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Olhei a carta em cima da mesa e engoli em seco. Levantei os olhos para o homem sentado à minha frente, com um smoking, um relógio caro no pulso e um sorriso vitorioso no rosto. Podia ver minha insegurança refletida em seus olhos verdes.
- E então? – ele disse, me impulsionando a ir em frente.
Olhei ao redor. Havia mais três homens ao seu lado. Não eram amigos. Eram seguranças. Conhecia muito bem esse tipo de cara. Bonitos. Podres de ricos, sem nem fazer questão de esconder esse fato. Mas acima de tudo: apenas pareciam perigosos. E apenas pareciam inteligentes também. A verdade é que eu vivia de sua arrogância e espirito de grandeza.
- Já era – um dos seguranças comentou ao seu lado – Ela já perdeu. De novo.
Os outros riram.
Olhei para o homem à minha frente novamente. O sorriso no seu rosto não havia sumido. Dei mais uma olhada nas cartas em minhas mãos.
- Tenho que admitir que admiro sua garra – ele disse – Você é dura na queda. Se era isso que queria provar, já o fez – ele começou a puxar o dinheiro em cima da mesa para si – Não precisa perder mais.
Respirei fundo.
Era isso. Tinha acabado.
Para ele.
Levantei o rosto e dei um sorriso.
- Eu não joguei ainda.
Ele me encarou. Pude ver toda aquela segurança se dissipando dele enquanto meu sorriso aumentava e a máscara de garota indefesa se desfazia. Ele tinha caído direitinho. Eles sempre caíam.
Virei as cartas em cima da mesa e saboreei o olhar de derrota e surpresa no rosto de cada homem ao meu redor. Sempre era assim. Fácil demais.
Você apostava com uma grande quantidade de dinheiro na mão e um olhar desafiador. Eles riam de você por ser mulher. Você aumentava a aposta. Eles aceitavam, porque dinheiro era sua sina. A gente jogava. Eu ganhava. Eles não aceitavam perder e dobravam a aposta. Eu aceitava e perdia. Eles se vangloriavam. Eu dobrava a aposta mais uma vez. Eles topavam, e eu perdia de novo. Aumentava a aposta de novo. Eles cantavam vitória antes mesmo do jogo começar. E então eu levava todo o dinheiro deles para casa.
- Não pode ser! – o homem disse, os olhos arregalados e as mãos tremendo.
Levantei da cadeira e puxei o dinheiro para o meu lado.
- Sorte de principiante, hã? – sorri e comecei a botar o dinheiro dentro do meu vestido.
Ele não falou nada. Não moveu um músculo. Estava totalmente em choque, ainda encarando as cartas em cima da mesa. Não podia acreditar que tinha perdido.
Assim que terminei de guardar o dinheiro, me aproximei dele e passei a mão em seu braço delicadamente.
- Eu posso perder uma – falei – Duas. Até três jogadas – aproximei meus lábios se seu ouvido, sussurrando – Mas eu nunca perco o jogo.
Ele me olhou. Observei de perto o choque se transformar em raiva dentro dos seus olhos. Seu rosto se contorceu e, em um acesso de fúria, ele levantou rapidamente da cadeira, de modo brusco.
- Você me enganou! – ele gritou alto o suficiente para me deixar surda.
Apenas encarei ele, como se nada tivesse acontecido, e dei um sorriso de lado.
- Espero não ter te deixado liso – e essa foi a minha deixa.
Virei de costas e comecei a me dirigir lentamente até a saída. Não estava muito longe, mas eu sabia que antes de chegar ao meio do caminho eu teria que começar a correr.
- Você me paga! – ele gritou mais uma vez – Sua estúpida!
Apenas ri e tirei meus saltos, os jogando de lado no meio da multidão. Passei por uma mulher bêbada escorada no bar. Ela parecia nem saber onde estava.
- Olá – eu disse, sorrindo.
- Ela roubou meu relógio! – ouvi o cara gritar de longe – Peguem ela!
Olhei para o lado e vi os três seguranças correndo na minha direção. Algumas pessoas foram empurradas do meio do caminho e os gritos começaram. A garota bêbada se assustou ao meu lado.
Olhei para ela novamente.
- Você me empresta seus sapatos? – perguntei e me abaixei para tirar os sapatos dos pés dela – Obrigada.
Quando os caras estavam bem perto, apressei o passo e entrei em um corredor escuro. Antes de calçar os sapatos, tirei o vestido vermelho do corpo, ficando só com a saia curta e a regata amarela.
Ouvi mais gritos vindo do começo do corredor. Podia sentir eles se aproximando de mim.
- Saiam da frente! – um deles gritou, empurrando algumas pessoas do caminho.
Enquanto corria, passei por um casal de lésbicas se beijando. Uma delas tinha uma bolsa grande o suficiente nos braços.
Esbarrei nelas e puxei a bolsa de seu braço.
- Hei! – a morena protestou.
- Você se importa? – sorri e saí com sua bolsa, tirando o dinheiro dos meus p****s e enfiando dentro dela.
Calcei os sapatos e, já do lado de fora, joguei a peruca loira em uma lixeira.
Mal tinha saído pela porta quando ela foi escancarada novamente e os três brutamontes saíram de lá, ofegantes e atentos a qualquer loira vestida de vermelho que passasse por ali.
Estiquei a mão para chamar um táxi enquanto eles passavam pelas minhas costas, sem ao menos me notar, correndo na direção oposta. Infeliz seria a loira que decidisse sair de vermelho essa noite.
- Qual o destino? – o taxista perguntou assim que entrei no carro.
Olhei para o relógio de ouro na minha mão e sorri para ele pelo retrovisor.
- O mais longe possível daqui.
...
Ouvi um zumbido vir de longe, mas a princípio ignorei, podia ser apenas um sonho. Só que sonhos não costumavam me incomodar.
O barulho se repetiu novamente. Abri os olhos de leve, ainda sonolenta, e bati a mão com força no despertador ao lado da minha cama. Virei de lado e voltei a fechar os olhos. Alguns segundos depois o barulho voltou a me incomodar.
Resmunguei.
- Mas que droga! – procurei pelo meu celular no meio dos lençóis – Onde está você?
O barulho continuou até eu achar o celular e perceber que não vinha dele.
Sentei na cama e me atentei ao som. Vinha da cozinha. Era o interfone.
Levantei praguejando da cama e fui atender.
- Eu espero que você tenha seguro de vida, filho da p**a – atendi o interfone – Quem é?!
- Meu Deus! Que m*l humor é esse? – revirei os olhos ao reconhecer a voz – E por que tanta demora para atender?
- Não sei, Melissa! Talvez porque eu estivesse dormindo, quem sabe?!
- Deus, isso é por que você não transou ontem à noite?
Bufei de raiva e apertei o botão para abrir o portão antes de bater o interfone com força na cara dela. Se tinha uma coisa que eu detestava, essa coisa era ser acordada cedo em pleno sábado.
Olhei para o relógio na parede da cozinha. Era uma da tarde. Tudo bem, talvez cedo não fosse a palavra adequada, mas qual é... Eu tinha tido uma noite muito longa.
Ouvi os passos de Melissa no corredor e abri a porta quando ela estava prestes a bater. Ela me deu um sorriso.
- Você está com uma cara ótima! – ela disse, entrando no apartamento.
Bati a porta com força.
- E você, pelo visto, transou ontem à noite – falei, indo até a sala e me jogando no sofá.
- Sexo e bom humor são duas palavras que só funcionam mutuamente para você – ela retrucou enquanto tirava minha bota de cima do sofá para sentar.
- Na verdade, são três palavras.
- Há! Há! – ela zombou – Não tem graça.
- Sabe o que não tem graça? – olhei para ela, nada amigável – Me acordar às 13h da tarde depois da noite cansativa que eu tive.
Ela olhou com nojo para um pacote de salgadinho que estava jogado no sofá ao seu lado.
- Isso está aqui há quanto tempo?
Bufei e fechei os olhos.
- Se veio aqui reclamar da bagunça da minha casa, então é bom que tenha vindo disposta a limpá-la.
- Não mesmo – ela se levantou e deu uma olhada no meu quarto – Isso está cheirando a bebida.
- É? – olhei para ela – Ainda tem um pouco no armário.
Ela sorriu e se dirigiu a cozinha, alguns minutos depois voltou com a garrafa na mão.
- Você quer? – ela me ofereceu.
- Não, obrigada. Eu tenho limites.
Ela riu e se sentou no sofá, virando a garrafa e tomando a metade de uma vez só.
Fiz uma careta.
- Você não existe – comentei.
- Existo sim – ela cruzou as pernas – O que mais existe são pessoas como eu.
- Alcoólatras e drogadas? – curvei uma sobrancelha.
Ela revirou os olhos.
- Eu não sou alcoólatra e nem drogada. Eu apenas faço uso regular de bebidas e drogas.
Eu ri.
- Ótima definição.
Ela pigarreou e ficou séria de repente.
- Falando nisso...
Resmunguei antes dela começar a falar e fechei os olhos, esperando pela bomba explodir. Porque acredite, tinha uma bomba.
- No que você se meteu dessa vez? – perguntei.
- Você fala como se eu só me metesse em confusão – ela reclamou.
Desferi um olhar mortal em sua direção. Ela respondeu desviando os olhos e virando o resto da bebida.
- Não estou tão encrencada assim – ela engoliu em seco.
- Não é o que parece – sentei de frente para ela – De quanto você precisa?
Ela revirou os olhos, dramática.
- Por que você sempre acha que eu preciso de...
- Melissa! – a interrompi, arqueando uma sobrancelha.
Ela entendeu o recado e bufou.
- Tudo bem, eu preciso de grana – admitiu.
- É, mas a gente já sabia disso – levantei e peguei a garrafa de sua mão, indo em direção a cozinha e a jogando no lixo – Quanto?
Ela veio atrás de mim e parou na entrada da cozinha, me olhando apreensiva. Não respondeu a princípio.
- Quanto, Melissa? – perguntei novamente.
Ela fez uma careta antes de falar.
- Promete que não vai ficar brava comigo?
- Mas que droga, Melissa! – me estressei – Quanto?!
Ela respirou fundo antes de responder.
- Quinze mil – então ela fechou os olhos, já esperando pelo que viria em seguida.
- Quinze mil?! – gritei – Você está louca?!
- Desculpa – ela disse.
- Você deve quinze mil e está me pedindo desculpa?!
Ela abriu os olhos.
- Eu sei, tudo bem? Eu sou uma cretina, i****a que só ferra tudo, mas se eu não entregar esse dinheiro até hoje, eu serei uma cretina morta.
Olhei para ela sem acreditar no que estava me dizendo.
- Para hoje?! – gritei novamente – Melissa?! – me calei por dois segundos e tentei me acalmar – Você perdeu a droga do juízo?
- Você sabe que eu nunca tive.
Olhei de cara feia para ela. Ela se encolheu diante do meu olhar.
- Acha mesmo que é uma boa hora para piadinhas?
- Eu não estava... – ela tentou falar, mas não deixei.
- Eu não acredito em você! – passei a mão nos cabelos, tentando recuperar a paciência – Há quanto tempo você deve esse dinheiro?
Ela hesitou em responder. Estava sendo o mais cautelosa possível comigo.
- Há um mês – ela encolheu os ombros no mesmo instante em que olhei para ela.
- Você está devendo quinze mil há um mês e só veio me dizer agora?
- O que você queria que eu fizesse?! – foi a vez dela de explodir – Eu sempre me meto nas merdas e você sempre salva meu pescoço. Eu já estou cansada disso.
- Então por que está aqui?! – cortei ela.
- Porque eu tentei juntar a grana sozinha e não deu certo. E agora eu estou fodida.
Me apoiei no balcão e passei a mão no rosto novamente, tentando soar o mais equilibrada possível.
- Não deu certo, hã? – olhei para ela – Lógico que não deu certo. E você sabe o por quê?
Ela revirou os olhos e bufou.
- Porque eu sou uma viciada incompetente que gastou todo o dinheiro que conseguiu com drogas.
Balancei a cabeça para ela.
- Exatamente – respirei fundo e virei de costas, jogando a cabeça para trás e soltando um longo suspiro – Até hoje me pergunto porque sou sua amiga.
Ela ficou em silêncio por um tempo, mas acabou respondendo.
- Eu também.
Me virei em sua direção e a encarei.
- Que horas você marcou de se encontrar com ele? – perguntei.
Ela olhou no relógio da parede e fez uma careta.
- Daqui quinze minutos.
Senti a fúria me dominar novamente.
- Você... – sabia que iria gritar novamente, então me interrompi e respirei fundo novamente, massageando minhas têmporas – Quer saber, sem discussão.
Saí da cozinha, passando por ela e indo em direção ao meu quarto. Peguei a bolsa preta no chão e a abri, virando tudo que tinha nela em cima da cama.
A pilha de dinheiro caiu junto com um aparelho celular da Samsung, um maço de cigarros, um isqueiro e um pênis de borracha.
Melissa olhou para o pênis e fez uma careta.
- Isso não é meu – eu disse, jogando ele de lado.
- Eu realmente espero que não – comecei a contar o dinheiro – Posso ficar com isso? – ela apontou para o cigarro.
Joguei o maço para ela junto com o isqueiro
- À vontade – a encarei quando ela fez menção de acender um – Dentro do meu quarto não.
Ela revirou os olhos e guardou o cigarro.
- Tudo bem.
Continuei a contagem do dinheiro até dar quinze mil, depois soquei tudo dentro da bolsa novamente e entreguei para ela.
Ela olhou para o pouco que sobrou em cima da cama.
- Quanto você tinha ganhado? – perguntou.
- Vinte, mas gastei três ontem em uma boate no centro.
Ela me olhou incrédula.
- Como você pode gastar três mil em uma noite só?
- Do mesmo jeito que ganhei vinte – peguei o celular em cima da cama e abri para tirar o chip – Eu preciso comemorar quando ganho.
- Você sempre ganha – ela rebateu.
- Eu sei – estendi o celular para ela – Toma, vê se compra um chip novo e usa isso. Estou cansada de só falar com você por orelhão, isso acaba com os meus créditos.
Ela sorriu e pegou o celular.
- Eu deixei você lisa, não é? – ela me lançou um olhar de culpa.
Suspirei.
- Nem tanto. Ainda tenho esses dois mil e... – dei a volta na cama e peguei o relógio em cima do criado – Esse relógio que deve valer uma fortuna.
Ela deu um sorriso, depois veio até mim e me deu um abraço.
- Obrigada, Paola – ela disse – Nunca vou conseguir pagar tudo o que te devo.
Retribuí o abraço.
- Já ajuda se continuar viva e não me deixar sozinha nesse mundo de merda – falei e a soltei – Agora vai logo porque você não tem tempo e eu odeio demonstrações de carinho.
Ela sorriu e se dirigiu até a porta.
- Até mais.
- Até...
Fiquei a observando ir até a porta da frente. Quando ela a abriu, uma urgência de chamá-la me invadiu.
- Melissa?
Ela virou o rosto para mim.
- Sim?
- Não morra, se não eu juro que vou até o inferno atrás de você.
Ela riu.
- Não vou morrer.
Fiquei em pé, olhando em direção a porta fechada até o som dos passos dela sumir.
Respirei fundo e me joguei na cama.
Eu e Melissa havíamos nos conhecido na pior situação possível. Minha mãe tinha acabado de morrer de câncer e eu resolvi que era melhor fugir de casa do que conviver com um pai alcoólatra e viciado. Como não tinha ninguém na família, tive que roubar o dinheiro do velho para poder sobreviver por um tempo.
Meu pai não era só um viciado em drogas. Ele também era um viciado em jogos. Todos os tipos dele. Cresci observando ele levar os cretinos dos seus amigos para casa. Aprendi tudo apenas assistindo eles jogarem. Depois que minha mãe morreu, antes que eu fugisse de casa, ele começou a me levar aos locais onde os jogos eram mais que brincadeira, e foi nesse cenário que conheci o mundo onde vivo hoje.
Prostituição. Drogas. Tráfico. Roubos... Eram só algumas das opções que uma pessoa sem futuro tinha a escolher. Mas eu tinha uma carta na manga, literalmente. Comecei a jogar e percebi que eu era boa, não só jogando, mas principalmente enganando. Descobri cedo que o que as pessoas precisavam eram se sentir poderosas. E eu dava exatamente isso a elas antes de jogar a cartada final e derrubá-las de seus tronos.
Foi em um desses dias normais, em que eu estava fugindo de um cara que havia acabado de ser vencido por mim, que encontrei Melissa. Assim como eu, ela tinha cabelos escuros longos e pele morena clara. Ambas erámos altas também, o que nos tornava parecidas de costas. De rosto uma era totalmente diferente da outra, mas aquele cara não se importou em conferir se era a garota certa, e eu não podia deixá-la ser espancada por minha causa.
Entrei no meio e só parei quando ele estava jogado no chão, ofegante e sangrando. Meu pai era um cretino, mas além de me ensinar a jogar ele também me ensinou a lutar. Do pior modo possível, devo dizer. Ainda era capaz de fechar os olhos e ouvir os gritos da minha mãe enquanto ela pedia para ele parar de me socar. Ainda podia ouvir ele gritando de volta: “ela tem que aprender!”.
Eu aprendi. E depois disso ele nunca mais tocou em mim.
Quando conheci Melissa, ela já era uma viciada sem salvação. Havia trazido ela para meu apartamento naquele dia porque me sentia culpada pelo que havia acontecido com ela. Cuidei dela. No dia seguinte, queria ela fora da minha casa. Tinha experiências nada agradáveis com viciados e não queria mais nenhum deles perto de mim. Mas Melissa era diferente. Desde o começo ela foi. Ela não era nada como meu pai. Foi isso que me fez enxergar não só ela, mas tudo ao meu redor, com outros olhos.
Depois daquele dia mudei uma coisa na minha vida e acrescentei outra. A primeiro: eu iria usar disfarces a partir dali todas as vezes que fosse jogar. A segunda: eu iria ajudá-la a sair daquele mundo.
Pelo menos a primeira deu certo. A segunda, ainda que já tivéssemos progredido muito, eu ainda estava tentando.