saiu baixa, mas carregada de algo que quase pareceu dor. Por um instante, quase vi um homem por trás do CEO. Mas o instante passou. — O senhor não foi traído por mim. — Olhei firme. — Então pare de descontar em mim a sua vingança. — Estou cobrando justiça. — Está alimentando o próprio ego. Ele respirou fundo, controlando o impulso de responder. — Você fala demais. — E o senhor se acha Deus demais. Os olhos dele brilharam. — E talvez seja, Isabella. Pelo menos, o seu Deus hoje tem um nome: Leonardo Valença. O silêncio que se seguiu foi pesado. Eu queria odiá-lo mais do que já odiava, mas havia algo naquele tom que me atravessava de um jeito estranho — uma mistura de medo e fascínio. Quando chegamos ao cartório, a rua parecia congelada no tempo. Do lado de fora, um motorista abriu a porta. Leonardo saiu primeiro, depois se virou pra mim. — Vamos acabar logo com isso. Desci, os saltos ecoando no chão como batidas de um coração que já não sabia se queria fugir ou lutar. Dentro do cartório, o ar era gelado. O funcionário nos esperava com dois papéis: o contrato e o registro de casamento. Eu m*l consegui ler as letras. Leonardo tirou a caneta do bolso e assinou com um traço firme. — Sua vez. — E se eu rasgar? — perguntei. — Rasgue. — Ele cruzou os braços. — E verá o seu pai sendo levado algemado na mesma hora. Olhei pro meu pai. Ele chorava, implorando em silêncio. Minha mãe estava pálida, os olhos inchados. Senti o gosto salgado das lágrimas antes que elas caíssem. Peguei a caneta. Minha mão tremia. Assinei. O som da caneta riscando o papel foi o mais c***l de todos. Leonardo pegou o documento e o dobrou, guardando no bolso. — Parabéns. Agora você é uma Valença. As palavras soaram como um veredito. O funcionário pediu que trocássemos as alianças. Leonardo tirou duas caixinhas do paletó. Uma aliança de ouro fina e fria. — Não precisa — murmurei. — Precisa. — Ele segurou minha mão sem pedir permissão e colocou o anel. O toque dele era firme, dominante, e meu corpo inteiro reagiu, mesmo quando minha alma gritava pra não sentir nada. — Solte minha mão. — Ainda não. Os olhos dele encontraram os meus, e naquele instante o mundo parou. Tinha raiva, tinha ódio, mas também uma centelha de algo que eu não conseguia entender. Soltei a respiração. — Já terminou? — Ainda não. — O que falta, então? Ele deu meio sorriso. — O beijo. — O senhor está delirando. — Apenas cumprindo o protocolo. Aproximei-me, encarando-o. — Se ousar me tocar, juro que arranho sua cara. — Gostaria de ver você tentando. A tensão entre nós era elétrica. Por sorte, o funcionário interrompeu, declarando: — Estão oficialmente casados. Leonardo recuou, satisfeito. — Agora sim. Pegou minha mão e me puxou em direção à saída. — Aonde está me levando? — Pra casa. — Ele olhou rápido pra mim. — Pra nossa casa. — Eu nunca vou chamar aquele lugar de lar. — Então aprenda a chamar de realidade. No carro, eu olhei o anel e senti o peso dele mais do que o ouro poderia ter. Era o símbolo da prisão mais bonita e mais c***l que alguém poderia criar. Olhei pela janela. A cidade passava rápido, como se o mundo tivesse pressa de me esquecer. Fechei os olhos e pensei em uma única coisa: Se Leonardo Valença queria me quebrar, ele teria que aprender que alguns diamantes só se formam sob pressão. E eu não seria o troféu dele. Seria o erro que ele nunca esqueceria.
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