Leonardo e a Dor do Passado

1403 Words
Não dormi. A cabeça latejava, o corpo pesava e a alma parecia em ruínas. A cada vez que fechava os olhos, via meu pai mentindo… ou Leonardo dizendo a verdade. E isso doía mais do que qualquer ferida. Passei a madrugada andando pelo quarto, sem rumo. Quando o sol começou a nascer, eu ainda estava acordada, encarando a parede como se ela tivesse respostas. Mas tudo o que encontrei foi o mesmo silêncio. No andar de baixo, ouvi o som de passos. Respirei fundo e desci. Leonardo estava sentado na sala, com uma xícara de café nas mãos. Camisa cinza, cabelo bagunçado, olhar distante. Um homem que parecia pronto pra comandar o mundo… e ao mesmo tempo, prestes a desabar. — Está cedo — murmurei. — Nunca é cedo pra quem não dorme. — Então estamos empatados. Ele olhou pra mim. O olhar dele estava diferente — cansado, sem o brilho arrogante de sempre. Havia algo ali. Algo humano. — Sonhou com ele? — perguntou. — Não. — Cruzei os braços. — Com a culpa. — Culpa é uma péssima companhia. — A sua deve ser fiel. Ele soltou um suspiro, como quem aceita o golpe. — Sim. É. A sinceridade na voz dele me pegou desprevenida. Sentei no sofá oposto, sem saber o que dizer. — Sabe o que é engraçado? — ele continuou. — As pessoas olham pra mim e pensam que nasci pra vencer. Que sou feito de pedra, incapaz de sentir. — E não é? — Eu era. — Tomou um gole do café. — Até o dia em que perdi tudo. — Tudo? Ele me olhou, um sorriso triste. — Meu pai. Fiquei em silêncio. Nunca o tinha ouvido falar sobre a própria família. — Ele era um homem duro — disse Leonardo. — O tipo que acreditava que amor enfraquecia. Cresci ouvindo que demonstrar afeto era sinal de fraqueza. Que chorar era coisa de gente pequena. — E o senhor acreditou? — Acreditei. Até ele morrer sozinho, cercado de dinheiro e ódio. O tom da voz dele mudou. Baixo, rouco. Como se cada palavra pesasse toneladas. — Eu estava lá — continuou. — No hospital. Ele segurou minha mão e disse: “Prometa que nunca vai precisar de ninguém.” E eu prometi. Fechei os olhos por um segundo. Era a primeira vez que eu o via sem a máscara. — Desde então, cumpro essa promessa. Não confio, não dependo, não amo. — E acha que isso é força? — Acho que é sobrevivência. — Parece mais solidão. Ele me encarou. E por um instante, o homem que me prendeu parecia tão perdido quanto eu. — Por que está me contando isso? — perguntei. — Porque você me lembra o que eu mais odeio em mim mesmo. — E o que seria? — O impulso de sentir. As palavras ficaram no ar, pesadas. Senti o coração acelerar, mas não sabia se era pena, raiva ou algo pior. — O senhor não é o único com fantasmas, Leonardo. — Eu sei. — O olhar dele amoleceu. — E talvez por isso a gente se destrua tão bem. O dia seguiu lento, carregado de silêncio. Mas não era o mesmo silêncio de antes. Agora havia algo diferente — uma tensão que não doía tanto quanto antes, mas incomodava por ser… real. No fim da tarde, eu estava no jardim, tentando respirar um pouco, quando ele apareceu. — Fugindo de mim de novo? — perguntou, parado perto da escada. — Fugindo do que restou de mim. Ele desceu os degraus devagar. — O que restou é o que te mantém viva. — O senhor fala como se entendesse de sobrevivência. — Eu entendo. — Então deve saber que às vezes sobreviver significa mentir pra si mesmo. — Ou matar o que sente. — Ele deu um meio sorriso. — Somos bons nisso. — Não me coloque no mesmo nível que o senhor. — Não preciso. Já está. A arrogância voltou por um segundo, mas sem a crueldade de antes. Era quase provocação. Quase curiosidade. — O que quer de mim, afinal? — perguntei. — Quero entender por que ainda está aqui. — Porque não tenho pra onde ir. — Poderia fugir. — Já tentei. Ele se aproximou um passo. — E por que voltou? — Porque não gosto de dever nada a ninguém. Nem mesmo a um monstro. Ele parou. E pela primeira vez, vi um traço de dor atravessar o rosto dele. — Eu não pedi pra ser seu carrasco. — Mas assumiu o papel com prazer. — Não. — O olhar dele era sincero. — Assumi porque era o único jeito de não ser destruído primeiro. — O senhor sempre tem uma justificativa pra tudo, não é? — Quando a dor é antiga, as justificativas são o que sobram. A voz dele saiu quase num sussurro. E eu senti que, naquele instante, Leonardo Valença não estava falando comigo — mas com o próprio passado. Mais tarde, durante o jantar, o silêncio entre nós não era desconforto. Era trégua. E isso, por si só, era estranho demais. — Isabella — disse ele de repente, enquanto cortava a carne. — Sabe o que eu mais odeio? — Imagino que seja gente. — Quase. — Ele ergueu o olhar. — Promessas. — Engraçado. Eu também. — Porque sempre são quebradas. — Ou porque sempre cobram demais. Ele fez um leve aceno de cabeça, concordando. — Talvez as duas coisas. Por um momento, sorrimos. Um sorriso curto, discreto, quase humano. E eu percebi que o monstro também sabia sorrir — só que isso o deixava mais perigoso. — O senhor devia parar de fugir do passado — disse. — Um dia ele vai bater à porta. — Já bateu. — Ele pousou o garfo. — E entrou sem pedir licença. — O que quer dizer com isso? — Nada. — Limpou os lábios com o guardanapo. — Apenas que você ainda não sabe tudo sobre o seu pai. Meu corpo gelou. — O que está escondendo agora? — Quando for a hora, vai saber. — Eu estou cansada de enigmas. — Então aprenda a ter paciência. — Eu já aprendi. — Cruzei os braços. — Foi o senhor quem me ensinou. Ele sorriu, de canto. — Pelo menos alguma coisa boa eu fiz. — Boa? — Ri, sarcástica. — O senhor me ensinou a não confiar em ninguém. — Então estamos quites. As palavras ficaram pairando no ar, e percebi que, de algum modo, ele não estava errado. Talvez eu realmente estivesse começando a me parecer com ele. Mais tarde, já no quarto, ouvi uma batida leve na porta. — Isabella — a voz dele, calma, do outro lado. — Posso entrar? — Não. Silêncio. Mas ele entrou mesmo assim. — O que o senhor quer? — perguntei, irritada. — Apenas isso. — Estendeu um envelope. — Chegou agora há pouco. Peguei o envelope, sem entender. Era uma carta. O nome do remetente me fez congelar: Rogério Monteiro. Olhei pra Leonardo. — O senhor abriu? — Não. — E saiu, sem dizer mais nada. Sentei na cama e encarei o papel por longos minutos antes de criar coragem pra abrir. "Minha filha, sei que talvez você me odeie. Mas precisa entender: o que fiz não foi por ganância. Foi por medo. Sua mãe devia dinheiro a gente perigosa. Eu tentei resolver e acabei piorando tudo. Leonardo não é o inimigo. Ele foi o único que não deixou que te tirassem de mim. Só depois percebi o preço que ele cobraria. Cuidado, filha. Ele nunca faz nada sem um motivo. Mas também nunca mente quando se trata do que quer. Um dia você vai entender." As lágrimas caíram antes que eu pudesse conter. Guardei a carta e fiquei ali, em silêncio, tentando processar cada palavra. Ele não era inocente. Mas também não era o vilão da história. E Leonardo… Leonardo estava em algum lugar entre os dois. Naquela noite, deitada no escuro, pensei em tudo o que ouvira. Pela primeira vez, vi o homem que arruinou minha vida como algo mais do que um inimigo. Vi alguém que também carregava feridas, culpas e promessas quebradas. E foi isso que me assustou. Porque eu sabia que o primeiro passo pra perdoar alguém… é começar a compreendê-lo. Mas amar o próprio carrasco? Isso seria loucura. E, talvez, era exatamente pra lá que eu estava indo.
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