Sozinha na Mansão

1089 Words
O som da chuva ainda estava ali. Mas, sem ele, a casa parecia maior — e mais fria. Leonardo havia partido há quatro dias. Nenhuma mensagem. Nenhuma ligação. Nenhuma explicação. Apenas o silêncio. Um silêncio que preenchia tudo: os corredores, os cômodos, o meu peito. No começo, achei que seria um alívio. Mas a solidão é traiçoeira — ela se disfarça de paz até que o eco do próprio pensamento começa a te sufocar. Passei as manhãs tentando fingir que a vida seguia normal. Tomava café sozinha, lia os jornais dele, observava os retratos nas paredes. Tudo nele era presença — mesmo ausente. A cada canto da casa, havia um vestígio. O cheiro do perfume no armário. O relógio esquecido sobre a mesa. O copo de whisky vazio no bar. Coisas pequenas que gritavam o que ele não teve coragem de dizer. No quarto de hóspedes, o espelho refletia uma mulher diferente. Meus cabelos estavam mais longos, o rosto mais pálido. Mas algo em mim crescia, pulsando — não só a criança, mas a coragem. Toquei o ventre e fechei os olhos. — Oi, meu amor. — sussurrei. — Está ouvindo? A casa é grande demais, mas a mamãe está aqui. Um pequeno arrepio percorreu minha pele. Falar com o bebê se tornou um ritual silencioso, quase sagrado. Como se, ao falar com ele, eu lembrasse a mim mesma que ainda existia. As tardes eram mais cruéis. O tempo passava devagar, arrastando lembranças que eu não queria reviver. Lembranças de um homem que dizia não saber amar, mas me beijava como quem implora pra ser salvo. Na noite do quarto dia, o enjoo voltou. Forte, insistente. Corri até o banheiro e me apoiei na pia. O espelho me devolveu um rosto cansado, mas decidido. Depois de alguns minutos, lavei o rosto e respirei fundo. — Vai passar — murmurei. — A gente vai aguentar. Saí do banheiro e encontrei a mesa do jantar posta — como todos os dias. Os empregados obedeciam a rotina mesmo sem o patrão em casa. E aquilo me irritava. Aquela casa vivia de aparências, até no silêncio. Sentei à mesa e olhei para o prato à minha frente. A comida estava fria. Comer sozinha nunca doía tanto quanto naquele instante. Fechei os olhos e ouvi a voz dele, ecoando na memória: “Eu não quero ser pai.” As palavras voltaram como lâminas. Mas, ao invés de me sangrarem, me fortaleceram. Eu já não precisava mais da aprovação dele pra existir. No quinto dia, decidi andar pelo jardim. O sol finalmente apareceu, tímido, quebrando a monotonia cinza. Descalcei os sapatos e deixei os pés tocarem a grama úmida. Por um instante, senti algo parecido com liberdade. A vida dentro de mim parecia pulsar mais forte, como se dissesse: “continue.” Mas a liberdade também traz lembranças. E, sem perceber, olhei para o banco de madeira perto da fonte — o mesmo onde ele me beijou pela primeira vez. O mesmo banco que agora parecia um túmulo. Sentei ali, as mãos no ventre, e chorei em silêncio. Não de dor, mas de cansaço. Cansaço de lutar contra um homem que nem estava mais ali pra ouvir. À noite, voltei pro quarto. A cama parecia enorme. Os lençóis frios. As janelas abertas deixavam o vento entrar, carregando o cheiro de chuva e lembrança. Peguei o diário e escrevi: Ele se foi. E a casa continua viva, como se zombasse da minha solidão. Mas há algo que ele não sabe — o silêncio dele me ensinou a me ouvir. E, pela primeira vez, minha voz não precisa da dele pra existir. Fechei o caderno e deixei sobre a mesinha. Deitei e olhei o teto por longos minutos. A lua atravessava a cortina, iluminando meu rosto. Era estranho: mesmo sozinha, eu me sentia acompanhada. Talvez fosse o bebê. Talvez fosse a força que eu jurava não ter. Na manhã seguinte, acordei com o som do celular vibrando. O número era o dele. O coração disparou antes que eu pudesse raciocinar. Atendi. — Leonardo? Silêncio. E então, uma voz feminina. — Ele não pode falar agora. Meu corpo congelou. — Quem está falando? Do outro lado, uma risada leve. — Camila. O nome soou como veneno. A ex dele. A mulher que, mesmo ausente, nunca deixou de rondar nossa história. — O que está fazendo com o telefone dele? — perguntei, tentando controlar o tremor. — Ele esqueceu no quarto — respondeu, com um tom provocante. — Ou talvez não tenha esquecido. Engoli em seco. — Onde ele está? — Comigo. Silêncio. O tipo de silêncio que destrói o pouco que restou de fé. Ela continuou: — Achei que devia saber. Afinal, vocês têm um… acordo, não é? As palavras dela caíram como ácido. Antes que eu pudesse responder, ela desligou. Fiquei parada, o celular na mão, o coração em pedaços. Por um instante, desejei gritar, quebrar tudo, chorar. Mas não fiz nada disso. Apenas sentei na cama, respirei fundo e sussurrei: — Obrigada por me mostrar quem ele ainda é. As lágrimas vieram depois. Mas eram diferentes — não de desespero, e sim de libertação. À tarde, arrumei as gavetas. Recolhi tudo o que me lembrava dele: camisas, gravatas, fotografias. Coloquei tudo numa caixa e deixei no corredor. Não como um ato de raiva, mas de despedida. Eu não precisava mais de fantasmas dividindo o teto comigo. O corpo doía, a cabeça pesava, mas o coração estava leve. Porque, pela primeira vez, eu sabia o que precisava fazer: viver. Peguei o diário e escrevi: Hoje descobri que ele não estava só. Mas, curiosamente, eu também não. Porque dentro de mim, há alguém que depende de mim pra ser feliz. E esse alguém é o motivo pelo qual eu nunca mais vou me ajoelhar diante de homem nenhum. Fechei o caderno e sorri entre as lágrimas. O vento entrou pela janela, balançando as cortinas. O som da chuva voltou — suave, quase carinhoso. Encostei a cabeça no travesseiro e sussurrei pro bebê: — A mamãe prometeu que ia ser forte. E vai cumprir. O coração batia calmo. A dor ainda existia, mas já não me paralisava. E, no fundo, eu sabia: o amor que ele rejeitou seria exatamente o que me salvaria. Naquela noite, sonhei com o futuro. Com um quarto pequeno, risadas, o som de passos miúdos correndo pela casa. Acordei chorando. Não de tristeza, mas de esperança. A solidão ainda estava ali. Mas, agora, ela tinha outro nome: recomeço. E o recomeço sempre nasce do fim.
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