A chuva começou quando ela saiu da cidade.
Eu vinha dirigindo a uns cinquenta metros de distância, observando apenas o brilho das lanternas vermelhas do carro dela à frente.
Não sei o que esperava encontrar.
Talvez paz.
Talvez perdão.
Talvez só a certeza de que ela ainda existia — viva, respirando, mesmo que longe de mim.
Mas o que encontrei foi o medo.
Aquele tipo de medo que corrói a razão e apaga tudo em volta.
Quando o carro dela começou a diminuir a velocidade, algo em mim travou.
As luzes de freio piscaram uma, duas, três vezes.
Depois, o veículo parou completamente no acostamento.
— Isabella… — murmurei, sentindo o coração disparar.
Parei atrás dela e desci antes mesmo de desligar o motor.
A chuva batia com força, o vento cortava o rosto, e cada passo parecia pesar uma tonelada.
Corri até o carro dela, gritando seu nome.
Nada.
Bati no vidro.
Lá dentro, o rosto dela pálido, o olhar perdido.
E o sangue.
Por um segundo, o mundo parou.
Tudo o que eu era — o controle, o orgulho, a raiva — desabou ali, diante daquela cena.
Abri a porta com força.
— Isabella! — toquei o rosto dela, tremendo. — Olha pra mim!
Ela tentou falar, mas a voz falhou.
— Dói…
O sangue escorria pelas pernas, a respiração entrecortada.
O desespero subiu à garganta.
Abracei-a, sentindo o corpo pequeno e frágil entre meus braços.
O calor do sangue misturado à água da chuva me fez perder o fôlego.
— Eu tô aqui. — sussurrei, tentando manter a calma que eu não tinha. — Eu tô aqui agora.
A coloquei no banco do passageiro, ajustando o cinto com as mãos tremendo.
Fechei a porta, corri pro outro lado e entrei.
O carro arrancou com um som agudo de pneus contra o asfalto molhado.
A chuva era tanta que o limpador m*l dava conta.
Os faróis m*l atravessavam a cortina d’água.
Mas eu não podia parar.
— Fica acordada, Isabella. — pedi, sem tirar os olhos da estrada. — Fala comigo.
Ela gemia baixo, com as mãos no ventre.
Cada vez que ela se calava, meu coração perdia o compasso.
— Aguenta. — repeti, como uma oração. — Eu tô aqui.
As mãos dela se moveram lentamente até tocarem a minha no câmbio.
Fracas. Geladas.
Mas ainda vivas.
— Eu… tô com medo, Leo…
A voz dela quebrou algo dentro de mim.
Medo.
A mulher que eu havia jogado no inferno me confessava medo — e ainda me chamava pelo nome.
Engoli o choro que subia.
— Eu sei. — murmurei. — Mas eu não vou deixar nada acontecer com vocês.
O hospital apareceu como um farol no meio do caos.
Dirigi pelo acostamento, buzinei, gritei.
A chuva batia no vidro como tiros.
O som do motor parecia o de um coração em pânico.
Estacionei de qualquer jeito, abri a porta e corri até o outro lado.
O corpo dela parecia mais leve nos meus braços, mas o peso da culpa me esmagava.
— Ajuda! — gritei, invadindo a emergência. — Ela tá grávida! Tá sangrando!
Enfermeiros correram, colocaram-na na maca, e eu fui junto.
Mas uma das médicas me barrou na porta.
— O senhor precisa esperar aqui fora.
— Eu não vou deixar ela sozinha!
— Senhor, por favor! — gritou a médica. — A gente precisa de espaço!
Fiquei parado, o som da porta batendo na minha cara, e senti o chão desaparecer.
Minutos.
Horas.
Não sei quanto tempo passou.
O relógio marcava o tempo, mas o coração não acompanhava.
Sentei no chão frio da recepção, encharcado, sem conseguir respirar direito.
As mãos tremiam.
A cabeça latejava.
E a culpa… a culpa era um grito que não cessava.
“Foi você.”
“Foi você quem a destruiu.”
“Você matou o que ela era e agora quase matou o que ela carrega.”
Fechei os olhos, e as imagens vieram.
O dia do casamento.
O olhar vazio dela.
O “eu nunca vou me casar com você.”
A raiva que substituí o amor.
A arrogância.
As palavras que ferem mais que socos.
E ali, pela primeira vez, eu quis trocar tudo o que tinha — dinheiro, nome, poder — só pra ouvir a voz dela de novo.
Quando a médica voltou, o mundo parou outra vez.
Ela tirou a máscara e suspirou.
— A mãe e o bebê estão bem. — disse. — O sangramento foi contido a tempo.
Eu fechei os olhos e apoiei as mãos nos joelhos.
As pernas tremiam.
Senti algo quente escorrer pelo rosto e percebi que estava chorando.
Chorar.
Eu.
O homem que aprendeu que lágrimas eram sinal de fraqueza.
— Posso vê-la? — perguntei, sem voz.
— Ela ainda tá sedada, mas sim. — a médica respondeu. — Entrando à esquerda, quarto 12.
Entrei devagar.
O quarto era branco demais, silencioso demais.
Ela estava lá, deitada, o rosto pálido, os cabelos bagunçados.
Tinha tubos, soro, e mesmo assim… ainda era a mulher mais bonita que eu já vi.
Aproximei-me devagar.
Cada passo doía.
Sentei ao lado da cama, segurei a mão dela com cuidado.
Fria.
Mas viva.
Passei o polegar sobre os dedos dela e senti o coração apertar.
— Você não devia ter feito isso sozinha. — murmurei. — Mas eu sei que a culpa é minha.
A voz falhou.
— Eu devia ter estado aqui. Desde o começo.
Fiquei ali, olhando o rosto dela, os cílios longos, a respiração lenta.
E entendi algo simples e devastador:
Eu a amava.
Não do jeito torto de antes.
Não com posse.
Mas com medo.
Com gratidão.
Com o coração aberto e doído.
Horas se passaram.
O som do monitor cardíaco era o único ruído no quarto.
O tic-tac constante me lembrava de que ela estava ali.
E o bebê também.
Encostei a cabeça na beira da cama, exausto.
Não dormi — só fiquei ali, ouvindo o som que mais importava no mundo.
Em algum momento, ela se mexeu.
Os olhos se abriram, lentos, confusos.
— Isabella… — sussurrei, endireitando-me.
Ela piscou, tentando entender onde estava.
— O bebê?
Sorri, sem conter as lágrimas. — Tá bem. Vocês dois estão.
Ela respirou fundo, fechando os olhos outra vez.
— Achei que… ia perder.
— Eu também. — minha voz falhou. — Achei que ia te perder.
Ela me olhou com aquele misto de força e fragilidade que sempre me desmontava.
— Você… me seguiu?
Assenti. — Eu precisava te ver.
— E agora? — perguntou, com uma ponta de ironia fraca. — Vai me culpar por ter te dado um susto?
Sorri de canto. — Não. Eu só… nunca mais quero sentir isso de novo.
Ficamos em silêncio por um tempo.
As palavras não precisavam preencher nada.
O som do coração dela — e o do bebê — bastavam.
Toquei o ventre com cuidado, hesitante.
Ela não afastou minha mão.
O bebê se mexeu, leve, como se respondesse.
Engoli o choro.
— É uma menina.
Ela me olhou, surpresa. — Como sabe?
— Eu não sei. — sorri. — Mas sinto.
Os olhos dela brilharam por um instante, e eu percebi o que aquele pequeno movimento significava: vida.
Esperança.
Segunda chance.
Quando a enfermeira entrou pra checar os aparelhos, eu me afastei.
Mas continuei ali, observando.
O rosto dela, o ventre, o fio do soro.
Tudo.
A cada respiração dela, uma parte do meu mundo voltava a girar.
E dentro de mim, algo nascia — algo que eu nunca tinha sentido antes.
Amor.
Não o tipo que exige.
O tipo que cuida.
O amanhecer chegou com o som da chuva cessando.
A luz fraca atravessava a janela e caía sobre o rosto dela.
Toquei os cabelos molhados de suor e falei, baixinho, pra não acordá-la:
— Eu não sei se você vai me perdoar algum dia.
Mas agora eu entendo o que é ter algo a perder.
E não vou perder vocês.
Beijei a testa dela e fechei os olhos por um segundo.
O ar cheirava a hospital e redenção.
E pela primeira vez em muito tempo, senti que o homem no espelho talvez ainda tivesse salvação.