Quando saímos do cartório, o céu estava cinza.
Nenhum raio de sol, nenhuma brisa. Nem mesmo o vento parecia disposto a testemunhar o que tinha acabado de acontecer.
Eu era oficialmente a senhora Valença. E o gosto disso era amargo.
O carro preto nos esperava na porta, e, mesmo sem querer, ele abriu a porta pra mim — gesto mecânico, sem cavalheirismo, sem olhar.
Entrei calada. Ele fez o mesmo.
O silêncio era ensurdecedor.
A cidade passava pela janela, mas eu não via nada.
Meu reflexo no vidro parecia o de outra mulher: fria, pálida, com um anel que pesava mais que algemas.
— Por que está tão quieta? — ele perguntou, sem desviar os olhos da estrada.
— Porque se eu abrir a boca, talvez diga algo que o senhor não vai gostar.
— Já estou acostumado com pessoas dizendo o que não gosto.
— Imagino que também esteja acostumado a ser odiado.
— O ódio costuma ser um sinal de respeito m*l disfarçado.
— O senhor é inacreditável.
Ele não respondeu. Apenas apertou um pouco mais o volante, os dedos longos e frios.
Por algum motivo, aquele silêncio entre nós era pior do que qualquer briga.
Depois de quase uma hora, o portão de ferro se abriu.
A mansão Valença parecia saída de um sonho caro — ou de um pesadelo de luxo.
Vidros, colunas, mármore. Um jardim que parecia obra de um arquiteto obcecado por simetria.
Quando desci do carro, o vento frio bateu no rosto e me deu vontade de correr.
Mas correr pra onde?
Um mordomo abriu a porta e abaixou a cabeça.
— Bem-vindos, senhor e senhora Valença.
“Senhora Valença.”
Aquela frase me deu enjoo.
Entrei. O hall principal era tão grande que ecoava o som dos meus saltos.
Cada quadro na parede, cada peça de arte, cada centímetro parecia gritar: Você não pertence aqui.
Leonardo tirou o paletó e o entregou a uma funcionária.
— Mostre o quarto da senhora.
A mulher me olhou, respeitosa, mas curiosa.
— Por aqui, senhora.
Subi as escadas, sentindo o olhar dele nas minhas costas.
O quarto era enorme, luxuoso, impessoal. Cama de dossel, cortinas pesadas, janelas com vista para o jardim.
Tudo lindo. Tudo frio.
A funcionária se retirou. Eu fiquei parada no meio do quarto, abraçando os próprios braços.
Um vestido branco simples. Um anel dourado. Um nome que não era meu.
Nada mais.
Ouvi passos atrás de mim. Ele tinha subido.
— Espero que esteja confortável — disse, com aquele tom neutro que me irritava.
— O senhor tem um conceito estranho de conforto.
— Achei que preferisse o silêncio a qualquer coisa.
— Prefiro liberdade.
Ele encostou na parede, cruzando os braços.
— Liberdade é uma palavra cara. E o seu pai já gastou o suficiente.
Virei pra ele, sentindo a raiva ferver.
— O senhor não vai me ver como esposa.
— Não pretendo vê-la de forma alguma. — A voz dele era seca, dura. — Isso aqui é apenas um contrato.
— Então trate como tal.
— Pretendo fazer isso.
Por um momento, o silêncio voltou.
O olhar dele percorreu o quarto, depois voltou pra mim.
— O jantar é às oito. Vista algo decente.
— Não estou com fome.
— Não perguntei se está com fome. — Ele virou e desceu as escadas. — Apareça.
As horas seguintes foram um vazio.
Abri a mala, tirei o vestido e o joguei em qualquer canto.
Coloquei uma roupa simples, sentei na beira da cama e fiquei olhando pro anel.
Um pedaço de metal.
Um símbolo de prisão.
Por volta das oito, ouvi uma batida na porta.
Uma empregada entrou, carregando um vestido preto.
— O senhor pediu que levasse isto para a senhora usar no jantar.
— Pode levar de volta.
Ela hesitou. — Ele pediu pra dizer que, se não descer, vai subir.
Respirei fundo. — Deixe o vestido.
O jantar foi servido numa mesa imensa, iluminada por lustres de cristal.
Ele já estava lá, mexendo num copo de vinho, como se nada fosse fora do normal.
Parecia um retrato vivo de controle.
— Achei que não viria — disse ele, sem levantar os olhos.
— Queria ver até onde iria a sua arrogância.
— Até onde for necessário.
Sentei. Não por vontade, mas pra acabar logo.
O silêncio era desconfortável.
Os talheres batiam nos pratos, o som ecoava pelo salão.
A cada segundo, eu me sentia mais fora de lugar.
— Está achando tudo muito difícil? — perguntou ele, por fim.
— Estou achando tudo muito nojento.
— Pense no lado bom.
— Existe um lado bom?
— Seu pai está livre.
Engoli seco. — Livre pra viver com a culpa.
— A culpa é uma escolha.
— O senhor entende muito de escolhas ruins, não é?
Ele pousou o garfo e me olhou pela primeira vez naquela noite.
— Cuidado com a língua, Isabella.
— Cuidado com a consciência, Leonardo.
Houve um instante de silêncio em que nem o ar ousou se mover.
Os olhos dele eram frios, mas eu juro que vi algo por trás — um lampejo de cansaço, talvez.
Mas passou rápido.
— Termine o jantar — disse, voltando ao prato. — E não me chame pelo primeiro nome.
— Por quê? Tem medo de parecer humano?
Ele soltou um riso curto, sem humor.
— Humanos são fracos. Eu não posso me dar a esse luxo.
— Então parabéns. Conseguiu ser o homem mais vazio que já conheci.
Ele largou o copo com força.
— Pelo menos eu existo. Você, até ontem, era apenas um sobrenome manchado.
As palavras doeram mais do que eu queria admitir.
Levantei-me, tentando esconder a dor no olhar.
— Se o senhor quer uma esposa obediente, devia ter comprado uma boneca, não uma mulher.
Ele apenas me observou.
— Uma boneca não teria coragem de me enfrentar. Talvez por isso eu tenha aceitado esse acordo.
— O senhor é doente.
— E você é teimosa. Isso vai ser... interessante.
Virei as costas e saí, antes que perdesse o controle.
No quarto, bati a porta com força e girei a chave.
As lágrimas vieram de novo, mas dessa vez eu não tentei conter.
Chorei até doer.
Olhei pro espelho e vi uma versão de mim que não reconhecia.
Uma mulher casada com um homem que odiava.
Uma prisioneira de luxo.
Fui até a janela. O jardim brilhava sob a lua, perfeito, vazio — exatamente como aquele casamento.
Sentei na beira da cama, abracei os joelhos e sussurrei pra mim mesma:
— Você pode ter tirado tudo de mim, Leonardo Valença. Mas não vai ter o meu coração.
E naquela noite, enquanto o vento batia nas cortinas, fiz a única coisa que ainda podia:
me tranquei no quarto e prometi a mim mesma que jamais deixaria aquele homem me tocar.
Lá embaixo, o som de passos ecoou.
Eu o ouvi parar diante da minha porta.
Por um segundo, o coração parou junto.
Mas ele não bateu.
Apenas ficou ali, em silêncio.
E depois se afastou.
Aquela foi a primeira noite do nosso casamento.
E também a primeira vez que entendi o que era viver com o corpo livre e a alma em cativeiro.