Lili Harris
Se um dia eu pensei que nada poderia piorar, eu estava errada. Essa casa está me deixando maluca em poucos dias e eu não sinto uma gota de paz.
Aqui eu não tenho ninguém. Ninguém mesmo! Eu não tenho com quem conversar, não tem nada de interessante aqui para fazer e eu nem posso sair por muito tempo mesmo dentro da propriedade. Eu só vejo o tempo passar!
O meu pai passa o dia fora, eu que cuido do local em relação a limpeza e organização, a comida e já inventei tanta coisa que não tem mais graça nenhuma. Os meus poucos livros que tenho já foram devorados, eu fiz tantos biscoitos e bolinhos para gastar o tempo e já dormi tanto que não tenho mais opção.
Nem chorar mais é dado como ocupação de tempo. Me sinto presa no tempo.
O silêncio aqui é enorme, eu já explorei o que podia e não achei nada de interessante. Ou seja, em mais alguns dias, eu estarei gorda e realmente deprimida. Ou pior!
Neste momento, eu estou sentada na varanda dos fundos para pegar apenas uns minutinhos de sol da manhã. Eu já começo a tentar fazer uma lista de coisas para me ocupar hoje, mas, nada vem à mente. Olhando o terreno, tudo está normal e silencioso. Apenas ouço um som leve do vento que toca às árvores e dou uma olhada no céu aberto.
Hoje teremos um sol bem forte.
Quando eu penso em me levantar, eu ouço um som curioso e fico intrigada. Ele se repete mais um pouco e vejo um gatinho vindo das plantas dos fundos. Pequeno e perdido. Ele mia sem parar e eu me levanto querendo ver mais de perto.
— Que lindeza... vem... — Eu nunca tive bichinhos de estimação e esse gatinho parece não ter ninguém.
Ele não tem coleira, está magrinho e também com medo.
Antes de vir para cá, eu tive tantas ocupações que um animal nunca passava pela minha cabeça. Eram muitas aulas, atividades, provas, um tempo com as garotas para aliviar a pressão e assim eu fui vivendo. Olhando esse aqui agora, eu penso muito em ficar com ele.
É novinho!
— Vem... não vou te machucar. — Eu tento acalmá-lo e vou persistindo.
Ele deve estar faminto.
Enquanto toco nele com carinho, eu tento procurar alguma coisa errada e não tem. Não vejo ferimento, não vejo muita sujeira presa e nada de errado mesmo. Ele parece perfeito. Com isso, eu o pego nos braços e entro com ele para a cozinha e o deixo no cantinho. Eu pego um pouco de comida que fiz e coloco num potinho pequeno para ele e vejo de perto a sua fome. Me dá um aperto no peitö. Eu deixo também um pouco de água e fico observando de longe.
O dia vai se passando e nada do meu pai chegar. Ele saiu bem cedo e deixou apenas um bilhete dizendo que tinha que resolver alguma coisa. É tão angustiante estar às cegas. Eu fico sem saber o que pensar sobre esse novo momento mais complicado ainda e eu não me esqueci do assunto do casamento.
Isso é a maior loucura que já ouvi na vida e tenho medo do que pode acontecer. Até hoje, eu nunca fui de ter o privilégio de fazer algo que eu queira. Sair, ver lugares, conhecer pessoas novas, frequentar locais e sinto que com esse casamento será pior. Eu estarei presa a alguém novo que pode muito bem me prender mais ainda do que já sou.
Fora ter que me submeter a coisas piores. Como posso me casar com alguém e ir para cama dessa forma?
Sinto um pavor por imaginar.
— Você não quer ir embora, não é? — O gatinho passou o dia me seguindo dentro de casa. — Acho que pode ficar... que tal se chamar Caramelo? — Ele não entende nada do que eu falo.
Ele é laranjinha com leves manchas brancas e acho que o nome combina bem. A noite vem chegando e eu começo a fazer o jantar. O meu pai não deu sinal de vida e eu começo a ficar mais preocupada.
Onde ele foi? O que tanto ele faz fora? Como que um homem falido tem tanto o que fazer?
Eu começo a comer aqui sozinha e depois, limpo tudo e vou guardando. A noite escura lá fora não me dá uma visão boa e o relógio mostra ser bem tarde. Tem sido assim. Eu sozinha observando o tempo.
Eu me deito aqui no sofá para esperar e o Caramelo vem e se deita na janela, bem do alto aqui do sofá. Eu fico encolhida observando-o e logo ele dorme satisfeito e de barriga cheia. Os meus olhos começam a pesar e de repente, a porta da casa é aberta bruscamente e eu quase caio do sofá.
É o meu pai.
— Lili... vem, anda... — Ele me chama enquanto manca em cada passo.
— O que houve? — Ele parece machucado e vejo um ferimento na sua testa.
— Não temos muito tempo... — Eu fico sem entender nada. — Eu preciso de você.
— Pai, o que aconteceu? Onde esteve o dia todo? — Eu o ajudo a ir a uma cadeira, mas não é nada fácil.
— Chegou a hora, Lili... você precisa se casar. — Eu não entendo coisa com coisa.
— O que? — Ele ofega e parece amedrontado. — Pai, se acalma... respira e depois você fala.
— Lili, me escuta... Flávio já sabe onde estamos e a nossa saída é agora. Você precisa se casar logo e tudo foi acertado. — Ele enfia a mão no seu terno e o vejo retirar uns papéis dobrados. — Olha... assina isso.
— O que? O que é isso? — Do que ele está falando?
— Só assina, Lili... confia em mim. — Ele repete várias vezes. — É para o seu bem... só assina logo.
Eu tento insistir, mas ele não me ouve e logo a insistência se torna em ordem. Ele parece amedrontado, nunca o vi desse jeito e eu tento ver do que se trata os papéis. Ele começa a tossir, a respiração fica descontrolada e o rosto dele começa a ficar vermelho. Eu fico apavorada com a cena e ele usa a força que tem para suplicar que eu assine e pelo medo, eu atendo.
Eu assino nos locais marcados e é a hora que ele cai da cadeira em busca de ar.
— PAI... RESPIRA... — Eu me jogo ao chão e abro a blusa dele num puxão só e o susto vem. — Meu deus... pai... — Eu nunca vi nada assim.
O peitö dele está todo vermelho, tem uns tipos de bolhas espalhadas e eu não entendo nada. Não sei explicar! Ele nunca teve isso e penso ser alguma crise alérgica, mas ele nunca falou disso.
O que está havendo?
— P-pega... liga para o Gustavo... ele vai saber o que fazer. — Eu já não consigo pensar e o choro vem como uma correnteza. — Lili... faça o que eu estou pedindo... ligue para ele. Toma... agora!
A voz dele vai ficando mais fraca e ele deixa de olhar para mim. Com as mãos tremendo, eu procuro o nome nos contatos destacados e ligo pedindo a tudo que o meu pai fique bem. Ele precisa ficar bem!
De repente, ele para de se mexer como antes, parece estar agonizando e o meu desespero triplica. Ele está indo. Eu não acredito que isso esteja acontecendo tão rápido e ainda dessa forma. Ele puxa o ar com mais força, os olhos dele ficam parados encarando o teto e eu sinto as mãos dele ficarem frias.
— Não, não, não... pai... por favor... — Não adianta. Ele não corresponde.
Isso é um pesadelo.
{ . . . }
O corpo do meu pai está caído no chão e não há mais nenhum sinal de vida. Ele morreu bem aqui, bem na minha frente e a mão dele parece um gelo. O choro cessou, eu me sinto petrificada e a única coisa que eu consegui fazer, foi fechar os olhos dele.
Apenas isso.
Não sei quanto tempo se passou, mas eu o perdi. É um fato!
Eu perdi o meu pai. A única família que eu ainda tinha.
— Lili... — Ouço uma voz distante, mas eu não consigo me mexer. — Lili... venha, criança. Eu sou o Gustavo... o seu pai não está mais aqui.
— O que... houve com ele? — É tudo que consigo falar. A minha cabeça ainda nao processou isso.
— Ele foi envenenado... Flávio o enganou. — Eu ainda não consigo me mexer. — Vamos, você ficará bem. Pegue apenas o necessário e temos que ser rápidos.
Ele estende a mão e me ajuda a levantar. Em seguida, ele pega os papéis na mesa e eu vejo homens pegando o meu pai para retirá-lo. O meu choro vem com tudo e a ficha ainda não caiu.
A minha vida acabou!