O Desabafo de Isabella

1263 Words
Eu não dormi. Talvez porque o sono tenha medo de quem sente demais. Ou porque, às vezes, o silêncio da madrugada é o único que tem coragem de ouvir a dor que a gente esconde. Fiquei deitada, imóvel, olhando o teto. As sombras dançavam pelas paredes, e eu contava os segundos pra não enlouquecer. O som do relógio era o mesmo desde o dia em que ele duvidou de mim — constante, c***l, lembrando que o tempo passa mesmo quando o amor não consegue acompanhar. Na manhã seguinte, decidi que não dava mais pra calar. Não por vingança. Mas porque havia dentro de mim uma necessidade absurda de gritar, de devolver o que ele me jogou sem perceber: a dor. Leonardo estava no escritório, como sempre. Papeis espalhados, o computador ligado, mas os olhos dele perdidos em algum lugar que não era o presente. Quando entrei, ele levantou o olhar. A tensão era palpável. Ele pareceu pronto pra se defender, mas dessa vez, não havia julgamento — só eu. E a verdade que vinha com passos firmes. — A gente precisa conversar. — falei. Ele assentiu, sem dizer nada. Fechou o notebook e esperou. O silêncio entre nós era uma arena. — Você quer saber o que doeu? — comecei, a voz calma, mas cortante. — Não foi o teste. Nem as mentiras. Foi o fato de você ter me olhado nos olhos e duvidado de quem eu sou. Leonardo abaixou a cabeça. — Eu já pedi desculpas, Isabella. — E acha que um “desculpa” apaga o que aconteceu? — dei um passo à frente. — Você me fez acreditar que eu era pequena. Que eu precisava provar meu valor pra merecer o amor de alguém. E isso… — engoli o choro. — Isso foi o mais c***l que alguém já fez comigo. Ele tentou interromper. — Eu nunca quis te diminuir. — Mas diminuiu. — cortei, firme. — Cada vez que me olhou com desconfiança. Cada vez que me tratou como uma dívida. Você acha que eu não percebia? Que quando você dizia “não é pessoal”, eu não entendia que era exatamente isso — pessoal? As lágrimas começaram a cair, mas não parei. Porque pela primeira vez, eu não estava implorando pra ser ouvida. Eu estava me libertando. — Eu dormi do seu lado sentindo medo, Leonardo. Medo de respirar alto e te irritar. Medo de falar e ser julgada. Medo de sorrir e você achar que eu estava debochando da sua dor. Ele apertou os punhos, os olhos marejados. Mas não disse nada. — Eu vivi com medo de você. — continuei. — E o pior é que, no meio desse medo, eu ainda te amava. Amava o homem que eu achava que existia por baixo dessa armadura de arrogância. — Ele existe. — murmurou — Não. — balancei a cabeça. — Ele morreu no dia em que você pediu um teste pra acreditar em mim. Leonardo respirou fundo, tentando manter o controle. — Eu errei. Eu sei. Mas eu tava com raiva, com pressão, com medo… — Medo do quê? — interrompi. — De me amar? De admitir que alguém podia entrar no seu mundo sem precisar de um contrato, de uma assinatura, de um preço? Ele passou as mãos pelo cabelo, desesperado. — Eu fui um covarde. — Foi. — confirmei, sem hesitar. — Mas o que me destruiu não foi a covardia. Foi a sua frieza. Porque a frieza de quem a gente ama é o tipo de dor que não grita. Ela apodrece devagar. Dei alguns passos até a janela. A manhã lá fora estava clara, irônica. O mundo seguia como se nada tivesse acontecido. — Eu tentei ser a esposa que você queria. — disse, olhando o jardim. — Aquela que obedece, que entende, que se cala. Mas o que você nunca entendeu é que eu não nasci pra ser submissa. Eu nasci pra ser respeitada. — E você merece isso. — respondeu ele, num sussurro. Virei o rosto pra ele. — Tarde demais pra perceber. Leonardo se levantou devagar. — Eu não quero perder você. — Já perdeu. — respondi, sem raiva. — E não porque eu deixei de te amar, mas porque aprendi a me amar também. As lágrimas queimavam, mas eram diferentes. Eram de libertação. — Você fala como se eu fosse um monstro. — disse ele, com a voz falhando. — Não é um monstro, Leonardo. — sussurrei. — É só um homem que nunca aprendeu a amar sem medo de perder o controle. E eu cansei de viver num amor que me faz pedir permissão pra existir. Ele respirou fundo, se aproximando. — Eu quero tentar de novo. Do jeito certo. Olhei pra ele, e o silêncio se estendeu. Por um segundo, quase acreditei. Mas a lembrança do passado ainda sangrava demais. — Do jeito certo? — repeti. — Você só pode fazer certo quando entende o que quebrou. E você ainda não entende. A voz dele saiu embargada. — Me explica, então. O que eu quebrei? Sorri triste. — Eu. O ar ficou pesado. As palavras ecoaram entre nós, como uma sentença. — Você me quebrou quando me chamou de interesseira. Me quebrou quando ignorou as minhas lágrimas. Me quebrou quando fez eu me sentir culpada por estar grávida. E depois, me destruiu de vez quando pediu um exame pra acreditar no que o seu coração já devia saber. Ele fechou os olhos, como se cada palavra fosse um golpe. Mas eu continuei. — Eu fiquei sozinha nessa casa, Leonardo. Sozinha com meus enjoos, meus medos, minhas dúvidas. Falando com o bebê porque você não falava comigo. Dormindo do lado de um corpo que eu amava e que parecia de pedra. — Isabella… — Não. — interrompi. — Deixa eu terminar. Porque essa é a última vez que eu falo sobre isso. Engoli o choro, respirei fundo e deixei sair tudo. — Você me matou aos poucos. Não com violência, mas com indiferença. E agora quer que eu viva de novo no mesmo corpo que você destruiu. O silêncio que veio depois foi sepulcral. A verdade tinha peso. E ele, pela primeira vez, parecia sentir o próprio fardo. Leonardo se aproximou, os olhos marejados. — Eu mereço te perder. — Sim. — respondi, firme. — Mas isso não é castigo. É consequência. Ele assentiu, sem defesa. E eu percebi que não havia mais nada pra dizer. Fui até a porta. Antes de sair, me virei uma última vez. — Eu vou ter esse bebê, Leonardo. E vou dar a ele tudo o que você nunca me deu: segurança. Pode ficar com o seu arrependimento. Ele é a única coisa que ainda te pertence. Ele abaixou a cabeça, derrotado. E eu, pela primeira vez, saí daquela sala sem medo. No corredor, o som dos meus passos ecoava leve. Não era fuga. Era liberdade. Toquei o ventre e senti o bebê se mexer. Sorri entre lágrimas. — A gente conseguiu, meu amor. — sussurrei. — A gente sobreviveu a ele. E naquele instante, entendi o que o amor realmente era: não o que te prende, mas o que te devolve a coragem de seguir. Deixei a porta entreaberta. Atrás de mim, o silêncio dele preenchia o espaço. O homem que um dia me destruiu agora era só o eco do que sobrou. Mas dentro de mim, algo renascia. Talvez fosse esperança. Talvez fosse só o som de um coração que finalmente batia no ritmo certo. Fechei os olhos e respirei fundo. Pela primeira vez, respirar não doía.
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