7- NO TRABALHO

1201 Words
CAPÍTULO 7 CAROL NARRANDO O sol já tava alto quando o movimento começou de verdade. Carro indo e vindo, motoboy buzinando, gente com pressa e cara feia. A cidade fervendo como sempre. E eu ali… atrás do caixa, fingindo normalidade enquanto tentava manter o mundo de pé por dentro. Cada cliente que entrava era uma roleta de humor. Tinha os calados, os grossos, os engraçadinhos. E os piores: os que achavam que porque eu era mulher, pobre e novinha, podiam dizer o que quisessem. Lá pelas nove, começou a chegar o pessoal do morro. Os vapor, os soldado, até gerente da boca. Abasteciam carro, moto, caminhonete. Pagavam em dinheiro vivo. Notas dobradas, cheiro de maconha misturado com perfume caro e corrente brilhando no pescoço. — E aí, princesa… tá sozinha aqui hoje? — um deles falou, com o boné abaixado e o sorriso sacana estampado no rosto. — Quanto deu mesmo? — respondi, seca, sem levantar a cabeça. — Pode deixar que eu pago com carinho — ele soltou, rindo alto, os outros rindo junto lá fora. Fiz o que sempre fazia: ignorei. Peguei o dinheiro, passei o troco, imprimi o recibo. Sem dar brecha. Sem dar sorriso. Porque nesse mundo, mulher que dá confiança… vira alvo.bOutro chegou logo depois. Tatuagem no pescoço, revólver na cintura, cheiro forte de cigarro e olhar invasivo. — Tu trabalha aqui todo dia, né? Bonita desse jeito, devia tá desfilando por aí… não presa nesse caixa. Fingi que não ouvi. Anotei o valor, entreguei o troco e virei pro próximo. Tudo automático. Tudo no piloto. Aprendi faz tempo que responder é pedir pra ser perseguida. E que até o silêncio incomoda os caras que tão acostumados a ter tudo no grito. Mas por dentro… Por dentro eu fervia. A mão suava. A boca secava. O medo e a raiva disputavam espaço no peito. Mesmo assim, eu aguentava. Como sempre aguentei. Tava atendendo um senhor que só queria completar vinte reais no tanque, quando ouvi a voz baixa da dona Cida vindo pelo canto do balcão: — Carol… teu pai tá lá fora. Tá te chamando. Meu coração travou na hora. A barriga embrulhou. Senti o sangue gelar nas veias. Fazia dois dias que ele m*l olhava na minha cara… e agora tava me esperando no meio da manhã? — Ele tá onde? — perguntei, tentando manter a voz firme. — Lá nos fundos… do lado do galpão velho. Tá com cara de quem já bebeu — ela disse, preocupada. — Vai lá ver, mas se precisar de mim, tô aqui. Assenti devagar, tirei o crachá e entreguei pra ela. — Fica aqui no caixa, rapidinho… só vou ver o que ele quer. Dei a volta pelo corredor estreito do posto e fui pros fundos. O sol batia forte entre os blocos e o cheiro de óleo queimado misturado com sujeira impregnava o ar. Lá estava ele. Encostado na parede descascada, com a camisa aberta, o rosto ainda com marcas da queda da semana e os olhos vermelhos de bebida. — Demorou, hein, dia vadiä? — ele rosnou assim que me viu. Engoli seco. Mas fui. — O que o senhor quer? — Quero meu dinheiro, porrä! — ele gritou. — Tu acha que eu esqueci, é? Me prometeram matar se eu não pagar hoje! — Eu já disse que não tenho, pai… — falei baixo, olhando ao redor, com medo de alguém ouvir. — Tem sim! — ele berrou, se aproximando com os olhos arregalados. — Tu trabalha nesse lugar, mexe com grana o dia inteiro. ROUBA essa merda! Pega do caixa! Dá teus pulos! — Eu não posso fazer isso! — rebati, sentindo as mãos começarem a tremer. — É o meu trabalho! É tudo que eu tenho! Ele chegou mais perto, o bafo de cachaça me fazendo virar o rosto. A mão pesada me empurrou com força contra a parede. — Tu é uma inútil mesmo! Nem pra ajudar serve, vadiä do caralhø! — ele gritou, erguendo a mão. Foi quando, do nada, a voz grossa de alguém soou atrás dele: — Baixa essa mão agora, velho! Olhei por cima do ombro do meu pai e vi o Lucas, um dos frentistas. Tava com a cara fechada, os punhos cerrados e o corpo todo tensionado. — Isso aqui é lugar de trabalho, parceiro. Cê quer bater em alguém, procura outro canto. Aqui não. Aqui tu não encosta um dedo nela! Meu pai recuou um passo, ainda respirando pesado, mas surpreso com a intromissão. Não tava acostumado a ser enfrentado. — Isso é problema meu com ela! — ele rosnou. — Agora é problema meu também — Lucas disse, firme, se colocando entre nós dois. — Vaza. Antes que eu faça tu sair. Meu pai me olhou uma última vez, com raiva nos olhos… mas foi embora cambaleando, xingando baixo, sem nem olhar pra trás. Fiquei ali, sem saber se chorava ou agradecia. As pernas tremiam. — Tá tudo bem? — Lucas perguntou, virando pra mim com cuidado. Assenti, mesmo sem estar. Porque era o que eu sempre fazia. — Obrigada… — murmurei. Ele só balançou a cabeça e disse: — Qualquer coisa, cê não tá sozinha aqui, valeu? E saiu, voltando pro pátio. Eu fiquei ali mais uns segundos parada, tentando me recompor. Mas por dentro… Eu já tava despedaçada. Voltei pro posto com as pernas moles, como se cada passo fosse um desafio. O rosto ardia, não mais do tapa… mas da vergonha, da raiva, da dor acumulada. Mas eu não chorei. Não ali. Não na frente de ninguém. Passei pelo corredor de cabeça baixa, enxugando os olhos com a manga do uniforme, fingindo que era suor. A dona Cida ainda tava no caixa, do jeitinho que eu deixei. Quando me viu, arregalou os olhos e foi logo saindo do lugar, com o olhar preocupado. — Tá tudo certo? — ela sussurrou. Assenti com um sorriso torto. — Tá sim. Obrigada por segurar pra mim. Voltei pro meu lugar, sentei atrás do balcão e me obriguei a respirar fundo. Peguei uma ficha de abastecimento, olhei os números, mas as linhas dançavam na frente dos meus olhos. A garganta tava travada, e o nó no peito parecia que ia explodir. Mas não explodiu. Porque eu aprendi a engolir o choro. A engolir o grito. A engolir a vontade de sumir. Na minha cabeça, a cena voltava em looping: ele me empurrando, me xingando, quase me batendo de novo… E o Lucas aparecendo. Me defendendo. Coisa rara. Coisa que eu não tava acostumada. — Tu é forte, Carol… tu é forte — sussurrei pra mim mesma, tentando me convencer. O movimento seguiu. Carros vinham e iam. Pessoas passavam. E eu ali, no automático, atendendo um por um como se nada tivesse acontecido. Como se eu não tivesse acabado de ver o meu próprio pai tentando me fazer virar ladra. Como se meu corpo não tivesse tremendo até a alma. Como se eu ainda tivesse fé. Mas no fundo, eu sabia. Essa dívida não ia sumir. E se ele não pagasse hoje… Iam vir atrás dele ou de mim. E talvez… o próximo tapa não fosse só dele. Continua..... Deixem bilhetinhos 📚 ❤️ 📚
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