― Tire essa expressão do rosto. Os filhos deformados foram mortos.
― Então qual o significado de tudo isso? Por que ela disse que ele tem a poção das memórias passadas? ― Alex deu de ombro, e arrumou o casaco no corpo, a carruagem seguia lenta sobre a neve, temendo que as rodas batessem contra alguma pedra escondida.
― Não faço a mínima ideia, o que me interessa é o inverno, não é normal durar tanto tempo assim.
― E se eles existirem de fato?
― Devemos tomar medidas extremas, talvez intensificar o comercio com o exterior. Usar o poder dos bruxos para dar um jeito nos alimentos.
― Se encontrarmos os filhos deformados...
― Elisie, toda vez você se encontra com algo que lembra o passado, você se perde em devaneios, acorde. Seu querido Cordial já não vive mais, cuide de si mesma. Esse frio está me tirando a paciência. ― Suspirou, dobrando os joelhos no anseio de se aquecer um pouco mais.
Elisie pegou uma terceira capa, feita de lã, e surgiu na janela, para entrega-la ao cocheiro. Ele recusou de início.
― Nesses momentos fico até assustado, ao vê-la bondosa.
― Ele é um bom servo, não deixarei que morra congelado, você soube o que aconteceu com os Meneses? O cocheiro morreu congelado, durante um passeio com Florence. Embora, eu tenha quase certeza que os Meneses são cruéis com os seus servos.
― Quem é bondoso sofrendo pela fome e frio? Esqueçamos isso, vamos focar no inverno, após o aniversário do seu pai, você irá ao templo das sacerdotisas.
― Depois da nossa discussão por causa de Ramon, você tornou-se rígido e um tanto controlador.
― É somente para o seu bem, será bom sair um pouco do castelo, e no templo...
― Eu não gosto desse lugar, ele força jovens senhoras a se tornarem sacerdotisas quando se tornam viúvas. Como se fossemos uma doença contagiosa, eles querem nós enclausurar naquele lugar.
― Sei muito bem que não gosta, porém, é necessário. Os deuses estão com raiva. ― Ela suspirou, a cabeça doía demais para prosseguir com a conversa.
***
Tão logo que chegou ao castelo, Elisie se manteve ocupada com a organização do aniversário do seu pai, descontente, porém, ansiosa para tirar a limpo a verdade. Estava no antigo escritório de Dixon, exatamente como ele havia deixado, se encontrava atrás da mesa, assinando e organizando os documentos do castelo. Alguém bateu antes de entrar.
― Majestade, o pequeno príncipe não para de chorar. ― disse a ama de leite.
― Não tenho tempo agora, Susan. Dê ao príncipe um dos seus brinquedos, ou algum doce.
― Já o fiz, majestade, ele continua a chorar e chamando por sua mãe. ― Ao ouvir isso, Elisie desviou os olhos do caderno de anotações.
― Onde ele está?
― Com as concubinas. ― Uma veia da testa da rainha flexionou-se, sentindo o sangue correr uns segundos mais rápido, pelo ciúme, ela seguiu apressada para o harém.
As várias moças se encontravam em torno do pequeno menino, que gritava e se contorcia nos braços de Ysdora.
― Por deus, essa criança não se cala? ― gritou uma das concubinas, Samira, carregava um olhar m*****o, e lábios vermelhos como os cabelos de Jeremy.
― Sua majestade, a rainha. ― gritou o guarda ao lado da porta escancarada. Organizaram-se numa fila, e curvaram-se para sua rainha, Ysdora permaneceu sentada, abraçando carinhosamente o pequeno príncipe.
― Querido, meu amor, por que choras? ― sussurrou ela, tomando-o dos braços da concubina, a resposta veio como um sorriso enorme.
― Mamãe!
― Jeremy, seja um bom garoto e não chore dessa forma outra vez? Pode ser? Prometo brincar com você no jardim, quando o inverso se for.
― Não quero, quero ficar com mamãe.
― Não posso, estou ocupada. Seja bonzinho e vá com Susan.
― Não quero! ― gritou ele começando a espernear. Elisie puxou o ar com força, não podia se aborrecer.
― Susan, vamos, deixarei que ele fique ao meu lado hoje.
― Por que nunca permite que o jovem príncipe venha até nós? Majestade, qual a razão por você impedir que vejamos ele? ― perguntou Samira, os seus olhos castanhos avermelhados brilhavam de uma forma arrepiante. Elisie curvou os lábios num sorriso esquelético.
― Perdão? Quando foi que eu proibi que o nosso príncipe viesse aqui?
― Se é assim, deixe-o vir aqui com mais frequência, já que a mãe dele morreu, precisa de todas nós para suprir a falta que ela lhe faz.
― Eu sou a mãe dele.
― Nunca disse que não era. ― Samira deu fim a conversa, lançando a rainha, um sorriso de serpente.
Ódio, cada respiração e suspiro pesado transmitia ódio. Antes só ouvia esse tipo de comentário das damas esposas e filhas de viscondes, condes e marqueses. Nunca pensou que receberia a aspereza das moças que ela mesmo salvou.
― Isso é uma enorme ingratidão. ― Reclamou para Lian que a seguia para todos os lados.
― Minha senhora, não fale alto, a ama do príncipe pode escutar, sabe como gostam de fofocas. ― Elisie suspirou, mudou Jeremy de braço.
― Elisie! ― Exclamou uma voz angelical atrás da rainha, que se virou aborrecida.
― Princesa Eym.
― Não precisa me chamar assim, é um pouco constrangedor, eu nunca tomei um lugar como princesa, fui embora com a minha mãe e o Ramon logo que chegamos em Darkeng.
― Já que retornou com a sua mãe, devemos apresentá-la aos nobres, daqui a três dias, durante o aniversário do meu pai. ― As bochechas da princesa ganharam uma intensa cor.
― Eu adoraria, mas não tenho certeza se a minha mãe permitiria, veja, ela vive como uma simples nobre mantendo-se aqui por sua graça. Não como a rainha viúva.
― Anamélia não tem opinião, você é uma princesa, não deve ser mantida em segredo. Agora se me permite, irei continuar os meus ofícios.
― Não puxe o lençol que cobre um segredo. ― Chiou a velha, quando Elisie atravessou o corredor ao ar livre do segundo andar.
― Pelo visto Alex ainda a mantem por perto. O que quer dizer com isso? Não gosto de enigmas. ― Elisie entregou Jeremy adormecido para Susan e a mandou se retirar.
― Não é enigma, é só um conselho, embora você nunca escute os meus conselhos.
― Se fossem menos absurdos, eu poderia pensar.
― O rei Alexyan, contou-me sobre a bruxa, vocês a encontram.
― De que adianta agora, Dixon está morto, e Mercúrio sumiu no mundo.
― Nada está tão perdido que não se possa encontrar com muita determinação.
― Mas quando não existe, não se pode encontrar. ― respondeu Elisie, cansada para adquirir uma postura severa.
― Você acha que esse inverno é o castigo dos deuses? ― perguntou a velha, percorrendo o seu olhar para a paisagem morta lá fora.
― Deve ser, talvez seja o meu castigo, por tentar desafiá-los, querer fazer um primeiro amor funcionar. ―
― Eu menti. Sobre os deuses desaprovarem o primeiro amor. ― Percebendo que Elisie não perguntaria, continuou:
― Era o romance entre você e aquele príncipe, que era proibido.
― O que fizemos para isso?
― Para isso eu não tenho resposta, só o passado tem.
― O passado é inalcançável. Enfim, acredito que essa conversa não nos levará a lugar nenhum, irei primeiro. ― Despediu-se Elisie, a velha feiticeira segurou o seu braço.
― Os filhos deformados... Eles ainda vivem.
― Não diga absurdos.
― Entre os bruxos há uma lenda, que diz que os filhos deformados no lugar de ganhar a beleza de deus, receberam a vida imortal. ― Elisie abriu um sorriso de desprezo.
― Então creio, que segundo uma lenda, um está no vulcão de Saranta, e o outro no vale dos gritos? Quer que eu acredite nisso? Por favor, viva o pouco de vida que lhe resta quieta nos corredores do meu castelo, caso contrário, lhe lançarei para fora sem o menor remorso.
***
Encostada na parede carcomida da estufa, Elisie puxou o ar com força, sentindo o frio pinicar seu nariz. Observava o longo espaço repleto de flores e arbustos, agora sepultados debaixo da neve grossa.
― Majestade, devemos entrar agora. ― Alertou Lian, disfarçando o seu queixo trêmulo.
― O inverno é lindo, mas c***l. Ele devora a beleza da primavera, o calor do verão e a alegria do outono. ― refletiu esfregando as mãos, deu um passo para voltar ao castelo, quando ao longe, ela viu brevemente Ramon esgueira-se para uma parte do jardim, onde costumava ter uma fonte, ela nunca se interessou em ir lá, Dixon disse-lhe uma vez, que era lá que ficavam as sementes das flores que não brotaram.
― Lian, acho que quebrei o meu sapato, vá ao castelo e traga-me outro. ― A serva assentiu no mesmo instante. Sozinha, Elisie seguiu Ramon.
O som inconfundível de água caindo, a fez alargar os seus passos. Ramon dava voltas ao redor da fonte que apesar de gasta e antiga, e no ar livre do inverno, jorrava água límpida.
― O que você faz aqui? ― Ramon virou-se, os olhos maus estavam inundados de lágrimas, e a boca tremia num choro contido. Nas suas mãos havia um pequeno jarro com um cacto verdinho com uma flor-amarela na sua ponta. Um vinco formou-se entre as sobrancelhas da rainha.
― Diga, Ramon, o que faz aqui? Eu não fui clara o suficiente? Não quero você no jardim.
― Não é só você que sente falta dele, eu. Eu criei aquele príncipe. Eu amo-o como se fosse meu filho, como sangue do meu sangue. Não é você, que o matou, que me impedirá.
― Mercúrio o matou, não eu. Pare de me culpar, pare de cutucar a ferida alheia. E pelos deuses, por que está abraçado a essa planta... espere, como... como essa planta nasceu nesse lugar, e explique a fonte que não congela. ― Ramon enxugou as lágrimas, porém, a tristeza não deixou o seu rosto.
― Essa fonte foi construída por Beatrice, a rainha bruxa. Mesmo que todas as outras fontes e rios congelem, esse aqui jamais congelará, continuará a jorrar água limpa e quente. Foi isso que fez esse cacto nascer. O cacto que o Cordial tentou de várias formas fazer brotar, e matou o comerciante por achar ter sido enganado. ― um breve sorriso surgiu nos lábios de Ramon.
Durante o resto do dia, Elisie relembrava a imagem daquele cacto, e da flor-amarela. Era como se fosse uma mensagem de Dixon, só não sabia o que ele queria dizer com isso.
― Elisie, quantas vezes terei que avisa-la? ― brigou Alexyan entrando no escritório em seguida uma serva o acompanhou segurando uma bandeja com o jantar.
― Não sinto fome.
― Não importa, só coma um pouquinho. Depois retorne ao seu trabalho, organizar um aniversário não deve ser tão complicado.
― Pensei que não, entretanto, há tantas pessoas para convidar, e comida para comprar. Devemos parar com gastos desnecessários enquanto esse inverno não passar, senão, não teremos mais comida.
― Não podemos fazer nada, é o rei de Margoth quem o pediu, e você aceitou. ― Alex sentou-se atrás da mesa, continuando o trabalho de Elisie.
― Alex. ― Chamou ela, movendo de um lado ao outro um pedaço de batata com o garfo. ― Por que você ainda mantém aquela velha feiticeira abrigada no castelo?
― Ela não é uma pessoa comum, precisamos dela.
― Você acredita em tudo o que ela fala?
― Sim, acredito, até agora ela nunca errou.
― Ela disse que os filhos deformados estão vivos. ― Alex parou de escrever, até mesmo de respirar por alguns segundos, assustado até mesmo para levantar os olhos da folha de papel. Elisie o encarava, acanhada como uma criança desejando acreditar em algo. Continuou:
― Você acha que... poderia ser... ― Ele espalmou as mãos na mesa num baque. O vidro de tinta derramou por sobre a sua mão enluvada.
― Não, isso é impossível, eu já pedi várias vezes para você esquecer isso. Ele se foi para sempre, Elisie, por favor, pare de mergulhar nessa esperança cega. Ou quer morrer? É isso? QUER SEGUIR SEU AMADO? SEU ÚNICO AMADO PARA A MORTE TAMBÉM? ― alterado, Alex puxou uma adaga da sua calça e lançou-se para Elisie, sem perceber, uma mão agarrava-se ao queixo, e a outra encostava a adaga ao pescoço dela, que o encarava sem medo, sem qualquer expressão.
Ele jogou a adaga para longe, e acariciou o rosto agora sujo de tinta da sua rainha.
― Você me machuca, Elisie. ― Foi tudo o que disse, em seguida saiu apressado do escritório.
Estava com raiva, magoado, sentia-se um inútil, incapaz de confortar a mulher que ama. Chegou até o seu quarto, porém quando entrou encontrou-se com Ysdora sentada na cama
― O que faz aqui Ysdora?
― Eu sou sua esposa também, não posso passar um tempo com você?
― Por favor, saia, não quero discutir hoje. ― Ela aproximou-se, acariciou o rosto cansado dele, e limpou o caminho de uma lágrima.
― Se você me amasse, eu nunca o faria chorar, como ela faz.
― Ela não sabe.
― Por isso mesmo é mais c***l.
― Dora, ela quer encontrar os filhos deformados. Talvez ela queria ressuscitar o Cordial.
― E o que você disse? ― Ysdora alarmou-se, guiando-o pela mão até a cama.
― Eu apontei uma adaga para seu pescoço. Não sei o que faço. Devo ajudá-la nessa loucura? Mas penso que se eu a ajudar, e se no fim der certo, a perderei pela segunda vez, porém se não, Elisie pode se tornar mais deprimida e vazia.
― O que você quer? Procure no fundo do seu coração. ― Alex suspirou, lançou o olhar para Ysdora, acariciou a sua bochecha, e sorriu.
― Desculpe, meu bem, por não amar você, apesar de ser maravilhosa.
― Não se preocupe, majestade, eu não sinto por você um amor tão intenso como o que você e a rainha sentem, chega a ser loucura, vivemos num mundo onde não pensamos muito nisso de amor. Tudo isso não passa de uma construção de poder.
― Poderes demais apodrece o homem que já é perverso.
― Não todos, o meu marido nunca foi perverso.