Ponto de vista de Kira
Acelero a lancha, deixando para trás o túnel escuro e o peso da incerteza. O rio subterrâneo se alonga diante de mim, suas águas agitadas refletindo a luz fraca que se infiltra por fendas ocultas nas rochas. Meus olhos estão sempre em movimento, analisando o percurso, pronta para qualquer ameaça.
Enquanto sigo o curso do rio, encontro um rádio a bordo. Com um rápido ajuste nas frequências, começo a captar transmissões militares. Caço sinais até finalmente encontrar o que procuro: a frequência do esquadrão de Jair O Leão.
— Aqui é Kira. Estou viva. Encontro vocês no ponto que estou enviando agora.
A resposta dele vem rápida, solícita como sempre. Jair já está a caminho, pronto para me receber.
Ao emergir do subterrâneo e finalmente alcançar o ponto de encontro, lá está ele. Seus olhos me encontram de imediato, carregados de preocupação. Por um momento, ele parece avaliar meu estado, como se temesse encontrar algo pior do que vê. Mas quando me vê andando e falando normalmente, solta um suspiro longo, aliviado.
Ele se aproxima rápido e, antes que eu possa reagir, me puxa para um abraço forte.
Meu corpo enrijece. Meu instinto é afastá-lo, mas por alguma razão não consigo. Estou atônita, completamente paralisada. Estou praticamente nua, meu traje rasgado e mäl cobrindo minha pele, e um homem—um leão bioesculpido, forte e quente—está me abraçando como se tivesse medo de que eu desaparecesse.
Então sinto.
Um volume pressionando minha barriga.
O choque me faz encará-lo, confusa. Jair imediatamente se afasta um pouco, sua expressão se transformando em algo entre pânico e constrangimento. Ele cora, seus pelos se eriçando, e sua pele adquire um tom vermelho intenso.
Parece prestes a falar algo, mas nada sai. Apenas ficamos ali, congelados no momento mais absurdamente estranho que já vivenciei.
Jair continuou me encarando por alguns segundos, os olhos dourados analisando cada detalhe meu, como se tentasse confirmar que eu realmente estava ali, viva. Finalmente, ele quebrou o silêncio, sua voz carregada de incredulidade.
— Como diabos você escapou? E ainda por cima conseguiu uma lancha?
Soltei um suspiro pesado, sentindo a exaustão pesar sobre mim.
— Foi por pouco. Desarmei um mini artefato nuclear, encontrei um cofre e a Dra. Chambers. Peguei alguns itens lá dentro, e foi assim que descobri uma passagem secreta que dava direto para um canal subterrâneo. — Cruzei os braços e encarei Jair. — Aposto que usavam aquilo para contrabando. Mas me diz e o Dentuço? Não o encontrei. Vocês tiveram sucesso? Alguma equipe pegou ele?
Jair respirou fundo, seu semblante se tornando mais tenso.
— A operação foi uma zona. Tinha mais resistência do que esperávamos. Mas no meio da confusão, consegui encontrar o Killey. Ele estava encurralado, cercado por atiradores. Se eu tivesse demorado mais, ele não teria saído de lá. Dei um jeito nos desgraçados e tirei ele de cena.
Minha expressão é impassível. Saber que Killey estava seguro era um alívio, mas minha preocupação maior ainda pairava sobre outra coisa.
— E o Dentuço? — perguntei, mais firme.
Jair cerrou os punhos, visivelmente irritado.
— Fugiu. O filho da püta sumiu antes que pudéssemos fechar o cerco.
Meu maxilar travou. Aquele desgraçado ainda estava solto.
— Então, qual é o próximo passo?
Jair me olhou por um momento antes de soltar um suspiro, um pequeno sorriso de canto surgindo em seu rosto.
— Agora nos reagrupamos. Você já fez o impossível uma vez hoje… não vejo motivo pra parar agora.
Eu concordo com ele. Peguei muitos datachips, e logo pergunto:
— E o seu amigo Netlinker?
Jair me encara por um instante antes de responder.
— Ele está bem.
— Então chama ele. Quero que comece a analisar esses datachips e tente quebrar as criptografias enquanto eu cuido do resto.
Jair assente e leva a mão ao rádio, fazendo a chamada. Enquanto isso passo para ele as caixinhas com os datachips e analiso o curso do rio. Se eu seguir por ele, sairei da Cidade da Sucata e chegarei aos limites de Manaus.
— Jair, vou seguir pelo rio e chamar algumas pessoas para recolher o que consegui. Não confio em ficar aqui com tudo isso. — Falo enquanto ligo novamente a lancha e já começo a me afastar.
Ele abre a boca para responder, mas não dou tempo.
— Mas eu volto antes de você falar: "O peito do pé de Pedro é preto¹."
Jair me encara, primeiro incrédulo, depois com um brilho divertido nos olhos.
As pessoas devem achar que eu não tenho senso de humor, mas eu tenho. O problema é que o meu é mais literal que o dos outros. Ainda assim, é humor. Penso nisso por um momento e analiso como poderia melhorar minhas interações sociais. Talvez seja algo a se trabalhar, mas isso é algo para se pensar em outro momento.
Abro o canal de comunicação com Logan, esperando que ele esteja melhor e disponível. Não demora para que sua voz surja do outro lado, firme, mas com um tom ligeiramente cansado.
— Preciso que vá se encontrar comigo. Temos algumas coisas para retirar e levar para Manaus. — Digo sem rodeios.
Ele concorda sem questionar, o que me agrada. Há algo em Logan que me faz confiar nele, mesmo o conhecendo há pouco tempo. É estranho, mas minha vida tem sido uma sucessão de novidades, e se há algo em que aprendi a confiar, são em meus instintos. E eles me dizem que Logan é uma boa pessoa.
Confiável até certo ponto.
Sei que ele não faria besteira comigo. Noto um respeito claro em sua postura quando nos falamos, talvez até um leve receio. E isso é bom. Mantém as coisas em ordem.
E eu amo ordem.
Ao chegar aos limites de Manaus, paro na margem do rio. Daqui, já consigo ver as casas, prédios, fábricas e toda a movimentação da cidade. A vista tem seu charme, um equilíbrio entre caos e progresso.
Logo avisto Logan se aproximando, vindo a bordo de um veículo de impulso vetorial. Quem pilota é G.E.S.S., conectado à interface de comando, guiando a máquina com precisão. O veículo paira no ar antes de pousar suavemente, demonstrando sua destreza como Netlinker.
Sem perder tempo, começo a descarregar a lancha, passando tudo para o veículo. Logan observa os itens, os olhos se arregalando conforme percebe o valor do que estamos transportando.
— Entre em contato com o mercado nëgro e venda tudo. — Digo enquanto organizo um dos pacotes. — Vou te dar uma comissão pela negociação.
Logan pisca algumas vezes, surpreso.
— Tá falando sério?
Dou de ombros.
— Vai ganhar uma grana só para vender coisas. Fácil demais.
Ele abre um sorriso satisfeito, já imaginando o lucro.
Após descarregar a lancha, sigo de volta para a Cidade da Sucata. Ainda há coisas a serem resolvidas. Logan se oferece para ajudar, mas recuso—ele tem seu próprio trabalho a fazer.
Ele acaba concordando, e logo estou a caminho. Assim que chego ao píer, desembarco da lancha e a deixo para trás, seguindo a pé até o acampamento de Jair. Imagino que todos estejam lá. E, como esperado, o lugar está lotado—umas duzentas pessoas, no mínimo. Odeio multidões. Odeio o burburinho constante de múltiplas conversas. Meu ciberáudio capta tudo com extrema sensibilidade, mas, felizmente, posso filtrar os sons e focar em uma única conversa usando os recursos do meu implante cibernético. Faço isso agora, sintonizando na conversa entre Jair e seu Netlinker.
Parece que o amigo de Jair já conseguiu decifrar alguns chips e descobriu informações sobre um Bunker² onde Dentuço pode ter se refugiado.
Vou me aproximando deles, mas paro ao perceber que a conversa toma um rumo diferente.
Ghost lança a pergunta com um tom meio cínico, arqueando uma sobrancelha:
— Cara, você tá interessado na Kira? Ela parece uma mulher difícil de acessar.
Jair, que até então parecia focado no assunto do bunker, desvia o olhar por um instante, como se ponderasse a resposta. Então, com um meio sorriso, responde:
— Kira é uma mulher linda. Tem uma sagacidade combativa enorme e uma desenvoltura em campo absurda… — Ele pausa por um segundo, como se as palavras viessem sozinhas, sem esforço. — Além disso, o corpo dela… é incrível. As curvas, o jeito que ela se move, até o cheiro que exala… às vezes me pergunto se ela tem implantes de feromônios porque…
De repente, ele se cala, percebendo que havia falado demais. Seu olhar fixa no vazio por um instante, e Ghost solta uma risada curta, cruzando os braços.
— Você tá ferrado, mano. — Ghost debocha, balançando a cabeça.
Jair pigarreia, tentando recuperar a compostura.
— Foco no bunker. — diz, desviando o olhar, mas Ghost apenas sorri, claramente se divertindo com a situação.
Me aproximo com firmeza, fingindo que nada ouvi e mantendo a postura profissional.
— E então, quais as novidades? Conseguiu acessar as informações dos chips?
Ghost troca um olhar rápido com Jair antes de responder:
— Sim. Descobrimos que a Dra. Chambers ficou sabendo de um plano do Dentuço. Ele já tinha roubado uma quantia absurda de diversos líderes da máfia, chefes de gangue e até políticos de Manaus. Esses caras lucram com o tráfico que rola aqui na Cidade da Sucata enquanto lavam dinheiro por meio de corporações de fachada na capital.
Ele faz uma pausa, como se digerisse a ironia da situação, e então continua:
— O Dentuço sabia que, quando descobrissem o rombo, esses figurões iriam atrás de alguém para culpar. Então ele decidiu se antecipar. Pretendia usar o ataque da resistência como cortina de fumaça, jogando a responsabilidade dos prejuízos nas nossas costas. Com isso, sairia limpo da jogada. Ficaria escondido no bunker até a poeira baixar e, quando tudo esfriasse, voltaria para reerguer seu império.
Ghost solta um riso curto, cruzando os braços.
— E o pior? Ele ainda sairia como herói da história. Ardiloso pra cäcete.
— E ela tinha a localização do bunker? — pergunto, meu tom carregado de determinação. — Preciso terminar o que comecei.
Ghost me encara com um olhar astuto, um pequeno sorriso de canto de boca.
— Tinha. E acabei de te enviar. — Ele dá um leve toque na lateral da própria cabeça, indicando a transmissão dos dados.
Verifico a notificação no meu implante e aceno, satisfeita.
— Ótimo. Então, estou indo. — Sorrio de maneira cínica, olhando para os dois.
Jair desvia o olhar por um instante, claramente desconcertado, enquanto um leve rubor surge em seu rosto. Ghost, por outro lado, apenas sorri de volta, inocente como sempre.
Os dois respondem em uníssono:
— Boa sorte.
Dou as costas e sigo em frente.