O Toque que Queima

1253 Words
A manhã amanheceu cinza — e eu também. Depois da fuga, tudo parecia mais pesado. A casa, o ar, o silêncio. Até o som dos passos dos empregados parecia diferente, como se todos soubessem que algo tinha acontecido. Tomei banho devagar, tentando apagar o toque das mãos dele no meu braço, a forma como me puxara, o olhar que queimava mais do que qualquer grito. Mas não consegui. Aquela lembrança grudou na pele como fogo. Quando desci, encontrei-o na sala, de terno, pronto pra sair. O rosto sério, o controle de sempre. Mas os olhos... estavam diferentes. Cansados, sombrios. — Dormiu bem? — perguntou, a voz baixa. — O senhor está fingindo cortesia agora? — Estou tentando manter a paz. — Engraçado. Ontem o senhor chamou isso de controle. Ele suspirou, tirando o relógio do bolso. — Isabella, não quero discutir. — Claro que não. O senhor nunca quer discutir quando não pode vencer. Ele parou, me olhou, e o ar entre nós pareceu mudar. Um silêncio denso, pesado. — Cuidado com o que diz. — Cuidado o senhor. — Cruzei os braços. — Eu não sou uma das suas secretárias que baixam a cabeça quando o senhor manda. — Não. — Ele deu um passo à frente. — Você é pior. — Por quê? — Porque me desafia. — E isso te incomoda? — Isso me enlouquece. O olhar dele desceu pro meu rosto, pros meus lábios. E por um segundo, o tempo parou. Senti o coração bater alto demais. A pele arrepiou antes mesmo de eu entender o motivo. Leonardo respirou fundo, virou o rosto e caminhou até o bar. — Vou pra uma reunião. — A voz dele era fria de novo, mas o tom falhava nas bordas. — Quando eu voltar, espero que não tente mais fugir. — O senhor sempre espera demais. — E você sempre entrega de menos. Pegou a pasta e saiu. O som da porta batendo ecoou por toda a casa. Passei o dia sozinha, tentando esquecer o que aconteceu. Mas era impossível. Tudo nele me irritava — e, de alguma forma, me atraía. O modo como andava, o cheiro do perfume que ainda pairava no ar, a voz rouca quando se irritava. Era como se ele tivesse se infiltrado em mim, mesmo sem permissão. No fim da tarde, fui até o jardim. O vento estava frio, e as nuvens cobriam o sol. Fiquei parada, observando as flores, tentando me convencer de que ainda havia algo bonito naquele lugar. — Fugindo de novo? — a voz dele soou atrás de mim. Virei-me. Ele estava ali — sem o terno, sem a gravata, as mangas da camisa dobradas. O mesmo olhar intenso que eu jurava não querer ver mais. — Só estava respirando. — Cruzei os braços. — Ainda é permitido? — Desde que não envolva portões abertos. — O senhor realmente acha que pode me vigiar o tempo todo? — Acho que posso tentar. — Que vida triste. — Já me acostumei. O silêncio entre nós foi quase pior que uma briga. O vento bagunçou meu cabelo, e ele me observava em silêncio, os olhos escuros demais pra serem neutros. — Por que me olha assim? — perguntei. — Porque não entendo você. — O senhor entende todo mundo, menos quem sente. — E você sente demais. — Isso te assusta? — Isso me irrita. Dei um passo à frente. — E por que continua me olhando? Ele respirou fundo. — Porque não consigo parar. As palavras pairaram no ar, perigosas. O coração acelerou. De repente, não havia mais vento, nem jardim, nem mansão. Só nós dois. — O senhor devia parar. — Minha voz saiu baixa. — Isso não vai acabar bem. — Nunca acaba. Dei outro passo. — Então me diga... o que o senhor quer? Ele ficou em silêncio, o olhar preso no meu. Um segundo. Dois. E então, sem aviso, ele avançou. A mão segurou minha cintura, firme, puxando-me pra perto. O toque foi como uma descarga elétrica. Senti o calor subir do estômago ao pescoço, o ar desaparecer, o mundo se calar. — Me solta. — A voz saiu fraca, traidora. — Não quer que eu solte. — Quer apostar? — Apostar com você é perigoso. — E o senhor gosta do perigo, não é? — Só quando tem seu nome. O olhar dele baixou pros meus lábios, e por um segundo, eu quase esqueci quem ele era. Mas a raiva voltou, me puxando de volta à realidade. Empurrei-o com força. — Não ouse me tocar de novo. Ele não recuou. Apenas passou a mão pelos cabelos, tenso. — Você não entende o que está fazendo comigo. — Eu não estou fazendo nada. — Está sim. — Ele deu um passo à frente. — Está me desmontando, peça por peça. — Isso é culpa sua. — Eu sei. — Ele se aproximou mais. — E é isso que me apavora. O tom da voz dele não era de arrogância, mas de confissão. E isso me confundia mais do que qualquer insulto. — Está com medo? — provoquei. — Do que você pode me fazer sentir? Sim. As palavras dele me atingiram como um golpe. Tentei responder, mas o ar faltou. Senti o peito subir e descer rápido demais. E então ele me tocou de novo. Dessa vez, a mão no meu rosto, os dedos roçando de leve, como se tivessem medo e desejo ao mesmo tempo. O toque era quente, quase reverente. E o meu corpo... me traiu. Fechei os olhos. Por um segundo, esqueci tudo. O casamento forçado, o ódio, as mentiras. Só restou o calor da pele dele. Mas logo abri os olhos e recuei, o coração disparado. — Não ouse confundir isso com perdão. — Não confundo. — Ele respirou fundo. — Confundo com necessidade. — Então controle-se. — Eu tento, Isabella. Todos os dias. — E falha. — Sim. — O olhar dele queimava. — Sempre que te vejo. Virei as costas, tentando disfarçar o tremor nas mãos. Mas ele segurou meu braço, suave, quase pedindo permissão. O toque não doía. Doía o que ele fazia sentir. — Me solta. — Sussurrei. — Não até você admitir. — Admitir o quê? — Que sente. — Eu sinto ódio. — E mais o quê? As lágrimas arderam nos olhos. — Raiva. — E? Silêncio. O ar ficou pesado. O olhar dele mergulhou no meu, sem defesa. — Diga. Mas eu não disse. Porque dizer seria perder. Ele soltou meu braço devagar. E, pela primeira vez, o vi baixar a guarda. — Um dia, você vai parar de fugir — murmurou. — E vai perceber que, por mais que odeie, sente. — Nunca. — Já começou. E se afastou, deixando-me sozinha no jardim. Fiquei ali, parada, tentando respirar. O vento frio batia no rosto, mas o corpo queimava. O toque dele ainda estava ali, na pele, na mente, no peito. Fechei os olhos e deixei uma lágrima escorrer, não de tristeza — mas de raiva de mim mesma. Porque, por um instante, eu quis que ele voltasse. Naquela noite, deitada na cama, toquei o lugar onde a mão dele estivera. E odiei o arrepio que veio junto. Leonardo Valença era o homem que destruiu a minha vida. Mas também era o único que conseguia fazê-la pulsar. O toque dele queimava. E, pior, deixava marcas que o tempo não apagaria. E, talvez, fosse esse o problema. Porque eu sabia que o fogo, quando começa, não escolhe o que consome.
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