Dormi m*l.
Ou melhor, não dormi.
Passei a noite inteira revirando cada palavra, cada toque, cada olhar daquela maldita noite.
O vinho ainda queimava na garganta, mas o que mais queimava era o que veio depois.
O beijo.
Aquele beijo.
Não devia ter acontecido — e, ainda assim, foi o que mais desejei desde que entrei nessa casa.
Amanheceu chovendo.
O som da água batendo nas janelas era o mesmo da noite passada, como se o mundo insistisse em repetir o que eu tentava apagar.
Vesti uma blusa leve, calça escura e prendi o cabelo num coque apressado.
Não queria vê-lo.
Não queria nem ouvir o nome dele.
Mas o destino, c***l como sempre, não me dava escolha.
Ao descer, o encontrei na sala, de camisa branca, as mangas dobradas, o café na mão.
Sereno, como se nada tivesse acontecido.
— Bom dia — disse, sem me olhar.
— Está fingindo normalidade muito bem.
— É o que CEOs fazem.
— E monstros.
Ele ergueu os olhos devagar. — Ainda me acha um monstro?
— Agora tenho certeza.
— Porque te beijei?
— Porque me confundiu.
Ele riu, baixo. — Achei que fosse difícil de manipular.
— E sou.
— Então por que ainda está tremendo?
A xícara quase escorregou da minha mão.
— Está delirando.
— Estou observando.
— O senhor devia observar o próprio reflexo.
— Já observei. O problema é que, quando olho no espelho, vejo você.
As palavras me atingiram como um golpe.
Virei o rosto, tentando disfarçar o rubor que subia.
Mas ele notou. Sempre nota.
— O que quer de mim, Leonardo? — perguntei, cansada. — Que tipo de jogo é esse?
— Nenhum.
— Mente m*l.
— Minto quando preciso. Agora, não.
— Então diga a verdade.
Ele pousou a xícara na mesa e se aproximou.
Devagar. Seguro.
Como quem sabe o que provoca.
— A verdade é que eu não devia querer você. — A voz dele era baixa, quase um sussurro. — Mas quero.
Dei um passo pra trás. — Pare.
— Não posso.
— Pode, sim.
— Você acha que é simples?
— Acho que o senhor complica tudo.
— Eu complico porque te olho e esqueço de quem sou.
Fiquei em silêncio.
Não havia resposta pra isso.
O coração batia descompassado, e cada palavra parecia arrastar um pedaço de mim.
— Ontem foi um erro — murmurei. — Nada além disso.
— Então me olhe nos olhos e diga que não sentiu nada.
Ergui o olhar.
E menti.
— Não senti nada.
Mas ele deu um meio sorriso.
— Ainda mente m*l.
O silêncio que veio depois foi pior que qualquer briga.
Ele deu mais um passo.
E mais um.
Até que a distância entre nós sumiu.
— Leonardo... — Tentei dizer, mas a voz falhou.
— Não fala o meu nome assim.
— Assim como?
— Como se fosse um pecado.
— É.
— Então cometa.
Antes que eu pudesse reagir, ele me puxou.
Não com violência — com urgência.
O beijo aconteceu rápido, intenso, inevitável.
O corpo respondeu antes que o orgulho pudesse impedir.
Senti o gosto do café, o calor das mãos dele na minha cintura.
O mundo se apagou.
O ar desapareceu.
E, por um instante, só existia aquilo — o toque, o som do coração, a loucura.
Afastei-me bruscamente.
— Isso tem que parar.
— Já tentou parar um incêndio com as mãos nuas?
— Eu não sou seu incêndio.
— Não? — Ele se aproximou de novo. — Então por que queima quando eu chego perto?
O corpo respondeu com um arrepio que me traiu.
Fechei os olhos, tentando conter o caos.
— Você me odeia, lembra? — sussurrei.
— O ódio é só a primeira fase.
— E a segunda?
— É o que vem agora.
Ele segurou meu queixo com delicadeza, e o olhar se suavizou por um instante.
— Eu nunca quis isso, Isabella. Mas não consigo voltar atrás.
— O senhor sempre consegue tudo.
— Menos te esquecer.
Senti o ar sumir outra vez.
Não havia nada de arrogante naquela frase.
Era uma confissão.
Crua. Verdadeira.
Mas a verdade não cura.
A verdade destrói.
Empurrei-o com força.
— Não ouse dizer isso de novo.
— Por quê?
— Porque me enfraquece.
Ele respirou fundo. — Não era minha intenção.
— Então qual era? Me usar até eu não saber quem sou?
— Era te fazer sentir.
— Eu já sinto demais.
— Então sinta isso também.
E me beijou de novo.
Dessa vez, não resisti.
Foi intenso, desesperado, confuso.
Um beijo que misturava tudo o que nunca deveria ter acontecido.
Quando nos separamos, o mundo parecia girar.
O ar estava pesado, o corpo em chamas.
A pele dele ainda roçava na minha, e o perfume o cercava como uma armadilha.
— Isso não é amor — murmurei.
— Eu sei.
— É destruição.
— E, mesmo assim, você não se afasta.
— Porque ainda acredito que posso sair inteira.
Ele riu, baixo. — Boa sorte.
Afastei-me, os olhos marejados.
— O senhor vai acabar me odiando.
— Já me odeio.
— Então por que continua?
— Porque, quando te beijo, é a única hora em que não sinto culpa por existir.
As lágrimas caíram antes que eu conseguisse conter.
Ele ergueu a mão, como se fosse secá-las, mas hesitou.
— Vá. — Disse, por fim. — Antes que eu faça algo que destrua os dois.
Virei as costas, sem olhar pra trás.
Mas, no fundo, sabia que o estrago já estava feito.
Tranquei-me no quarto e desabei no chão.
As mãos tremiam, o corpo ainda ardia.
O beijo — aquele beijo — me perseguia como um fantasma.
Fechei os olhos e revivi cada segundo.
A raiva, o calor, a entrega.
E percebi que já não conseguia separar o que era ódio do que era desejo.
Odiar era fácil.
Difícil era admitir que, mesmo depois de tudo, ele ainda me fazia sentir viva.
Horas depois, ouvi batidas leves na porta.
— Isabella? — a voz dele. — Está acordada?
— Não quero falar.
Silêncio.
E depois, o som da voz dele, mais baixo:
— Eu não devia ter te beijado.
Não respondi.
— Mas se disser que se arrependeu... eu acredito. — A voz vacilou. — Mesmo que doa.
Nada.
Silêncio total.
Ele esperou alguns segundos, e então ouvi o som dos passos se afastando.
Me aproximei da porta, o coração disparado, a respiração curta.
Mas não a abri.
Não dessa vez.
Encostei a testa na madeira fria e sussurrei pra mim mesma:
— Eu não vou me perder por ele.
Mas no fundo, sabia que já estava perdida.
Naquela madrugada, sentei na cama e escrevi no diário:
O beijo dele ainda está em mim.
Não consigo apagá-lo.
E talvez não queira.
O problema é que o que começa com desejo... sempre termina em dor.
Fechei o caderno, apaguei a luz e me deitei.
Mas o sono não veio.
Só o som distante da voz dele, ecoando na mente:
“O ódio é só a primeira fase.”
E, por mais que eu negasse, sabia que ele tinha razão.
Porque a linha entre o que eu sentia e o que temia já não existia mais.