A madrugada nunca pareceu tão longa.
O relógio marcava três da manhã quando decidi que já não podia continuar ali.
Nem mais um segundo.
A carta do meu pai ainda estava sobre a mesa, aberta, as palavras queimando como fogo sob a luz fraca do abajur.
“Ele não é o inimigo.”
Essas cinco palavras me atormentavam.
Leonardo podia ter ajudado meu pai.
Podia ter salvado a família.
Mas escolheu comprar o nosso destino.
E eu?
Escolhi resistir.
Peguei uma mochila, vesti um casaco simples e calcei os sapatos sem fazer barulho.
A mansão estava silenciosa.
Os seguranças provavelmente dormiam — afinal, quem imaginaria que uma esposa obediente tentaria fugir outra vez?
Abri a porta dos fundos, devagar, e senti o vento frio cortar a pele.
O coração batia tão alto que parecia denunciar cada passo.
Mas, por um instante, me senti livre.
Atravessei o jardim correndo, sem olhar pra trás.
Quando cheguei ao portão lateral, usei a chave reserva que um dos empregados tinha deixado cair dias atrás.
Um clique suave.
Aberto.
Um passo fora daquela casa e eu seria outra vez Isabella Monteiro.
Sem anel, sem algemas.
Mas o destino — ou talvez Leonardo — tinha outros planos.
— Interessante escolha de horário pra uma caminhada.
A voz dele veio de trás.
Baixa.
Perigosa.
Virei devagar.
Ele estava parado a poucos metros, descalço, vestindo apenas uma calça de moletom e uma camisa escura.
O cabelo bagunçado, os olhos em chamas.
— Está me seguindo agora? — perguntei, tentando esconder o desespero.
— Não. — Ele deu alguns passos. — Apenas ouvi o som de uma chave sendo usada onde não devia.
— Eu precisava sair.
— Precisava ou queria?
— Preciso respirar, Leonardo! — gritei, a voz quebrando. — Essa casa me sufoca, esse casamento me destrói, e o senhor… o senhor me mata um pouco mais a cada dia!
Ele parou.
O olhar endureceu, mas havia algo diferente ali — dor, talvez.
— Então vá — disse, por fim. — A porta está aberta.
Fiquei confusa.
— O quê?
— Vá. — Ele gesticulou pro portão. — Está livre.
Por um segundo, achei que fosse uma armadilha.
Mas a voz dele… estava séria demais pra ser sarcasmo.
— Está me testando.
— Estou te dando o que diz querer.
— E por que agora?
— Porque quero ver até onde vai.
Dei um passo pra trás.
— O senhor é doente.
— Pode me chamar do que quiser. — Ele cruzou os braços. — Só lembre que, quando sair, não há volta.
— Não preciso voltar.
— Então prove.
Olhei pra ele uma última vez.
E saí.
O portão se fechou atrás de mim com um estalo que pareceu cortar algo dentro do peito.
O frio da madrugada me envolveu, e o silêncio da rua me pareceu assustadoramente libertador.
Andei rápido, sem olhar pra trás.
Mas quanto mais eu me afastava, mais aquele lugar me perseguia.
O rosto dele, as palavras, a carta.
A cada passo, a dúvida crescia.
E se ele estivesse dizendo a verdade?
E se meu pai realmente tivesse mentido?
“Não volte.”
A voz dele ecoava como um aviso.
Mas o coração não entende avisos.
Caminhei por quase uma hora até a estrada principal.
O vento gelado cortava o rosto, e os sapatos já estavam encharcados pela chuva fina que começava a cair.
Levantei a mão e tentei chamar um táxi, mas não havia nenhum.
Peguei o celular e percebi que a bateria estava em 3%.
Tentei ligar pra minha mãe, mas a ligação caiu.
O desespero começou a subir.
O mundo lá fora não era mais o mesmo de antes.
E eu também não.
Quando ouvi o som do motor se aproximando, por um instante pensei que era um carro comum.
Mas, quando os faróis iluminaram a estrada, meu estômago afundou.
Era ele.
O carro preto parou ao meu lado.
A janela abaixou devagar.
O rosto de Leonardo apareceu, molhado de chuva e raiva.
— Entre.
— Não.
— Isabella. — A voz dele era um comando. — Entre.
— Eu não vou voltar.
— Não está em discussão.
Dei um passo pra trás.
Ele abriu a porta e saiu.
A chuva molhava o cabelo, o corpo, a voz.
E, por um momento, o homem à minha frente não era o CEO arrogante.
Era apenas alguém que lutava contra algo que também o consumia.
— Por que não me deixa ir? — perguntei.
— Porque se algo acontecer com você, eu nunca vou me perdoar.
— Isso não é culpa, é posse.
— Pode chamar do que quiser. Mas entre no carro.
— Por quê?
— Porque está chovendo. Porque é perigoso. Porque eu quero.
— Não é o suficiente.
Ele se aproximou, o rosto a poucos centímetros do meu.
A chuva escorria entre nós, fria e quente ao mesmo tempo.
— Então me diga o que é suficiente.
— Que o senhor pare de me prender.
— Eu não sei fazer isso.
A sinceridade dele me desarmou.
Por um segundo, fiquei sem chão.
Mas logo voltei a mim.
— Então vai ter que aprender.
Virei as costas e comecei a andar.
Ele me seguiu.
— Isabella, pare!
— O senhor não manda em mim!
Senti o braço ser puxado com força.
O toque dele era firme, mas não agressivo — como se, por trás da raiva, houvesse medo.
— Olha pra mim. — A voz saiu trêmula. — Você não entende o que está fazendo.
— Entendo. Estou tentando viver.
— E acha que consegue longe de mim?
— Qualquer lugar é melhor do que essa prisão!
O olhar dele se turvou.
Por um instante, pensei que fosse me soltar.
Mas, em vez disso, ele deu um passo à frente e me puxou pra perto.
A chuva caía forte.
Nossos rostos quase se tocavam.
O ar entre nós era pura tensão — a mesma que me fazia querer gritar e, ao mesmo tempo, o empurrar e beijar.
— Você não faz ideia do que provoca — murmurou ele.
— Eu não provoco nada. Só existo.
— Exatamente. — O olhar dele desceu pros meus lábios. — E isso é o suficiente pra me enlouquecer.
Por um instante, o tempo parou.
Mas antes que qualquer coisa acontecesse, ele recuou.
Respirou fundo, virou-se e abriu a porta do carro.
— Entre, Isabella. Antes que eu perca o pouco de controle que ainda tenho.
Fiquei parada, o coração acelerado.
Sabia que, se voltasse, seria mais uma derrota.
Mas a chuva, o frio e o medo me empurraram pra dentro.
O silêncio dominou o trajeto de volta.
Ele dirigia sem olhar pra mim, as mãos firmes no volante, o maxilar travado.
Quando chegamos, ele desligou o carro, respirou fundo e disse:
— Você pode me odiar. Pode gritar, quebrar tudo. Mas nunca mais tente fugir assim.
— O senhor não pode me impedir.
— Posso. E vou.
— Por quê?
Ele me olhou, e o que vi nos olhos dele não era arrogância.
Era desespero.
— Porque se eu te perder, não sei o que sobra de mim.
As palavras me atingiram como uma rajada.
Não havia ironia.
Nem ameaça.
Só verdade.
Ele saiu do carro e abriu a porta pra mim.
Mas dessa vez, não como quem manda.
Como quem pede.
Subi as escadas da mansão em silêncio, sentindo as pernas tremerem.
Quando cheguei ao quarto, fechei a porta e me encostei nela, tentando respirar.
As palavras dele ecoavam na cabeça.
“Se eu te perder, não sei o que sobra de mim.”
Não eram as palavras de um inimigo.
E isso me confundia mais do que o ódio.
Porque talvez — e só talvez — o homem que me prendeu fosse o mesmo que não sabia mais como se libertar.
E se esse era o começo de algo, eu ainda não sabia se era salvação…
ou destruição.