A chuva parecia ter vindo para me castigar.
Fazia horas que ela caía sem parar, lavando o mundo lá fora, mas nada limpava o que eu sentia por dentro.
A cada trovão, eu lembrava do toque dele.
A cada raio, do beijo que nunca deveria ter acontecido.
Fechei o diário e tentei dormir.
Mas o corpo ainda queimava — não de febre, e sim de lembranças.
Aquelas mãos, aquele olhar, aquele som rouco da voz dele quando disse “não consigo te esquecer”.
Eu queria odiá-lo.
Mas o problema era simples e c***l: já não sabia como.
O relógio marcava quase meia-noite quando ouvi passos no corredor.
A porta se abriu sem aviso.
E ele estava ali.
Leonardo.
O homem que eu jurava detestar.
O mesmo que me fazia perder o ar só por existir.
— O que está fazendo aqui? — perguntei, tentando soar firme.
— Tentando te esquecer. — A voz dele era grave, cansada. — E falhando.
Levantei da cama, o coração disparado. — Saia.
— Não consigo.
— Leonardo, por favor...
— Eu já tentei o “por favor”. Agora, estou apenas tentando ser honesto.
— E o que é honestidade pra você? Me prender, me beijar e fingir que nada acontece?
— Honestidade é admitir que você é o único erro que eu não quero consertar.
As palavras me atingiram como um golpe.
— Isso é insano.
— Então me chama de louco. Mas não mente pra si mesma.
— O que o senhor quer de mim?
— Uma noite. — A voz dele quase falhou. — Só uma.
— Uma noite pra quê?
— Pra parar de fingir que não sinto nada.
Fiquei sem ar.
O silêncio entre nós era tão denso que dava pra ouvir o som da chuva batendo na janela.
O coração batia forte, irregular, como se soubesse o que viria.
— E depois dessa noite? — perguntei, com a voz trêmula. — O que sobra?
— Nós. — Ele deu um passo. — Ou o que restar da gente.
O corpo inteiro gritava pra fugir.
Mas as pernas não obedeciam.
Quando percebi, ele já estava diante de mim.
Molhado, tenso, com o olhar de quem não dormia há dias.
— Eu não devia — sussurrei.
— Eu também não.
E então ele me beijou.
Dessa vez, não havia hesitação.
Era fome, raiva, necessidade.
Um beijo que pedia perdão e vingança ao mesmo tempo.
As mãos dele subiram pela minha nuca, pelos ombros, pela cintura.
E, pela primeira vez, eu não quis resistir.
Porque resistir a ele era como tentar deter o próprio fogo.
Senti o gosto do vinho da noite anterior ainda na boca dele, o cheiro de chuva, o calor do corpo.
O mundo desapareceu.
Não havia passado, nem culpa, nem regras.
Só dois corpos se reconhecendo no meio do caos.
Ele me ergueu, e quando nossas bocas se separaram, o olhar dele estava cheio de algo que eu nunca tinha visto antes: fragilidade.
— Me odeie amanhã — murmurou. — Mas agora... não.
— Não sei se vou conseguir.
— Então não tenta.
O toque dele era firme e delicado ao mesmo tempo.
Cada movimento parecia uma confissão muda.
Como se dissesse: “eu tentei não sentir, mas você aconteceu.”
Quando as roupas caíram no chão, o som da chuva ficou mais alto.
A cada trovão, um arrepio.
A cada suspiro, um pedido que não se dizia em voz alta.
Não era amor.
Não ainda.
Mas também não era só desejo.
Era o encontro de duas dores, duas feridas abertas tentando se curar uma na outra.
Ele me olhou, e por um instante o homem frio desapareceu.
— Eu te odeio por isso — confessou.
— Por quê?
— Porque me faz sentir vivo.
O toque dele era fogo e cura ao mesmo tempo.
Quando o mundo voltou ao lugar, tudo que restava era respiração e silêncio.
Ficamos deitados, lado a lado, sem falar nada.
A tempestade lá fora começava a cessar, mas dentro de mim, o caos só aumentava.
Virei o rosto. — Isso muda tudo.
— Eu sei.
— E o que vai fazer agora?
— Não sei. — A voz dele era baixa. — Mas não consigo me arrepender.
O silêncio nos envolveu de novo.
Por um instante, me senti em paz.
Como se, por algumas horas, aquela guerra tivesse dado trégua.
Fechei os olhos e deixei o sono me arrastar.
Pela primeira vez desde o casamento, dormi sentindo que não estava sozinha.
Acordei com o sol batendo nas cortinas.
O lado dele da cama estava vazio.
Por um segundo, achei que tudo tivesse sido um sonho.
Mas o lençol amassado e o perfume dele no ar diziam o contrário.
Levantei devagar, o corpo ainda pesado de lembranças.
A cabeça girava, o coração doía.
Mas, por algum motivo, eu sorria.
Abri a janela e deixei o vento entrar.
Lá embaixo, ouvi vozes — os empregados, e entre elas, a dele.
Leonardo estava no jardim, falando ao telefone, de terno, impecável como sempre.
Mas o olhar… estava longe.
Como se o homem que mandava no mundo não soubesse o que fazer com o próprio coração.
Desci as escadas em silêncio.
Quando ele me viu, desligou o telefone.
Por um momento, apenas nos encaramos.
O tempo parou ali.
— Dormiu bem? — perguntou, a voz controlada.
— O suficiente pra lembrar.
— Do quê?
— Da noite.
Ele desviou o olhar. — Não devia ter acontecido.
As palavras foram como gelo.
— Então é isso? Fingir que nada existiu?
— É mais fácil.
— Pra quem?
— Pra nós dois.
— Não fale por mim.
O silêncio que veio depois foi mais c***l que a rejeição.
Porque, por um instante, eu tinha acreditado.
— Leonardo, olhe pra mim. — A voz saiu firme. — Diga que foi só um erro.
Ele hesitou.
Mas, quando falou, o tom era frio.
— Foi um erro.
O mundo parou.
E eu, que sempre achei que sabia lidar com dor, descobri que ainda podia sangrar.
Assenti, tentando engolir as lágrimas
.
— Então viva com o seu acerto.
Dei as costas e subi as escadas.
Cada degrau doía como se fosse um adeus.
Fechei a porta do quarto e desabei no chão.
Não chorei alto.
Apenas deixei as lágrimas caírem no silêncio.
A noite tinha sido linda.
Mas também tinha sido o começo do fim.
Horas depois, vi o carro dele sair pela janela.
A chuva tinha voltado.
O som do motor se misturava com o da tempestade — e algo em mim sabia que, depois daquela noite, nada seria igual.
Peguei o diário e escrevi, com a mão trêmula:
Ele me tocou como se quisesse se curar, e eu o beijei como quem quer esquecer.
Mas o que veio depois não foi cura nem esquecimento.
Foi a certeza de que, entre o ódio e o amor, há uma linha tão fina que, quando cruzada, não há volta.
Fechei o caderno, e o choro veio silencioso.
Porque o que era pra ser só uma noite virou uma lembrança que eu nunca conseguiria apagar.
E, no fundo, uma parte de mim já sabia:
essa noite seria o começo de tudo o que ainda estava por vir.