A Visita de Helena

1290 Words
A campainha tocou no meio da tarde. O som ecoou pela casa vazia como uma lembrança boa, uma das poucas que ainda restavam. Por um instante, pensei que fosse ele — Leonardo, voltando como sempre: frio, mas presente. Mas o coração não se enganou. O amor que chega não pesa. Quando abri a porta, lá estava ela. Minha mãe. Com os cabelos presos, o mesmo sorriso cansado e o olhar que sempre me via além das minhas próprias ruínas. — Mãe… — sussurrei, antes que o choro me traísse. Ela me abraçou sem dizer nada. O tipo de abraço que desfaz muros, que cura feridas sem precisar de remédio. Senti o cheiro do perfume antigo dela e, por um instante, fui criança de novo. — Eu não podia mais ficar longe — disse, quando me soltei. — Seu silêncio doía mais do que a distância. — Desculpa, mãe. Eu só… — respirei fundo. — Achei que dava conta sozinha. Ela me olhou com ternura. — Até as mais fortes precisam de colo, filha. Sorri, triste. — Acho que esqueci como é ser cuidada. — Então deixa eu te lembrar. Entramos. A casa parecia menos fria com ela ali. O som dos passos dela enchia o vazio, e até o vento parecia respeitar sua presença. Na cozinha, preparei um chá. Ela se sentou à mesa e observou tudo em silêncio — o jeito como eu me movia, as olheiras, o ventre já um pouco saliente. Quando o chá ficou pronto, sentei à frente dela. — Está se alimentando direito? — perguntou. — Tento. — E descansando? — Quando o enjoo deixa. Ela assentiu, o olhar sereno, mas preocupado. — E ele? O nome dele pairou no ar como uma sombra. Demorei alguns segundos pra responder. — Não está aqui. — Desde quando? — Desde a última briga. Ela segurou minha mão. — E você? — Fiquei. — Boa escolha. Olhei pra ela, confusa. — Mesmo sozinha? — Principalmente sozinha. — Sorriu leve. — Porque só quando a gente fica sozinha é que aprende quem realmente é. As palavras dela me atravessaram. O chá esfriava na xícara, mas o calor do carinho dela aquecia mais do que qualquer bebida. Ficamos em silêncio por alguns minutos. Apenas o som do relógio e o vento nas cortinas. Minha mãe foi quem quebrou o silêncio: — Sabe o que eu pensei quando soube que você estava grávida? — Que eu enlouqueci? Ela riu. — Que a vida escolheu o momento mais improvável pra florescer. Sorri, com os olhos marejados. — Às vezes acho que não vou dar conta. — E mesmo assim dá. — Ela tocou meu rosto. — Porque amor de mãe nasce junto com o medo. Fechei os olhos, e as lágrimas vieram. — Mãe, eu não sei se vou conseguir perdoar o pai. — Não precisa. — Mas… — Filha, o perdão não é pra ele. É pra você respirar em paz. — Eu não quero mais sentir nada por ele. — Então pare de tentar odiar. O ódio te prende igual ao amor. Abri os olhos e a encarei. Helena sempre teve esse dom: transformar dor em sabedoria. Ela não justificava o mundo — apenas o tornava suportável. — Quando você descobriu que estava grávida de mim, sentiu medo? — perguntei. — Pavor. — riu baixinho. — Mas depois entendi que o medo e a coragem são irmãs. Uma só existe porque a outra está perto. — E se eu errar? — Então erra amando. — Ela sorriu. — O mundo perdoa quem ama de verdade. Depois do chá, fomos até o jardim. O sol tímido caía por entre as folhas, e o vento brincava com o cabelo dela. Fazia tempo que eu não via tanta calma em um lugar. — Está bonito aqui — ela disse. — É a única parte da casa que não carrega lembranças dele. — Então é aqui que você deve recomeçar. Sentei no banco e toquei o ventre. — Às vezes, acho que estou criando essa criança com mais força do que amor. — Às vezes, força é o amor que a dor deixa pra trás. Olhei pra ela e sorri. — Você sempre tem uma resposta pra tudo, né? — Não pra tudo. — Riu. — Mas já vivi o suficiente pra saber que nenhuma mulher renasce igual depois de quebrar. O vento trouxe o cheiro de terra molhada. Por um instante, tudo pareceu silencioso e leve. Eu respirava, e era o suficiente. Antes de anoitecer, ela entrou pra preparar algo pra comer. O cheiro de arroz e alho fritando encheu a casa. Um cheiro simples, de lar, de pertencimento. Algo que o luxo nunca conseguiu me dar. — Eu precisava disso — confessei, enquanto ela mexia a panela. — Do quê? — Do barulho da sua presença. Ela riu, sem olhar pra mim. — A maternidade é solitária, filha. Mesmo quando há amor. — Eu já sinto isso. — E vai sentir mais. — Parou, me encarou. — Mas não é uma solidão triste. É uma solidão que ensina. Peguei o prato das mãos dela e sentei à mesa. Comi devagar, sentindo o gosto de casa. Depois do jantar, subimos pro quarto. Ela me ajudou a dobrar algumas roupas, arrumar o berço que eu começava a montar aos poucos. Quando tocou a pequena manta sobre a cama, o olhar dela se encheu de lágrimas. — Ele vai nascer cercado de amor — disse. — Mesmo que o pai ainda não saiba o que isso significa. — E se ele nunca souber? — Então vai aprender olhando pra você. Abracei minha mãe. Longo, apertado, silencioso. O tipo de abraço que me lembrava que eu ainda podia ser filha, mesmo sendo mãe. Quando ela se preparava pra ir embora, o céu já estava escuro. A chuva fina voltava, insistente, como se o universo tivesse se acostumado a chorar junto comigo. Acompanhei-a até a porta. — Vai ficar bem? — perguntou. — Vou tentar. — Não tente. Faça. — Ela segurou meu rosto. — E se sentir vontade de chorar, chore. Mas não por ele. — Prometo. — Prometa alto. Respirei fundo. — Eu não vou mais chorar por ele. Ela sorriu, orgulhosa. — Agora sim, reconheço minha filha. O farol do carro dela iluminou o portão, e por um instante, fiquei ali, parada, vendo as luzes sumirem no horizonte. O som do motor se misturou à chuva, e o coração apertou. Mas, pela primeira vez, o aperto não era de perda. Era de saudade boa. Voltei pra dentro. A casa estava silenciosa, mas diferente. A presença dela havia deixado algo no ar — uma leveza, uma lembrança de que ainda havia vida depois da dor. Fui até o quarto e sentei na cama. A chuva batia na janela, e o vento balançava as cortinas. Toquei o ventre e sorri. — A vovó é incrível, né? — sussurrei. — Prometo que você vai conhecer ela logo. Fechei os olhos e deixei o sono vir. Sonhei com minha mãe segurando o bebê, cantando baixinho, sorrindo pra mim. Um sonho simples. Mas, pela primeira vez em muito tempo, bonito. Antes de o amanhecer chegar, acordei com um som suave — o vento passando pelas árvores, o som distante da cidade acordando. Peguei o diário e escrevi: Hoje, a casa voltou a ter cheiro de vida. Minha mãe disse que o amor de mãe nasce junto com o medo. Ela está certa. Mas se o medo for o preço pra amar esse bebê, então eu pago com gratidão. Fechei o caderno e olhei pela janela. O céu começava a clarear. E, pela primeira vez, eu não me senti sozinha. Não porque alguém ficou. Mas porque, enfim, eu fiquei comigo.
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