A Chegada do Sétimo Mês

1401 Words
Sete meses. Quando ouvi o médico dizer essa frase, percebi que o tempo passou — e eu sobrevivi a cada dia. Sete meses de uma gestação que não foi só do corpo, mas da alma. De uma mulher que aprendeu a respirar sozinha, a dormir com o silêncio e a não esperar o som de passos no corredor. A barriga cresceu, e junto com ela, o espaço dentro de mim pra recomeçar. O bebê se mexia com mais força, como se lembrasse todos os dias que a vida ainda pulsava, mesmo quando o amor parecia adormecido. A rotina virou um ritual. Acordar cedo, caminhar pela varanda, preparar o café, responder e-mails. Eu tinha voltado a trabalhar remotamente para uma empresa de design — nada comparado à antiga vida de luxo, mas era minha. Cada tarefa era um lembrete de que eu ainda sabia quem era, mesmo depois de ter sido moldada, ferida e reconstruída pelas mãos de outro. Na mesa, papéis e croquis se misturavam a exames de ultrassom. Entre linhas e formas, havia um pontinho de luz — o coração que batia dentro de mim, firme e teimoso. Leonardo não dormia mais no mesmo quarto. Ele respeitou quando pedi espaço. Mas o silêncio dele era diferente agora: não era ausência, era arrependimento. De vez em quando, deixava flores sobre a mesa da cozinha. Rosas brancas. Sem bilhetes, sem palavras. Só o gesto. Pequeno, mas cheio de tentativa. E, por mais que eu não dissesse nada, eu via. Via o esforço. Via o homem tentando aprender a cuidar sem controlar. Naquela manhã, acordei com um movimento forte na barriga. O bebê parecia inquieto. Toquei o ventre e sorri. — Ei, calma aí, pequeno. — sussurrei. — A mamãe tá aqui. Fiquei imaginando se ele já reconhecia minha voz, se conseguia sentir quando eu chorava, se entendia o que era amor antes mesmo de nascer. Às vezes, penso que ele é a única parte de mim que nunca duvidou de nada. E, por isso, me ensina mais sobre fé do que qualquer palavra. Fui até o jardim. O sol começava a surgir entre as árvores, e o cheiro de terra molhada preencheu o ar. Sentei no banco de madeira e fechei os olhos. Por alguns minutos, esqueci tudo. O nome dele. As manchetes. As feridas. Fiquei só eu e o som do mundo acordando devagar. Mas então ouvi passos atrás de mim. Mesmo sem olhar, reconheci o som. O andar firme, mas hesitante. — Posso sentar? — a voz dele veio baixa. Assenti. Leonardo se sentou ao meu lado, mantendo uma distância respeitosa. O silêncio durou longos segundos. Ele olhou pra frente, depois pra mim. — O médico ligou. Disse que tá tudo bem com vocês. — Sim. — respondi. — Ele disse que o bebê é forte. — Igual à mãe. — murmurou. Sorri de leve, sem ironia. — Não, Leonardo. Ele é forte apesar da mãe. Ele suspirou. — Você sempre fala como se não merecesse o que tem de bom. — Eu só aprendi a não depender disso. — olhei pra ele. — Às vezes, o que é bom se cansa da gente. — Eu não me cansei. — disse, firme. — Então aprenda a me deixar ser quem eu sou. — pedi, com calma. — Porque o amor que prende não é amor, é medo. Ele assentiu, e o olhar dele foi o mais sincero que já vi. Não havia arrogância, nem defesa — só um homem tentando aprender a amar direito. Nos dias seguintes, a convivência virou algo estranho: uma coreografia silenciosa. Ele me levava às consultas, mas ficava do lado de fora. Esperava eu sair, perguntava se estava tudo bem e me deixava ir. Sem insistir, sem invadir. Era como se estivesse aprendendo a amar de longe. E eu… talvez estivesse aprendendo a perdoar devagar. Certa tarde, choveu. O tipo de chuva que não assusta, só lava. Fiquei na varanda, vendo as gotas caírem. Leonardo apareceu na porta, segurando uma manta. — Você vai pegar frio. — Eu tô bem. — respondi. Mesmo assim, ele veio e colocou a manta sobre meus ombros. O toque foi leve, quase tímido. Não havia desejo, nem tensão — só cuidado. E aquilo, de alguma forma, me tocou mais do que qualquer beijo. — Você sabe o que eu mais odeio em mim? — ele perguntou, quebrando o silêncio. — O quê? — Eu só aprendo quando perco. Olhei pra ele. — Então aprende direito agora, porque eu não vou voltar a ser a mesma. Ele assentiu, com os olhos marejados. — Eu sei. E, mesmo assim, ainda quero estar perto. Nos dias seguintes, percebi pequenas mudanças. Ele chegava mais cedo do trabalho, almoçava comigo, falava pouco. Às vezes, apenas sentava perto, enquanto eu desenhava. Não tentava falar sobre o passado. Parecia entender que o perdão precisa de espaço — e de silêncio. Uma noite, acordei com o bebê chutando forte. O susto me fez levantar devagar e acender a luz. O movimento dentro de mim era intenso, quase como um lembrete de que havia vida onde antes só havia dor. Fiquei acariciando a barriga até que ouvi uma batida leve na porta. — Isabella? — a voz dele, baixa. — Tá tudo bem? — Tá sim. — sorri. — Ele só resolveu dançar. Leonardo abriu a porta devagar, hesitando. — Posso…? Assenti. Ele se aproximou, ajoelhou ao lado da cama e colocou a mão sobre minha barriga. O bebê se mexeu na mesma hora. O olhar dele se iluminou. — Ele… ele sentiu. — Sempre sente. — respondi, com ternura. — É o jeito dele de dizer que tá aqui. Os olhos de Leonardo marejaram. — Eu queria ter estado em cada momento. — Você ainda pode estar nos próximos. — disse, calma. — Só precisa parar de tentar ser perfeito. Ele sorriu de leve, e o som do coração do bebê preencheu o silêncio. Pela primeira vez, não havia raiva, nem medo — só paz. As semanas passaram, e o ventre crescia mais a cada dia. Minha mãe começou a me visitar com frequência, trazendo comidas caseiras, conselhos e carinho. Era bom ter alguém que não me olhava com pena, mas com orgulho. — Você tá mais bonita. — ela disse, num desses dias. — Sabe o que é isso? Força. Sorri. — Acho que é amor próprio, mãe. — E esse amor aí — ela apontou pro ventre — vai te ensinar o resto. Olhei pra barriga e senti o bebê se mexer. Era como se ele soubesse. Às vezes, ainda lembro das dores. Do que ouvi, do que perdi, do que tive que engolir. Mas agora, essas lembranças não me definem. São cicatrizes, não feridas. E o amor? Ele ainda existe. Mas em outro lugar. Num canto calmo, esperando o momento certo pra ser refeito. Certa noite, antes de dormir, escrevi uma carta. Não pra Leonardo — pra mim mesma. “Querida Isabella, Você sobreviveu à dúvida, à rejeição e à solidão. Você foi ferida, mas não se perdeu. Seu corpo abriga uma nova vida e, com ela, a chance de nascer de novo. O perdão não é esquecimento. É liberdade. E o amor que vem depois da dor é o único que sabe o valor de ficar.” Dobrei o papel e guardei na gaveta. Era meu lembrete de que o passado não manda mais em mim. Na manhã seguinte, Leonardo apareceu na cozinha. Trazia um pequeno buquê de lavandas. — Achei que essas combinam mais com você do que as rosas. Peguei as flores, e um sorriso escapou. — Lavandas… — murmurei. — Paz. — É o que eu quero te dar. — respondeu ele. — Mesmo que nunca mais me queira. Olhei pra ele, e por um instante, o tempo parou. Porque havia algo diferente no olhar dele. Algo que eu nunca tinha visto antes: respeito. Enquanto ele saía, fiquei olhando as lavandas nas minhas mãos. Talvez o perdão começasse assim: em silêncio, com gestos pequenos. Toquei o ventre e senti o bebê se mover. — Tá vendo, meu amor? — sussurrei. — A vida tem um jeito bonito de recomeçar. O sol entrou pela janela, iluminando o chão. E, pela primeira vez, não pensei em dor. Pensei em futuro. Fechei os olhos e sorri. — Talvez o amor não tenha morrido. Só esteja esperando o momento certo pra nascer de novo.
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