CAPÍTULO 4
CAROL NARRANDO
Depois que o vapor sumiu no beco, fiquei ali por uns segundos parada, tentando organizar o que sentia.
Raiva. Cansaço. Tristeza.
Tudo misturado.
Meu pai tava largado no colchão, roncando pesado, fedendo a cachaça, com o sangue seco na testa e a respiração arrastada.
Peguei um pano limpo, molhei numa bacia com água fria e comecei a limpar o rosto dele.
Era estranho. Porque, mesmo com tudo o que ele me fazia passar, eu ainda cuidava.
Ainda me importava, ou talvez fosse só o costume de carregar o mundo sozinha.
Terminei de limpar, joguei uma coberta por cima e saí de fininho. Ainda precisava trabalhar.
Não podia perder esse emprego.
Desci o beco com a alma cansada e a roupa suja de sangue. Cheguei no posto quase no fim do meu horário e pedi desculpa ao gerente, que só fez um gesto com a cabeça, seco.
Voltei pro caixa sem falar muito, só engoli a dor e segui o dia como se nada tivesse acontecido.
Era sempre assim.
O mundo desabando dentro de mim e o sorriso torto estampado na cara.
Fiquei em silêncio por um tempo, observando os carros indo e vindo, as buzinas, o calor insuportável e os vapores do morro passando de vez em quando na moto, acelerando alto só pra mostrar presença.
Até que senti.
Aquela sensação estranha de novo.
Como se alguém me observasse.
Levantei os olhos e vi, do outro lado da rua, encostado na caminhonete preta… ele.
O mesmo homem de antes.
Tatuado. Moreno. Sobrancelha arqueada e aquele olhar que parece atravessar a alma da gente. Não sorria. Só me olhava.
Não tava com pressa.
Não parecia estar ali por acaso.
Meu coração acelerou.
A mão tremia um pouco quando passei o código do próximo produto no caixa.
Ele continuava ali, encostado no carro, com os braços cruzados e o olhar cravado em mim.
Desviei o olhar.
Fingi que não era comigo.
Voltei a encarar a tela do caixa, contando moedas, imprimindo nota fiscal, tentando agir como se meu coração não tivesse descompassado por causa daquele olhar.
Mas os olhos dele continuavam ali.
Dava pra sentir o peso, mesmo sem encarar.
Até que, de canto de olho, vi ele cumprimentar outro cara que chegou numa moto preta, com o capacete ainda na mão e a Glock pendurada na cintura como se fosse extensão do corpo.
Eles se cumprimentaram com aquele toque firme de quem se conhece há muito tempo.
Trocaram algumas palavras rápidas.
O homem tatuado falou alguma coisa e os dois foram embora. Simples assim. Como se nada tivesse acontecido.
Mas alguma coisa ficou.
Um arrepio na pele. Um sinal de alerta no peito.
Suspirei fundo, engoli seco e segui trabalhando.
A loja tava quase vazia quando a dona Cida entrou pra repor o papel higiênico no banheiro e limpar o chão com aquele desinfetante de cheiro forte que sempre me dava dor de cabeça.
Ela era uma senhora simples, já com o rosto marcado pelo tempo, e que falava baixo, como quem sabe dos perigos do que diz.
— Teu pai apareceu hoje? — ela perguntou do nada, sem nem me olhar, enquanto espremia o pano no balde.
Balancei a cabeça negativamente, tentando manter a voz firme.
— Tava caído numa viela. Fui buscar ele antes de voltar pra cá.
— Meu Deus, Carol… — ela murmurou, parando o que fazia. — E como ele tá?
— Dormindo. Ou apagado, sei lá. Machucado. De novo. — Respondi, sentindo o nó na garganta se formar.
Ela se aproximou, encostou no balcão, com aquele olhar de mãe que entende mais do que diz.
— Deixa eu te falar uma coisa, minha filha… larga esse homem. Larga antes que ele acabe com tua vida. É teu pai, eu sei. Mas isso não te obriga a morrer por ele.
Não respondi. Só abaixei os olhos, mordi o lábio inferior e fingi que tava mexendo no caixa.
— Eu ouvi umas conversas aí, Carol… — ela continuou, olhando pros lados. — Que ele tá devendo. Devendo feio na boca.
Olhei pra ela na hora, o coração disparando.
— E tu sabe o que acontece com quem deve e não paga. A Bete, aquela vizinha tua, foi morta por muito menos.
O meu sangue gelou nas veias.
Ela terminou de falar e saiu devagar, como quem joga uma bomba e deixa o estrago pra depois.
Fiquei ali parada, com a cabeça girando, sentindo as palavras dela ecoarem dentro de mim.
Meu pai tá devendo na boca.
E eu sou a única coisa que ele tem.
Ou… que ainda pode ser usada como moeda.
A tarde passou arrastada.
Cada minuto no caixa parecia pesar uma tonelada. Eu tentava focar, mas as palavras da dona Cida martelavam na minha cabeça sem parar.
Ele tá devendo na boca.
Vai te arrastar junto, Carol.
Sai enquanto dá tempo.
Mas como sair quando se tem tão pouco?
Como correr sem rumo?
Quando o sol começou a baixar, bati meu ponto e deixei o posto com o uniforme grudando no corpo de tanto calor e suor.
Subi a avenida olhando pros lados, sempre atenta, atravessando a rua com passos ligeiros e o coração apertado.
Cada sombra no beco parecia ameaça.
Cada voz alta me fazia encolher.
Subi a ladeira estreita da contenção com as mãos suadas e a alma pesada. E, no meio do caminho, a cabeça já criava mil cenas.
Será que ele ainda tava desacordado?
Será que morreu ali, sozinho, enquanto eu trabalhava? Ou será que voltou a ser o monstro de sempre?
O barraco apareceu diante dos meus olhos como um pesadelo em forma de madeira. Porta entreaberta. Um rádio velho tocando forró abafado. Empurrei a porta devagar… e lá estava ele.
Sentado no sofá, a cara toda inchada, com sangue seco no canto da boca e um cigarro apagado preso entre os dedos.
Tava vivo. Mas o olhar… o olhar ainda era o mesmo de sempre.
Cruel. Frio. Acusador.
— Tá vivo… graças a Deus — murmurei, me aproximando.
Ele ergueu a cabeça devagar e me olhou com raiva, como se fosse minha culpa.
— Cê acha que me fazendo de enfermeira tá resolvendo alguma coisa, sua vadiä? — cuspiu, com a voz rouca.
Gelei por dentro. Mas respirei fundo e tentei manter a calma.
— Só quero saber se você tá bem… — falei baixo.
— Bem? Tô com a cara arrebentada, sem um real no bolso, e com um peso morto morando comigo que não serve nem pra pagar as contas! — ele berrou, se levantando com dificuldade.
— Pai… eu tô trabalhando. Tô fazendo o que eu posso…
— E devia tá fazendo mais! — ele rosnou, se aproximando com os olhos vermelhos. — Eu preciso de mil real até amanhã. Mil, ouviu? A conta chegou, e quem vai pagar é você!
— Eu não tenho esse dinheiro… — respondi, sentindo o chão sumir dos pés. — Nem metade disso.
Foi aí que veio.
Do nada.
Rápido e seco.
O tapa.
Estalou no meu rosto e me fez cambalear pro lado. A bochecha queimou na hora, o gosto de ferro tomou a boca, e o silêncio que veio depois foi pior que o som da agressão.
Fiquei parada.
Sem força pra reagir.
Com o rosto ardendo e o coração em pedaços.
Ele virou as costas, se jogou no sofá de novo e acendeu o cigarro como se nada tivesse acontecido.
E eu? Eu fui pro quarto.
Fechei a porta devagar.
Me encostei nela.
E chorei baixinho… igual fazia quando era criança.
Só que agora, não tinha mais desculpa.
Não tinha mais como fingir que ele ia mudar.
Eu precisava sair dali.
Antes que fosse tarde.
Ou… antes que me matassem primeiro.
Me encostei na parede fria, escorregando devagar até o chão, e abracei os joelhos como se aquilo fosse suficiente pra me proteger do mundo.
As lágrimas desciam sem pedir permissão.
Pesadas. Silenciosas.
Não era mais só pelo tapa.
Era pelo acúmulo de tudo.
De todos os dias engolidos. De todos os medos calados. De cada vez que eu acreditei que talvez… só talvez… as coisas iam melhorar.
Mas não melhoraram.
Se minha mãe fosse viva…
Fechei os olhos e imaginei.
Uma mulher com olhos iguais aos meus, que talvez penteasse meu cabelo de manhã antes da escola. Que preparasse café com pão na chapa e me chamasse de “minha menina”.
Que estivesse na porta quando eu chegasse do trabalho, perguntando como foi o dia, com um sorriso mesmo na dificuldade.
– Será que minha vida teria sido diferente?
– Será que eu teria conhecido o que é amor de verdade?
Porque, até agora, a única coisa que eu conheço é abandono, dor e sobrevivência.
Minha mãe morreu quando eu tinha um pouco mais de três anos.
Não lembro do rosto.
Não lembro da voz.
Só lembro do cheiro do cobertor onde ela me embrulhava, e que um dia, sumiu com ela.
Depois disso, só sobrou ele.
O homem que deveria me proteger e que hoje me espanca como se eu fosse um fardo.
E agora… eu tô aqui.
Com dezoito anos, um rosto marcado, um coração em pedaços e mil reais que não tenho, mas que alguém vai vir cobrar.
E eu sei como essas dívidas são cobradas.
Respirei fundo, tentando conter o soluço.
Eu precisava sair dali.
Eu precisava mudar minha história.
Antes que fosse tarde.
Antes que eu fosse enterrada como mais uma que o mundo esqueceu.
Continua.....