Ponto de vista de Teresa
Dor. Tudo em meu corpo arde, cada célula se contorcendo em agonia enquanto a transmutação acontece. Meu maxilar está travado, os músculos rígidos como se estivessem sendo arrancados e reconstruídos ao mesmo tempo. Se eu soubesse que seria assim, talvez não tivesse vindo...talvez.
Mas, mais cedo foi tão bom. Especial.
FLASHBACK
— Oi, Teresa. Te chamei aqui para conversarmos sobre Kira, Analisa, Aurora... e sobre a gangue.
As palavras dele pareciam distantes, abafadas pelo turbilhão dentro de mim. Segui-o até a sala que ele indicou, mas antes que pudesse pensar, antes que qualquer palavra fosse dita, meus instintos tomaram o controle. Agarrando-o sem hesitação, meus lábios encontraram os dele num beijo carregado de necessidade, de desejo acumulado por tempo demais.
O mundo ao nosso redor desapareceu. Tudo que importava era o calor do seu toque, o modo como suas mãos deslizavam por minha pele, como se quisessem memorizar cada contorno. Meu coração disparava, cada batida ecoando a intensidade do momento. O arrepio que percorria meu corpo não era apenas físico—era algo mais profundo, mais intenso. Um alívio e um tormento ao mesmo tempo.
Cada toque era uma resposta à fome que eu tentava ignorar. Cada suspiro, um reflexo da urgência que crescia dentro de mim. Sentia-me viva, completamente entregue àquele instante. Não era apenas desejo. Era um grito silencioso, um clamor por conexão, por algo mais do que apenas palavras frias e responsabilidades. Era uma fuga, um encontro, uma tempestade e uma calmaria ao mesmo tempo.
A sensação de proximidade, de pele contra pele, despertava algo primitivo e ao mesmo tempo terno dentro de mim. O calor, os olhares trocados, os suspiros que preenchiam o silêncio diziam mais do que qualquer conversa poderia. E no meio disso tudo, eu me perdi—e ao mesmo tempo, me encontrei.
Quando finalmente nos permitimos respirar, ainda ofegantes, senti um sorriso surgir em meus lábios. Não apenas pelo prazer, mas pelo que aquilo significava. Porque naquele instante, naquele espaço compartilhado, não éramos apenas dois corpos buscando alívio—éramos dois seres buscando um ao outro.
FIM DO FLASHBACK
E então a noite caiu, e o encontro aconteceu. Kira estava presente e, com firmeza, me confirmou: Killey é, de fato, o meu Chang – o homem por quem sempre fui apaixonada.
Quando começamos a namorar, eu tinha a convicção de que ele seria sempre meu. Para mim, ele era o homem ideal: cheio de atitude, tocava Rock e interpretava suas canções com a paixão de um verdadeiro astro.
Mas, em pouco tempo, tudo começou a se transformar. Sua família, as missões perigosas em que se envolvia, os caminhos perigosos que escolheu – ele se metia onde não devia, com as pessoas erradas. E as corporações, aquelas que tanto desprezo, passaram a exercer uma influência cada vez maior em sua vida.
Agora, com Logan demonstrando a postura de um homem maduro, responsável e lutador pelos direitos do povo e pela liberdade, sinto uma nova atração emergir. A verdade é que, embora Killey seja o meu Chang, ele mudou tanto que parece não ser mais o homem que eu conhecia. Ele se transformou, assumindo um papel sombrio, um assassino a mando de uma corporação: a BioCom.
Nesse momento estou tão püta com tudo que foi jogado em meu colo, que acabo me excedendo.
Me sinto possuída por uma coragem que vem da raiva que sinto de tudo que Kira defende. Corporações!! Vou ate ela e a cutuco no ombro.
— Você realmente não quer saber o que é? Quem foi um dia?
A resposta de Kira vem sem hesitação, sem emoção, como se a pergunta sequer fizesse sentido:
— Não. Quem eu fui ficou no passado. Não me importa. Se deixei de ser, é porque eu era fraca. Quem eu sou agora é o que me define. E o que quero ser no futuro é o que realmente importa.
Eu fico mais indignada ainda, nao acredito que alguem não quer saber sua própria história. Isso faz parte de nós, entender o que fomos, de onde viemos. Acabo cuspindo as próximas palavras, querendo provocar alguma reação nela, tira-la dessa pose que ela ostenta de inabalável e intransponível.
— E quem você quer ser no futuro? — Minha voz sai diferente do que eu queria, ela sai carregada de frustração. — A superarma da BioCom? Uma supersoldado da Elitech? Uma aberração viva que mata por prazer? Quem, Kira? Quem?!
Mas Kira apenas avança, sem pressa. Sem raiva e sem hesitar, me fitando sem sequer piscar.
— Vocês parecem não ter entendido nada sobre quem eu sou.
Ela solta um riso baixo, desdenhoso. Algo gélido e sem humor.
— Mas tudo bem. Eu sou uma pessoa prática. Eu posso mostrar.
A voz dela me faz estremecer por dentro, a ponto de meu coração quase saltar pela boca.
Ela se aproxima ainda mais de mim e suas mãos tocam meu rosto. Os dedos deslizam lentamente até meu pescoço, um toque que, por um instante, parece quase gentil.
Mas sinto algo roçando em minha pele, algo frio e levemente pegajoso, ela então continua me encarando:
— Quem eu toco… jamais se volta contra mim, Teresa.
Sua voz sai arrastada, fria como um sussurro da morte.
E então, sem aviso...
Dor.
Uma dor tão aguda, tão absurda, que me corta em mil pedaços. Vai além da carne. É como se cada célula do meu corpo gritasse em uníssono. Tento respirar, mas o ar me escapa. Tento pensar, mas os pensamentos se fragmentam e se apagam, como folhas ao vento.
E então… o silêncio.
Não porque a dor cessou. Mas porque ficou tão intensa, tão absoluta, que meu corpo simplesmente parou de registrar. E nesse vazio silencioso... algo se abre.
Vejo.
Não com os olhos, mas com a mente. Com a alma.
Vislumbro o impossível: a mente de Kira.
Um tempo que não é o meu. Uma vida que não é a minha. Mas eu a sinto. Cada batida, cada lembrança.
Ela. Um homem. Crianças. Uma vida comum — não, perfeita. Felicidade pura, como uma brisa morna em uma manhã tranquila.
Mas então... perseguição. Alguém os caça. Ela corre. Ele também. Medo, tensão. E então...
Explosão.
Chamas. Dor. Carne sendo arrancada. Um clarão e tudo escurece.
Claustrofobia. Aperto. É como se eu estivesse dentro de algo — não, dentro de alguém.
Nascimento. Um casal olha para ela com um amor tão puro que me faz chorar. Mas é breve. Tudo se desfaz.
Dor. De novo.
Lembranças embaralhadas, estranhas. Treinamento rigoroso. Frio. Neve. Montanhas.
Outro casal... mortos. Sangue quente escorrendo pela neve branca. E o choro... o choro de uma criança.
Eles a pegam. Homens sombrios. Sem rosto. A criança é Kira. Eu sei.
Experimentos. Agulhas. Correntes. Isolamento. Gritos. Fome. Desespero.
Um homem, ensanguentado, no centro de uma arena. Ela... ela o devora. Não como uma fera. Mas como algo mais profundo, mais antigo. Ela o absorve.
E então vem o frio. O vazio. Mais tiros. Bombas. Escuridão.
Um novo horror.
Um homem enorme. Uma muralha viva. Ele arranca o braço direito dela com brutalidade. Depois a perna. E então segura sua cabeça com uma força monstruosa...
Escuridão.
Treinamento. No topo de um prédio. Ela gira com precisão assassina. A monokatana dança em suas mãos como extensão de sua vontade.
Luta. Determinação. Ódio. Sobrevivência.
E então... tudo para.
Silêncio.
Fico ofegante. Suando. Tremendo.
Caí no chão. Disso eu tenho certeza. Mas me levanto devagar, como se algo dentro de mim tivesse mudado. Meus sentidos estão afiados. Cada som, cada vibração no ar... tudo parece mais nítido.
Percebo Kira se afastando — deve ter ido abrir a porta. Killey chegou. Antes, isso talvez tivesse me causado nervosismo... mas agora? Agora não me importa. Não como antes. Como se parte das inseguranças, dos medos, receios... simplesmente tivessem evaporado.
Logan se aproxima, os olhos cheios de preocupação, tentando ler minha expressão. Quase posso sentir a tensão em seu gesto. Mas estou bem. Não — estou ótima.
Ofereço a ele um sorriso estonteante, para mostrar toda minha animação.
Algo em mim foi desperto.
Há uma presença sutil dentro de mim — não invasiva, mas íntima. Como se uma voz sempre tivesse estado ali, adormecida nas profundezas da minha mente... e agora, finalmente, despertasse. Mas eu sei que não é algo apenas meu. É algo nosso.
E então compreendo. Agora eu e Kira somos como uma só. Ligadas de uma forma que vai além da lógica, além do físico. Mas, mesmo assim, há outra frequência... um pulsar diferente, paralelo, que vibra ao alcance da minha percepção.
Minha consciência parece expandida, como se cada pensamento agora ecoasse com uma clareza cristalina. Estou mais viva. Mais alerta. Sinto uma força nova percorrendo meus músculos, uma precisão nos meus reflexos que nunca experimentei. Meu raciocínio desliza veloz, ágil, certeiro, como se estivesse antecipando o mundo.
É como se tudo ao meu redor tivesse desacelerado.
Enquanto eu... acelerei.
Instintivamente, lanço um olhar na direção da outra presença que sinto. E lá está ele. Jair.
Nossos olhos se encontram por um breve momento, e ele me observa com a mesma consciência nos olhos. Há um reconhecimento silencioso. Um sorriso leve se forma em seus lábios.
Então é isso. Ele também sente.
Ele também é como eu.
Somos um com ela.
Sou outra, agora.
E, de algum modo, ainda sou eu.
Só que... mais.
Muito mais.