Leonardo Salva a Filha

1359 Words
A chuva começou quando ela saiu da cidade. Eu vinha dirigindo a uns cinquenta metros de distância, observando apenas o brilho das lanternas vermelhas do carro dela à frente. Não sei o que esperava encontrar. Talvez paz. Talvez perdão. Talvez só a certeza de que ela ainda existia — viva, respirando, mesmo que longe de mim. Mas o que encontrei foi o medo. Aquele tipo de medo que corrói a razão e apaga tudo em volta. Quando o carro dela começou a diminuir a velocidade, algo em mim travou. As luzes de freio piscaram uma, duas, três vezes. Depois, o veículo parou completamente no acostamento. — Isabella… — murmurei, sentindo o coração disparar. Parei atrás dela e desci antes mesmo de desligar o motor. A chuva batia com força, o vento cortava o rosto, e cada passo parecia pesar uma tonelada. Corri até o carro dela, gritando seu nome. Nada. Bati no vidro. Lá dentro, o rosto dela pálido, o olhar perdido. E o sangue. Por um segundo, o mundo parou. Tudo o que eu era — o controle, o orgulho, a raiva — desabou ali, diante daquela cena. Abri a porta com força. — Isabella! — toquei o rosto dela, tremendo. — Olha pra mim! Ela tentou falar, mas a voz falhou. — Dói… O sangue escorria pelas pernas, a respiração entrecortada. O desespero subiu à garganta. Abracei-a, sentindo o corpo pequeno e frágil entre meus braços. O calor do sangue misturado à água da chuva me fez perder o fôlego. — Eu tô aqui. — sussurrei, tentando manter a calma que eu não tinha. — Eu tô aqui agora. A coloquei no banco do passageiro, ajustando o cinto com as mãos tremendo. Fechei a porta, corri pro outro lado e entrei. O carro arrancou com um som agudo de pneus contra o asfalto molhado. A chuva era tanta que o limpador m*l dava conta. Os faróis m*l atravessavam a cortina d’água. Mas eu não podia parar. — Fica acordada, Isabella. — pedi, sem tirar os olhos da estrada. — Fala comigo. Ela gemia baixo, com as mãos no ventre. Cada vez que ela se calava, meu coração perdia o compasso. — Aguenta. — repeti, como uma oração. — Eu tô aqui. As mãos dela se moveram lentamente até tocarem a minha no câmbio. Fracas. Geladas. Mas ainda vivas. — Eu… tô com medo, Leo… A voz dela quebrou algo dentro de mim. Medo. A mulher que eu havia jogado no inferno me confessava medo — e ainda me chamava pelo nome. Engoli o choro que subia. — Eu sei. — murmurei. — Mas eu não vou deixar nada acontecer com vocês. O hospital apareceu como um farol no meio do caos. Dirigi pelo acostamento, buzinei, gritei. A chuva batia no vidro como tiros. O som do motor parecia o de um coração em pânico. Estacionei de qualquer jeito, abri a porta e corri até o outro lado. O corpo dela parecia mais leve nos meus braços, mas o peso da culpa me esmagava. — Ajuda! — gritei, invadindo a emergência. — Ela tá grávida! Tá sangrando! Enfermeiros correram, colocaram-na na maca, e eu fui junto. Mas uma das médicas me barrou na porta. — O senhor precisa esperar aqui fora. — Eu não vou deixar ela sozinha! — Senhor, por favor! — gritou a médica. — A gente precisa de espaço! Fiquei parado, o som da porta batendo na minha cara, e senti o chão desaparecer. Minutos. Horas. Não sei quanto tempo passou. O relógio marcava o tempo, mas o coração não acompanhava. Sentei no chão frio da recepção, encharcado, sem conseguir respirar direito. As mãos tremiam. A cabeça latejava. E a culpa… a culpa era um grito que não cessava. “Foi você.” “Foi você quem a destruiu.” “Você matou o que ela era e agora quase matou o que ela carrega.” Fechei os olhos, e as imagens vieram. O dia do casamento. O olhar vazio dela. O “eu nunca vou me casar com você.” A raiva que substituí o amor. A arrogância. As palavras que ferem mais que socos. E ali, pela primeira vez, eu quis trocar tudo o que tinha — dinheiro, nome, poder — só pra ouvir a voz dela de novo. Quando a médica voltou, o mundo parou outra vez. Ela tirou a máscara e suspirou. — A mãe e o bebê estão bem. — disse. — O sangramento foi contido a tempo. Eu fechei os olhos e apoiei as mãos nos joelhos. As pernas tremiam. Senti algo quente escorrer pelo rosto e percebi que estava chorando. Chorar. Eu. O homem que aprendeu que lágrimas eram sinal de fraqueza. — Posso vê-la? — perguntei, sem voz. — Ela ainda tá sedada, mas sim. — a médica respondeu. — Entrando à esquerda, quarto 12. Entrei devagar. O quarto era branco demais, silencioso demais. Ela estava lá, deitada, o rosto pálido, os cabelos bagunçados. Tinha tubos, soro, e mesmo assim… ainda era a mulher mais bonita que eu já vi. Aproximei-me devagar. Cada passo doía. Sentei ao lado da cama, segurei a mão dela com cuidado. Fria. Mas viva. Passei o polegar sobre os dedos dela e senti o coração apertar. — Você não devia ter feito isso sozinha. — murmurei. — Mas eu sei que a culpa é minha. A voz falhou. — Eu devia ter estado aqui. Desde o começo. Fiquei ali, olhando o rosto dela, os cílios longos, a respiração lenta. E entendi algo simples e devastador: Eu a amava. Não do jeito torto de antes. Não com posse. Mas com medo. Com gratidão. Com o coração aberto e doído. Horas se passaram. O som do monitor cardíaco era o único ruído no quarto. O tic-tac constante me lembrava de que ela estava ali. E o bebê também. Encostei a cabeça na beira da cama, exausto. Não dormi — só fiquei ali, ouvindo o som que mais importava no mundo. Em algum momento, ela se mexeu. Os olhos se abriram, lentos, confusos. — Isabella… — sussurrei, endireitando-me. Ela piscou, tentando entender onde estava. — O bebê? Sorri, sem conter as lágrimas. — Tá bem. Vocês dois estão. Ela respirou fundo, fechando os olhos outra vez. — Achei que… ia perder. — Eu também. — minha voz falhou. — Achei que ia te perder. Ela me olhou com aquele misto de força e fragilidade que sempre me desmontava. — Você… me seguiu? Assenti. — Eu precisava te ver. — E agora? — perguntou, com uma ponta de ironia fraca. — Vai me culpar por ter te dado um susto? Sorri de canto. — Não. Eu só… nunca mais quero sentir isso de novo. Ficamos em silêncio por um tempo. As palavras não precisavam preencher nada. O som do coração dela — e o do bebê — bastavam. Toquei o ventre com cuidado, hesitante. Ela não afastou minha mão. O bebê se mexeu, leve, como se respondesse. Engoli o choro. — É uma menina. Ela me olhou, surpresa. — Como sabe? — Eu não sei. — sorri. — Mas sinto. Os olhos dela brilharam por um instante, e eu percebi o que aquele pequeno movimento significava: vida. Esperança. Segunda chance. Quando a enfermeira entrou pra checar os aparelhos, eu me afastei. Mas continuei ali, observando. O rosto dela, o ventre, o fio do soro. Tudo. A cada respiração dela, uma parte do meu mundo voltava a girar. E dentro de mim, algo nascia — algo que eu nunca tinha sentido antes. Amor. Não o tipo que exige. O tipo que cuida. O amanhecer chegou com o som da chuva cessando. A luz fraca atravessava a janela e caía sobre o rosto dela. Toquei os cabelos molhados de suor e falei, baixinho, pra não acordá-la: — Eu não sei se você vai me perdoar algum dia. Mas agora eu entendo o que é ter algo a perder. E não vou perder vocês. Beijei a testa dela e fechei os olhos por um segundo. O ar cheirava a hospital e redenção. E pela primeira vez em muito tempo, senti que o homem no espelho talvez ainda tivesse salvação.
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