A Fuga Frustrada

1317 Words
A madrugada nunca pareceu tão longa. O relógio marcava três da manhã quando decidi que já não podia continuar ali. Nem mais um segundo. A carta do meu pai ainda estava sobre a mesa, aberta, as palavras queimando como fogo sob a luz fraca do abajur. “Ele não é o inimigo.” Essas cinco palavras me atormentavam. Leonardo podia ter ajudado meu pai. Podia ter salvado a família. Mas escolheu comprar o nosso destino. E eu? Escolhi resistir. Peguei uma mochila, vesti um casaco simples e calcei os sapatos sem fazer barulho. A mansão estava silenciosa. Os seguranças provavelmente dormiam — afinal, quem imaginaria que uma esposa obediente tentaria fugir outra vez? Abri a porta dos fundos, devagar, e senti o vento frio cortar a pele. O coração batia tão alto que parecia denunciar cada passo. Mas, por um instante, me senti livre. Atravessei o jardim correndo, sem olhar pra trás. Quando cheguei ao portão lateral, usei a chave reserva que um dos empregados tinha deixado cair dias atrás. Um clique suave. Aberto. Um passo fora daquela casa e eu seria outra vez Isabella Monteiro. Sem anel, sem algemas. Mas o destino — ou talvez Leonardo — tinha outros planos. — Interessante escolha de horário pra uma caminhada. A voz dele veio de trás. Baixa. Perigosa. Virei devagar. Ele estava parado a poucos metros, descalço, vestindo apenas uma calça de moletom e uma camisa escura. O cabelo bagunçado, os olhos em chamas. — Está me seguindo agora? — perguntei, tentando esconder o desespero. — Não. — Ele deu alguns passos. — Apenas ouvi o som de uma chave sendo usada onde não devia. — Eu precisava sair. — Precisava ou queria? — Preciso respirar, Leonardo! — gritei, a voz quebrando. — Essa casa me sufoca, esse casamento me destrói, e o senhor… o senhor me mata um pouco mais a cada dia! Ele parou. O olhar endureceu, mas havia algo diferente ali — dor, talvez. — Então vá — disse, por fim. — A porta está aberta. Fiquei confusa. — O quê? — Vá. — Ele gesticulou pro portão. — Está livre. Por um segundo, achei que fosse uma armadilha. Mas a voz dele… estava séria demais pra ser sarcasmo. — Está me testando. — Estou te dando o que diz querer. — E por que agora? — Porque quero ver até onde vai. Dei um passo pra trás. — O senhor é doente. — Pode me chamar do que quiser. — Ele cruzou os braços. — Só lembre que, quando sair, não há volta. — Não preciso voltar. — Então prove. Olhei pra ele uma última vez. E saí. O portão se fechou atrás de mim com um estalo que pareceu cortar algo dentro do peito. O frio da madrugada me envolveu, e o silêncio da rua me pareceu assustadoramente libertador. Andei rápido, sem olhar pra trás. Mas quanto mais eu me afastava, mais aquele lugar me perseguia. O rosto dele, as palavras, a carta. A cada passo, a dúvida crescia. E se ele estivesse dizendo a verdade? E se meu pai realmente tivesse mentido? “Não volte.” A voz dele ecoava como um aviso. Mas o coração não entende avisos. Caminhei por quase uma hora até a estrada principal. O vento gelado cortava o rosto, e os sapatos já estavam encharcados pela chuva fina que começava a cair. Levantei a mão e tentei chamar um táxi, mas não havia nenhum. Peguei o celular e percebi que a bateria estava em 3%. Tentei ligar pra minha mãe, mas a ligação caiu. O desespero começou a subir. O mundo lá fora não era mais o mesmo de antes. E eu também não. Quando ouvi o som do motor se aproximando, por um instante pensei que era um carro comum. Mas, quando os faróis iluminaram a estrada, meu estômago afundou. Era ele. O carro preto parou ao meu lado. A janela abaixou devagar. O rosto de Leonardo apareceu, molhado de chuva e raiva. — Entre. — Não. — Isabella. — A voz dele era um comando. — Entre. — Eu não vou voltar. — Não está em discussão. Dei um passo pra trás. Ele abriu a porta e saiu. A chuva molhava o cabelo, o corpo, a voz. E, por um momento, o homem à minha frente não era o CEO arrogante. Era apenas alguém que lutava contra algo que também o consumia. — Por que não me deixa ir? — perguntei. — Porque se algo acontecer com você, eu nunca vou me perdoar. — Isso não é culpa, é posse. — Pode chamar do que quiser. Mas entre no carro. — Por quê? — Porque está chovendo. Porque é perigoso. Porque eu quero. — Não é o suficiente. Ele se aproximou, o rosto a poucos centímetros do meu. A chuva escorria entre nós, fria e quente ao mesmo tempo. — Então me diga o que é suficiente. — Que o senhor pare de me prender. — Eu não sei fazer isso. A sinceridade dele me desarmou. Por um segundo, fiquei sem chão. Mas logo voltei a mim. — Então vai ter que aprender. Virei as costas e comecei a andar. Ele me seguiu. — Isabella, pare! — O senhor não manda em mim! Senti o braço ser puxado com força. O toque dele era firme, mas não agressivo — como se, por trás da raiva, houvesse medo. — Olha pra mim. — A voz saiu trêmula. — Você não entende o que está fazendo. — Entendo. Estou tentando viver. — E acha que consegue longe de mim? — Qualquer lugar é melhor do que essa prisão! O olhar dele se turvou. Por um instante, pensei que fosse me soltar. Mas, em vez disso, ele deu um passo à frente e me puxou pra perto. A chuva caía forte. Nossos rostos quase se tocavam. O ar entre nós era pura tensão — a mesma que me fazia querer gritar e, ao mesmo tempo, o empurrar e beijar. — Você não faz ideia do que provoca — murmurou ele. — Eu não provoco nada. Só existo. — Exatamente. — O olhar dele desceu pros meus lábios. — E isso é o suficiente pra me enlouquecer. Por um instante, o tempo parou. Mas antes que qualquer coisa acontecesse, ele recuou. Respirou fundo, virou-se e abriu a porta do carro. — Entre, Isabella. Antes que eu perca o pouco de controle que ainda tenho. Fiquei parada, o coração acelerado. Sabia que, se voltasse, seria mais uma derrota. Mas a chuva, o frio e o medo me empurraram pra dentro. O silêncio dominou o trajeto de volta. Ele dirigia sem olhar pra mim, as mãos firmes no volante, o maxilar travado. Quando chegamos, ele desligou o carro, respirou fundo e disse: — Você pode me odiar. Pode gritar, quebrar tudo. Mas nunca mais tente fugir assim. — O senhor não pode me impedir. — Posso. E vou. — Por quê? Ele me olhou, e o que vi nos olhos dele não era arrogância. Era desespero. — Porque se eu te perder, não sei o que sobra de mim. As palavras me atingiram como uma rajada. Não havia ironia. Nem ameaça. Só verdade. Ele saiu do carro e abriu a porta pra mim. Mas dessa vez, não como quem manda. Como quem pede. Subi as escadas da mansão em silêncio, sentindo as pernas tremerem. Quando cheguei ao quarto, fechei a porta e me encostei nela, tentando respirar. As palavras dele ecoavam na cabeça. “Se eu te perder, não sei o que sobra de mim.” Não eram as palavras de um inimigo. E isso me confundia mais do que o ódio. Porque talvez — e só talvez — o homem que me prendeu fosse o mesmo que não sabia mais como se libertar. E se esse era o começo de algo, eu ainda não sabia se era salvação… ou destruição.
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