A manhã amanheceu cinza — e eu também.
Depois da fuga, tudo parecia mais pesado.
A casa, o ar, o silêncio.
Até o som dos passos dos empregados parecia diferente, como se todos soubessem que algo tinha acontecido.
Tomei banho devagar, tentando apagar o toque das mãos dele no meu braço, a forma como me puxara, o olhar que queimava mais do que qualquer grito.
Mas não consegui.
Aquela lembrança grudou na pele como fogo.
Quando desci, encontrei-o na sala, de terno, pronto pra sair.
O rosto sério, o controle de sempre.
Mas os olhos... estavam diferentes.
Cansados, sombrios.
— Dormiu bem? — perguntou, a voz baixa.
— O senhor está fingindo cortesia agora?
— Estou tentando manter a paz.
— Engraçado. Ontem o senhor chamou isso de controle.
Ele suspirou, tirando o relógio do bolso. — Isabella, não quero discutir.
— Claro que não. O senhor nunca quer discutir quando não pode vencer.
Ele parou, me olhou, e o ar entre nós pareceu mudar.
Um silêncio denso, pesado.
— Cuidado com o que diz.
— Cuidado o senhor. — Cruzei os braços. — Eu não sou uma das suas secretárias que baixam a cabeça quando o senhor manda.
— Não. — Ele deu um passo à frente. — Você é pior.
— Por quê?
— Porque me desafia.
— E isso te incomoda?
— Isso me enlouquece.
O olhar dele desceu pro meu rosto, pros meus lábios.
E por um segundo, o tempo parou.
Senti o coração bater alto demais.
A pele arrepiou antes mesmo de eu entender o motivo.
Leonardo respirou fundo, virou o rosto e caminhou até o bar.
— Vou pra uma reunião. — A voz dele era fria de novo, mas o tom falhava nas bordas. — Quando eu voltar, espero que não tente mais fugir.
— O senhor sempre espera demais.
— E você sempre entrega de menos.
Pegou a pasta e saiu.
O som da porta batendo ecoou por toda a casa.
Passei o dia sozinha, tentando esquecer o que aconteceu.
Mas era impossível.
Tudo nele me irritava — e, de alguma forma, me atraía.
O modo como andava, o cheiro do perfume que ainda pairava no ar, a voz rouca quando se irritava.
Era como se ele tivesse se infiltrado em mim, mesmo sem permissão.
No fim da tarde, fui até o jardim.
O vento estava frio, e as nuvens cobriam o sol.
Fiquei parada, observando as flores, tentando me convencer de que ainda havia algo bonito naquele lugar.
— Fugindo de novo? — a voz dele soou atrás de mim.
Virei-me.
Ele estava ali — sem o terno, sem a gravata, as mangas da camisa dobradas.
O mesmo olhar intenso que eu jurava não querer ver mais.
— Só estava respirando. — Cruzei os braços. — Ainda é permitido?
— Desde que não envolva portões abertos.
— O senhor realmente acha que pode me vigiar o tempo todo?
— Acho que posso tentar.
— Que vida triste.
— Já me acostumei.
O silêncio entre nós foi quase pior que uma briga.
O vento bagunçou meu cabelo, e ele me observava em silêncio, os olhos escuros demais pra serem neutros.
— Por que me olha assim? — perguntei.
— Porque não entendo você.
— O senhor entende todo mundo, menos quem sente.
— E você sente demais.
— Isso te assusta?
— Isso me irrita.
Dei um passo à frente. — E por que continua me olhando?
Ele respirou fundo. — Porque não consigo parar.
As palavras pairaram no ar, perigosas.
O coração acelerou.
De repente, não havia mais vento, nem jardim, nem mansão.
Só nós dois.
— O senhor devia parar. — Minha voz saiu baixa. — Isso não vai acabar bem.
— Nunca acaba.
Dei outro passo. — Então me diga... o que o senhor quer?
Ele ficou em silêncio, o olhar preso no meu.
Um segundo. Dois.
E então, sem aviso, ele avançou.
A mão segurou minha cintura, firme, puxando-me pra perto.
O toque foi como uma descarga elétrica.
Senti o calor subir do estômago ao pescoço, o ar desaparecer, o mundo se calar.
— Me solta. — A voz saiu fraca, traidora.
— Não quer que eu solte.
— Quer apostar?
— Apostar com você é perigoso.
— E o senhor gosta do perigo, não é?
— Só quando tem seu nome.
O olhar dele baixou pros meus lábios, e por um segundo, eu quase esqueci quem ele era.
Mas a raiva voltou, me puxando de volta à realidade.
Empurrei-o com força.
— Não ouse me tocar de novo.
Ele não recuou.
Apenas passou a mão pelos cabelos, tenso.
— Você não entende o que está fazendo comigo.
— Eu não estou fazendo nada.
— Está sim. — Ele deu um passo à frente. — Está me desmontando, peça por peça.
— Isso é culpa sua.
— Eu sei. — Ele se aproximou mais. — E é isso que me apavora.
O tom da voz dele não era de arrogância, mas de confissão.
E isso me confundia mais do que qualquer insulto.
— Está com medo? — provoquei.
— Do que você pode me fazer sentir? Sim.
As palavras dele me atingiram como um golpe.
Tentei responder, mas o ar faltou.
Senti o peito subir e descer rápido demais.
E então ele me tocou de novo.
Dessa vez, a mão no meu rosto, os dedos roçando de leve, como se tivessem medo e desejo ao mesmo tempo.
O toque era quente, quase reverente.
E o meu corpo... me traiu.
Fechei os olhos.
Por um segundo, esqueci tudo.
O casamento forçado, o ódio, as mentiras.
Só restou o calor da pele dele.
Mas logo abri os olhos e recuei, o coração disparado.
— Não ouse confundir isso com perdão.
— Não confundo. — Ele respirou fundo. — Confundo com necessidade.
— Então controle-se.
— Eu tento, Isabella. Todos os dias.
— E falha.
— Sim. — O olhar dele queimava. — Sempre que te vejo.
Virei as costas, tentando disfarçar o tremor nas mãos.
Mas ele segurou meu braço, suave, quase pedindo permissão.
O toque não doía.
Doía o que ele fazia sentir.
— Me solta. — Sussurrei.
— Não até você admitir.
— Admitir o quê?
— Que sente.
— Eu sinto ódio.
— E mais o quê?
As lágrimas arderam nos olhos.
— Raiva.
— E?
Silêncio.
O ar ficou pesado.
O olhar dele mergulhou no meu, sem defesa.
— Diga.
Mas eu não disse.
Porque dizer seria perder.
Ele soltou meu braço devagar.
E, pela primeira vez, o vi baixar a guarda.
— Um dia, você vai parar de fugir — murmurou. — E vai perceber que, por mais que odeie, sente.
— Nunca.
— Já começou.
E se afastou, deixando-me sozinha no jardim.
Fiquei ali, parada, tentando respirar.
O vento frio batia no rosto, mas o corpo queimava.
O toque dele ainda estava ali, na pele, na mente, no peito.
Fechei os olhos e deixei uma lágrima escorrer, não de tristeza — mas de raiva de mim mesma.
Porque, por um instante, eu quis que ele voltasse.
Naquela noite, deitada na cama, toquei o lugar onde a mão dele estivera.
E odiei o arrepio que veio junto.
Leonardo Valença era o homem que destruiu a minha vida.
Mas também era o único que conseguia fazê-la pulsar.
O toque dele queimava.
E, pior, deixava marcas que o tempo não apagaria.
E, talvez, fosse esse o problema.
Porque eu sabia que o fogo, quando começa, não escolhe o que consome.