A campainha tocou no meio da tarde.
O som ecoou pela casa vazia como uma lembrança boa, uma das poucas que ainda restavam.
Por um instante, pensei que fosse ele — Leonardo, voltando como sempre: frio, mas presente.
Mas o coração não se enganou.
O amor que chega não pesa.
Quando abri a porta, lá estava ela.
Minha mãe.
Com os cabelos presos, o mesmo sorriso cansado e o olhar que sempre me via além das minhas próprias ruínas.
— Mãe… — sussurrei, antes que o choro me traísse.
Ela me abraçou sem dizer nada.
O tipo de abraço que desfaz muros, que cura feridas sem precisar de remédio.
Senti o cheiro do perfume antigo dela e, por um instante, fui criança de novo.
— Eu não podia mais ficar longe — disse, quando me soltei. — Seu silêncio doía mais do que a distância.
— Desculpa, mãe. Eu só… — respirei fundo. — Achei que dava conta sozinha.
Ela me olhou com ternura. — Até as mais fortes precisam de colo, filha.
Sorri, triste. — Acho que esqueci como é ser cuidada.
— Então deixa eu te lembrar.
Entramos.
A casa parecia menos fria com ela ali.
O som dos passos dela enchia o vazio, e até o vento parecia respeitar sua presença.
Na cozinha, preparei um chá.
Ela se sentou à mesa e observou tudo em silêncio — o jeito como eu me movia, as olheiras, o ventre já um pouco saliente.
Quando o chá ficou pronto, sentei à frente dela.
— Está se alimentando direito? — perguntou.
— Tento.
— E descansando?
— Quando o enjoo deixa.
Ela assentiu, o olhar sereno, mas preocupado.
— E ele?
O nome dele pairou no ar como uma sombra.
Demorei alguns segundos pra responder.
— Não está aqui.
— Desde quando?
— Desde a última briga.
Ela segurou minha mão. — E você?
— Fiquei.
— Boa escolha.
Olhei pra ela, confusa. — Mesmo sozinha?
— Principalmente sozinha. — Sorriu leve. — Porque só quando a gente fica sozinha é que aprende quem realmente é.
As palavras dela me atravessaram.
O chá esfriava na xícara, mas o calor do carinho dela aquecia mais do que qualquer bebida.
Ficamos em silêncio por alguns minutos.
Apenas o som do relógio e o vento nas cortinas.
Minha mãe foi quem quebrou o silêncio:
— Sabe o que eu pensei quando soube que você estava grávida?
— Que eu enlouqueci?
Ela riu. — Que a vida escolheu o momento mais improvável pra florescer.
Sorri, com os olhos marejados. — Às vezes acho que não vou dar conta.
— E mesmo assim dá. — Ela tocou meu rosto. — Porque amor de mãe nasce junto com o medo.
Fechei os olhos, e as lágrimas vieram.
— Mãe, eu não sei se vou conseguir perdoar o pai.
— Não precisa.
— Mas…
— Filha, o perdão não é pra ele. É pra você respirar em paz.
— Eu não quero mais sentir nada por ele.
— Então pare de tentar odiar. O ódio te prende igual ao amor.
Abri os olhos e a encarei.
Helena sempre teve esse dom: transformar dor em sabedoria.
Ela não justificava o mundo — apenas o tornava suportável.
— Quando você descobriu que estava grávida de mim, sentiu medo? — perguntei.
— Pavor. — riu baixinho. — Mas depois entendi que o medo e a coragem são irmãs. Uma só existe porque a outra está perto.
— E se eu errar?
— Então erra amando. — Ela sorriu. — O mundo perdoa quem ama de verdade.
Depois do chá, fomos até o jardim.
O sol tímido caía por entre as folhas, e o vento brincava com o cabelo dela.
Fazia tempo que eu não via tanta calma em um lugar.
— Está bonito aqui — ela disse.
— É a única parte da casa que não carrega lembranças dele.
— Então é aqui que você deve recomeçar.
Sentei no banco e toquei o ventre.
— Às vezes, acho que estou criando essa criança com mais força do que amor.
— Às vezes, força é o amor que a dor deixa pra trás.
Olhei pra ela e sorri. — Você sempre tem uma resposta pra tudo, né?
— Não pra tudo. — Riu. — Mas já vivi o suficiente pra saber que nenhuma mulher renasce igual depois de quebrar.
O vento trouxe o cheiro de terra molhada.
Por um instante, tudo pareceu silencioso e leve.
Eu respirava, e era o suficiente.
Antes de anoitecer, ela entrou pra preparar algo pra comer.
O cheiro de arroz e alho fritando encheu a casa.
Um cheiro simples, de lar, de pertencimento.
Algo que o luxo nunca conseguiu me dar.
— Eu precisava disso — confessei, enquanto ela mexia a panela.
— Do quê?
— Do barulho da sua presença.
Ela riu, sem olhar pra mim. — A maternidade é solitária, filha. Mesmo quando há amor.
— Eu já sinto isso.
— E vai sentir mais. — Parou, me encarou. — Mas não é uma solidão triste. É uma solidão que ensina.
Peguei o prato das mãos dela e sentei à mesa.
Comi devagar, sentindo o gosto de casa.
Depois do jantar, subimos pro quarto.
Ela me ajudou a dobrar algumas roupas, arrumar o berço que eu começava a montar aos poucos.
Quando tocou a pequena manta sobre a cama, o olhar dela se encheu de lágrimas.
— Ele vai nascer cercado de amor — disse. — Mesmo que o pai ainda não saiba o que isso significa.
— E se ele nunca souber?
— Então vai aprender olhando pra você.
Abracei minha mãe.
Longo, apertado, silencioso.
O tipo de abraço que me lembrava que eu ainda podia ser filha, mesmo sendo mãe.
Quando ela se preparava pra ir embora, o céu já estava escuro.
A chuva fina voltava, insistente, como se o universo tivesse se acostumado a chorar junto comigo.
Acompanhei-a até a porta.
— Vai ficar bem? — perguntou.
— Vou tentar.
— Não tente. Faça. — Ela segurou meu rosto. — E se sentir vontade de chorar, chore. Mas não por ele.
— Prometo.
— Prometa alto.
Respirei fundo. — Eu não vou mais chorar por ele.
Ela sorriu, orgulhosa. — Agora sim, reconheço minha filha.
O farol do carro dela iluminou o portão, e por um instante, fiquei ali, parada, vendo as luzes sumirem no horizonte.
O som do motor se misturou à chuva, e o coração apertou.
Mas, pela primeira vez, o aperto não era de perda.
Era de saudade boa.
Voltei pra dentro.
A casa estava silenciosa, mas diferente.
A presença dela havia deixado algo no ar — uma leveza, uma lembrança de que ainda havia vida depois da dor.
Fui até o quarto e sentei na cama.
A chuva batia na janela, e o vento balançava as cortinas.
Toquei o ventre e sorri.
— A vovó é incrível, né? — sussurrei. — Prometo que você vai conhecer ela logo.
Fechei os olhos e deixei o sono vir.
Sonhei com minha mãe segurando o bebê, cantando baixinho, sorrindo pra mim.
Um sonho simples.
Mas, pela primeira vez em muito tempo, bonito.
Antes de o amanhecer chegar, acordei com um som suave — o vento passando pelas árvores, o som distante da cidade acordando.
Peguei o diário e escrevi:
Hoje, a casa voltou a ter cheiro de vida.
Minha mãe disse que o amor de mãe nasce junto com o medo.
Ela está certa.
Mas se o medo for o preço pra amar esse bebê, então eu pago com gratidão.
Fechei o caderno e olhei pela janela.
O céu começava a clarear.
E, pela primeira vez, eu não me senti sozinha.
Não porque alguém ficou.
Mas porque, enfim, eu fiquei comigo.