O telefone tocou quando o mundo inteiro dormia.
O som cortou o silêncio da madrugada como uma sirene, e o coração disparou antes mesmo que eu atendesse.
— Alô? — a voz saiu trêmula.
— Isabella? — era a voz de Doralice, a vizinha da minha mãe. — Desculpa ligar a essa hora, mas… é sobre a dona Helena.
O chão desapareceu sob meus pés.
— O que aconteceu?
— Ela desmaiou na rua. Levaram pro hospital aqui da cidade. Tá consciente, mas… parece fraca.
Senti o ar sumir dos pulmões.
O bebê se mexeu, como se sentisse o medo que me atravessava.
— Obrigada, Dora. Eu vou praí agora.
O relógio marcava quase três da manhã.
A cidade estava mergulhada em sombras, e o som da chuva batendo na janela era o único que me acompanhava.
Arrumei uma bolsa às pressas: roupas simples, a manta branca que minha mãe tricotara pro bebê, e o diário.
O coração batia rápido demais.
“Não posso dirigir assim”, pensei.
Mas não havia tempo pra esperar ninguém.
Peguei as chaves, o casaco e saí.
O portão da mansão rangeu ao abrir.
Por um instante, olhei pra trás.
Aquela casa enorme, fria, parecia me observar — um cárcere que agora eu deixava pra trás por amor.
A estrada era longa e vazia.
Os faróis cortavam o nevoeiro, e a cada quilômetro a angústia crescia.
O rádio estava desligado.
O único som era o do motor e o das lágrimas que eu tentava conter.
A cada curva, uma lembrança.
A risada de minha mãe na cozinha, o cheiro de bolo no forno, as tardes em que ela penteava meu cabelo e dizia que a vida era feita de recomeços.
“Não me deixa sozinha, mãe…” murmurei, segurando o volante com força.
Quando cheguei ao hospital, o céu já clareava.
O cheiro de éter e café velho me fez sentir o peso da realidade.
A recepcionista me reconheceu.
— A senhora Monteiro? Está no quarto 204.
Subi as escadas correndo.
A cada degrau, uma prece.
Quando abri a porta, o coração parou.
Helena estava ali.
Pálida, magra, conectada a tubos e monitores que apitavam num ritmo lento.
Mas ainda assim, havia serenidade no rosto dela.
— Mãe…
Ela abriu os olhos e sorriu.
— Eu sabia que você viria.
Aproximei-me e segurei a mão dela.
Estava fria, mas viva.
— O que foi isso? — perguntei, tentando conter as lágrimas.
— O médico disse que é o coração. — respondeu com calma. — Velho e cansado, igual à dona dele.
— Não fala assim.
— Shh… — ela me tocou o rosto. — Eu tô bem, meu amor. Só preciso de você aqui um pouquinho.
Fiquei horas ao lado dela.
Sem dizer muito.
Às vezes, o silêncio é o único idioma que o amor entende.
O tempo passava devagar.
Os médicos entravam, saíam, falavam em repouso, exames, medicamentos.
Eu só conseguia pensar no quanto o medo de perdê-la doía.
Em algum momento, ela dormiu.
Fiquei observando o peito subir e descer, o som leve da respiração.
E foi ali, naquela cadeira dura, que percebi o quanto eu ainda era filha.
Independente de tudo, ainda era aquela menina que procurava abrigo no colo dela.
No fim da tarde, Helena acordou.
— Tô com fome — disse, sorrindo fraco.
— Já mandei buscar canja.
— Canja? — ela arqueou a sobrancelha. — Eu tô doente, não morta.
Ri entre lágrimas. — Você não muda, mãe.
— Ainda bem. — respondeu. — Porque se eu mudasse, não teria te ensinado a ser teimosa assim.
Durante o jantar, ela me observou em silêncio.
O olhar dela sempre via além.
— Você tá diferente, sabia? — comentou.
— Como assim?
— Mais mulher. Mais dona de si.
Sorri, sem saber o que responder.
— Esse bebê te fez florescer. — disse, com ternura. — E pensar que eu tive medo por você.
— Medo?
— De te ver se perdendo num amor doente.
Engoli em seco. — Acho que eu precisei me perder pra me encontrar.
Helena assentiu.
— A dor ensina o que o amor disfarça.
O silêncio voltou, mas dessa vez era leve.
Ela pegou minha mão.
— Me promete uma coisa?
— Qualquer coisa.
— Não viva com medo de amar de novo.
Olhei pra ela, surpresa.
— Mãe, eu… não quero mais isso.
— Você não quer o amor que te destrói. — corrigiu. — Mas o amor verdadeiro… ele cura.
A voz dela era doce, mas firme.
— Você é forte, Isabella. Mas não deixa que a força vire armadura.
Ser forte também é deixar alguém te abraçar quando o mundo desaba.
Senti as lágrimas caírem sem resistência.
— Eu prometo.
Ela sorriu, e naquele sorriso havia paz.
— Então já posso descansar tranquila.
Mais tarde, saí do quarto e caminhei pelo corredor.
As luzes frias, o cheiro de desinfetante, os passos ecoando — tudo parecia um sonho r**m.
Encostei na parede e deixei as lágrimas escorrerem.
Por um instante, senti o bebê se mover.
Toquei a barriga, e um calor me invadiu.
— Viu só, meu amor? — sussurrei. — A vovó é forte. Igual a gente.
No dia seguinte, os exames mostraram melhora.
O médico explicou que o quadro era estável, mas que exigia cuidados.
Helena, teimosa, já queria sair do hospital.
— A comida daqui é r**m demais. — disse, rindo. — Quero o meu café coado e a minha rede na varanda.
— Só quando o médico autorizar.
— E desde quando eu espero autorização pra viver?
Balancei a cabeça, sorrindo.
Era a mesma mulher de sempre — e era assim que eu a queria.
Antes de partir, fiquei sozinha com ela por um momento.
O sol atravessava a janela e iluminava o rosto dela.
Helena parecia mais serena do que nunca.
— Vai ficar bem, mãe. — prometi.
— E você também. — respondeu. — Não esquece de viver.
Beijei sua testa.
— Eu te amo.
— Eu também, minha menina. E amo esse pequenino aí dentro.
Ela tocou minha barriga, e o bebê se mexeu.
Rimos juntas.
Era como se ele tivesse dito “eu também”.
Peguei a estrada de volta ao anoitecer.
O céu estava pintado de vermelho e roxo, o ar fresco batendo no rosto.
Por um momento, tudo pareceu em paz.
Mas, no retrovisor, algo me chamou a atenção.
Faróis.
Um carro escuro, seguindo a distância.
Acelerei um pouco.
Ele também.
O coração começou a bater mais rápido.
Por alguns quilômetros, achei que fosse paranoia.
Até que reconheci o modelo.
Aquele carro… era dele.
Leonardo.
O peito se apertou.
As mãos tremeram no volante.
Mas, curiosamente, não era medo que eu sentia.
Era confusão.
Por que ele estava ali?
Me seguindo?
Cuidando de longe?
Ou tentando, finalmente, fazer o que sempre evitou: me procurar?
Respirei fundo, o olhar fixo na estrada.
O farol dele continuava firme no retrovisor, como uma presença silenciosa.
E então, pela primeira vez em muito tempo, eu não acelerei pra fugir.
Deixei que ele me seguisse.
Talvez, enfim, fosse hora de deixá-lo encontrar o caminho de volta.