A Noite Inesquecível

1209 Words
A chuva parecia ter vindo para me castigar. Fazia horas que ela caía sem parar, lavando o mundo lá fora, mas nada limpava o que eu sentia por dentro. A cada trovão, eu lembrava do toque dele. A cada raio, do beijo que nunca deveria ter acontecido. Fechei o diário e tentei dormir. Mas o corpo ainda queimava — não de febre, e sim de lembranças. Aquelas mãos, aquele olhar, aquele som rouco da voz dele quando disse “não consigo te esquecer”. Eu queria odiá-lo. Mas o problema era simples e c***l: já não sabia como. O relógio marcava quase meia-noite quando ouvi passos no corredor. A porta se abriu sem aviso. E ele estava ali. Leonardo. O homem que eu jurava detestar. O mesmo que me fazia perder o ar só por existir. — O que está fazendo aqui? — perguntei, tentando soar firme. — Tentando te esquecer. — A voz dele era grave, cansada. — E falhando. Levantei da cama, o coração disparado. — Saia. — Não consigo. — Leonardo, por favor... — Eu já tentei o “por favor”. Agora, estou apenas tentando ser honesto. — E o que é honestidade pra você? Me prender, me beijar e fingir que nada acontece? — Honestidade é admitir que você é o único erro que eu não quero consertar. As palavras me atingiram como um golpe. — Isso é insano. — Então me chama de louco. Mas não mente pra si mesma. — O que o senhor quer de mim? — Uma noite. — A voz dele quase falhou. — Só uma. — Uma noite pra quê? — Pra parar de fingir que não sinto nada. Fiquei sem ar. O silêncio entre nós era tão denso que dava pra ouvir o som da chuva batendo na janela. O coração batia forte, irregular, como se soubesse o que viria. — E depois dessa noite? — perguntei, com a voz trêmula. — O que sobra? — Nós. — Ele deu um passo. — Ou o que restar da gente. O corpo inteiro gritava pra fugir. Mas as pernas não obedeciam. Quando percebi, ele já estava diante de mim. Molhado, tenso, com o olhar de quem não dormia há dias. — Eu não devia — sussurrei. — Eu também não. E então ele me beijou. Dessa vez, não havia hesitação. Era fome, raiva, necessidade. Um beijo que pedia perdão e vingança ao mesmo tempo. As mãos dele subiram pela minha nuca, pelos ombros, pela cintura. E, pela primeira vez, eu não quis resistir. Porque resistir a ele era como tentar deter o próprio fogo. Senti o gosto do vinho da noite anterior ainda na boca dele, o cheiro de chuva, o calor do corpo. O mundo desapareceu. Não havia passado, nem culpa, nem regras. Só dois corpos se reconhecendo no meio do caos. Ele me ergueu, e quando nossas bocas se separaram, o olhar dele estava cheio de algo que eu nunca tinha visto antes: fragilidade. — Me odeie amanhã — murmurou. — Mas agora... não. — Não sei se vou conseguir. — Então não tenta. O toque dele era firme e delicado ao mesmo tempo. Cada movimento parecia uma confissão muda. Como se dissesse: “eu tentei não sentir, mas você aconteceu.” Quando as roupas caíram no chão, o som da chuva ficou mais alto. A cada trovão, um arrepio. A cada suspiro, um pedido que não se dizia em voz alta. Não era amor. Não ainda. Mas também não era só desejo. Era o encontro de duas dores, duas feridas abertas tentando se curar uma na outra. Ele me olhou, e por um instante o homem frio desapareceu. — Eu te odeio por isso — confessou. — Por quê? — Porque me faz sentir vivo. O toque dele era fogo e cura ao mesmo tempo. Quando o mundo voltou ao lugar, tudo que restava era respiração e silêncio. Ficamos deitados, lado a lado, sem falar nada. A tempestade lá fora começava a cessar, mas dentro de mim, o caos só aumentava. Virei o rosto. — Isso muda tudo. — Eu sei. — E o que vai fazer agora? — Não sei. — A voz dele era baixa. — Mas não consigo me arrepender. O silêncio nos envolveu de novo. Por um instante, me senti em paz. Como se, por algumas horas, aquela guerra tivesse dado trégua. Fechei os olhos e deixei o sono me arrastar. Pela primeira vez desde o casamento, dormi sentindo que não estava sozinha. Acordei com o sol batendo nas cortinas. O lado dele da cama estava vazio. Por um segundo, achei que tudo tivesse sido um sonho. Mas o lençol amassado e o perfume dele no ar diziam o contrário. Levantei devagar, o corpo ainda pesado de lembranças. A cabeça girava, o coração doía. Mas, por algum motivo, eu sorria. Abri a janela e deixei o vento entrar. Lá embaixo, ouvi vozes — os empregados, e entre elas, a dele. Leonardo estava no jardim, falando ao telefone, de terno, impecável como sempre. Mas o olhar… estava longe. Como se o homem que mandava no mundo não soubesse o que fazer com o próprio coração. Desci as escadas em silêncio. Quando ele me viu, desligou o telefone. Por um momento, apenas nos encaramos. O tempo parou ali. — Dormiu bem? — perguntou, a voz controlada. — O suficiente pra lembrar. — Do quê? — Da noite. Ele desviou o olhar. — Não devia ter acontecido. As palavras foram como gelo. — Então é isso? Fingir que nada existiu? — É mais fácil. — Pra quem? — Pra nós dois. — Não fale por mim. O silêncio que veio depois foi mais c***l que a rejeição. Porque, por um instante, eu tinha acreditado. — Leonardo, olhe pra mim. — A voz saiu firme. — Diga que foi só um erro. Ele hesitou. Mas, quando falou, o tom era frio. — Foi um erro. O mundo parou. E eu, que sempre achei que sabia lidar com dor, descobri que ainda podia sangrar. Assenti, tentando engolir as lágrimas . — Então viva com o seu acerto. Dei as costas e subi as escadas. Cada degrau doía como se fosse um adeus. Fechei a porta do quarto e desabei no chão. Não chorei alto. Apenas deixei as lágrimas caírem no silêncio. A noite tinha sido linda. Mas também tinha sido o começo do fim. Horas depois, vi o carro dele sair pela janela. A chuva tinha voltado. O som do motor se misturava com o da tempestade — e algo em mim sabia que, depois daquela noite, nada seria igual. Peguei o diário e escrevi, com a mão trêmula: Ele me tocou como se quisesse se curar, e eu o beijei como quem quer esquecer. Mas o que veio depois não foi cura nem esquecimento. Foi a certeza de que, entre o ódio e o amor, há uma linha tão fina que, quando cruzada, não há volta. Fechei o caderno, e o choro veio silencioso. Porque o que era pra ser só uma noite virou uma lembrança que eu nunca conseguiria apagar. E, no fundo, uma parte de mim já sabia: essa noite seria o começo de tudo o que ainda estava por vir.
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