Eu não dormi.
Talvez porque o sono tenha medo de quem sente demais.
Ou porque, às vezes, o silêncio da madrugada é o único que tem coragem de ouvir a dor que a gente esconde.
Fiquei deitada, imóvel, olhando o teto.
As sombras dançavam pelas paredes, e eu contava os segundos pra não enlouquecer.
O som do relógio era o mesmo desde o dia em que ele duvidou de mim — constante, c***l, lembrando que o tempo passa mesmo quando o amor não consegue acompanhar.
Na manhã seguinte, decidi que não dava mais pra calar.
Não por vingança.
Mas porque havia dentro de mim uma necessidade absurda de gritar, de devolver o que ele me jogou sem perceber: a dor.
Leonardo estava no escritório, como sempre.
Papeis espalhados, o computador ligado, mas os olhos dele perdidos em algum lugar que não era o presente.
Quando entrei, ele levantou o olhar.
A tensão era palpável.
Ele pareceu pronto pra se defender, mas dessa vez, não havia julgamento — só eu.
E a verdade que vinha com passos firmes.
— A gente precisa conversar. — falei.
Ele assentiu, sem dizer nada.
Fechou o notebook e esperou.
O silêncio entre nós era uma arena.
— Você quer saber o que doeu? — comecei, a voz calma, mas cortante. — Não foi o teste. Nem as mentiras.
Foi o fato de você ter me olhado nos olhos e duvidado de quem eu sou.
Leonardo abaixou a cabeça. — Eu já pedi desculpas, Isabella.
— E acha que um “desculpa” apaga o que aconteceu? — dei um passo à frente. — Você me fez acreditar que eu era pequena. Que eu precisava provar meu valor pra merecer o amor de alguém.
E isso… — engoli o choro. — Isso foi o mais c***l que alguém já fez comigo.
Ele tentou interromper. — Eu nunca quis te diminuir.
— Mas diminuiu. — cortei, firme. — Cada vez que me olhou com desconfiança. Cada vez que me tratou como uma dívida.
Você acha que eu não percebia? Que quando você dizia “não é pessoal”, eu não entendia que era exatamente isso — pessoal?
As lágrimas começaram a cair, mas não parei.
Porque pela primeira vez, eu não estava implorando pra ser ouvida.
Eu estava me libertando.
— Eu dormi do seu lado sentindo medo, Leonardo.
Medo de respirar alto e te irritar.
Medo de falar e ser julgada.
Medo de sorrir e você achar que eu estava debochando da sua dor.
Ele apertou os punhos, os olhos marejados.
Mas não disse nada.
— Eu vivi com medo de você. — continuei. — E o pior é que, no meio desse medo, eu ainda te amava.
Amava o homem que eu achava que existia por baixo dessa armadura de arrogância.
— Ele existe. — murmurou
— Não. — balancei a cabeça. — Ele morreu no dia em que você pediu um teste pra acreditar em mim.
Leonardo respirou fundo, tentando manter o controle.
— Eu errei. Eu sei. Mas eu tava com raiva, com pressão, com medo…
— Medo do quê? — interrompi. — De me amar?
De admitir que alguém podia entrar no seu mundo sem precisar de um contrato, de uma assinatura, de um preço?
Ele passou as mãos pelo cabelo, desesperado. — Eu fui um covarde.
— Foi. — confirmei, sem hesitar. — Mas o que me destruiu não foi a covardia. Foi a sua frieza.
Porque a frieza de quem a gente ama é o tipo de dor que não grita. Ela apodrece devagar.
Dei alguns passos até a janela.
A manhã lá fora estava clara, irônica.
O mundo seguia como se nada tivesse acontecido.
— Eu tentei ser a esposa que você queria. — disse, olhando o jardim. — Aquela que obedece, que entende, que se cala.
Mas o que você nunca entendeu é que eu não nasci pra ser submissa.
Eu nasci pra ser respeitada.
— E você merece isso. — respondeu ele, num sussurro.
Virei o rosto pra ele. — Tarde demais pra perceber.
Leonardo se levantou devagar.
— Eu não quero perder você.
— Já perdeu. — respondi, sem raiva. — E não porque eu deixei de te amar, mas porque aprendi a me amar também.
As lágrimas queimavam, mas eram diferentes.
Eram de libertação.
— Você fala como se eu fosse um monstro. — disse ele, com a voz falhando.
— Não é um monstro, Leonardo. — sussurrei. — É só um homem que nunca aprendeu a amar sem medo de perder o controle.
E eu cansei de viver num amor que me faz pedir permissão pra existir.
Ele respirou fundo, se aproximando. — Eu quero tentar de novo. Do jeito certo.
Olhei pra ele, e o silêncio se estendeu.
Por um segundo, quase acreditei.
Mas a lembrança do passado ainda sangrava demais.
— Do jeito certo? — repeti. — Você só pode fazer certo quando entende o que quebrou. E você ainda não entende.
A voz dele saiu embargada. — Me explica, então. O que eu quebrei?
Sorri triste. — Eu.
O ar ficou pesado.
As palavras ecoaram entre nós, como uma sentença.
— Você me quebrou quando me chamou de interesseira.
Me quebrou quando ignorou as minhas lágrimas.
Me quebrou quando fez eu me sentir culpada por estar grávida.
E depois, me destruiu de vez quando pediu um exame pra acreditar no que o seu coração já devia saber.
Ele fechou os olhos, como se cada palavra fosse um golpe.
Mas eu continuei.
— Eu fiquei sozinha nessa casa, Leonardo.
Sozinha com meus enjoos, meus medos, minhas dúvidas.
Falando com o bebê porque você não falava comigo.
Dormindo do lado de um corpo que eu amava e que parecia de pedra.
— Isabella…
— Não. — interrompi. — Deixa eu terminar. Porque essa é a última vez que eu falo sobre isso.
Engoli o choro, respirei fundo e deixei sair tudo.
— Você me matou aos poucos.
Não com violência, mas com indiferença.
E agora quer que eu viva de novo no mesmo corpo que você destruiu.
O silêncio que veio depois foi sepulcral.
A verdade tinha peso.
E ele, pela primeira vez, parecia sentir o próprio fardo.
Leonardo se aproximou, os olhos marejados.
— Eu mereço te perder.
— Sim. — respondi, firme. — Mas isso não é castigo. É consequência.
Ele assentiu, sem defesa.
E eu percebi que não havia mais nada pra dizer.
Fui até a porta.
Antes de sair, me virei uma última vez.
— Eu vou ter esse bebê, Leonardo. E vou dar a ele tudo o que você nunca me deu: segurança.
Pode ficar com o seu arrependimento. Ele é a única coisa que ainda te pertence.
Ele abaixou a cabeça, derrotado.
E eu, pela primeira vez, saí daquela sala sem medo.
No corredor, o som dos meus passos ecoava leve.
Não era fuga.
Era liberdade.
Toquei o ventre e senti o bebê se mexer.
Sorri entre lágrimas.
— A gente conseguiu, meu amor. — sussurrei. — A gente sobreviveu a ele.
E naquele instante, entendi o que o amor realmente era:
não o que te prende, mas o que te devolve a coragem de seguir.
Deixei a porta entreaberta.
Atrás de mim, o silêncio dele preenchia o espaço.
O homem que um dia me destruiu agora era só o eco do que sobrou.
Mas dentro de mim, algo renascia.
Talvez fosse esperança.
Talvez fosse só o som de um coração que finalmente batia no ritmo certo.
Fechei os olhos e respirei fundo.
Pela primeira vez, respirar não doía.