- CIDADE DA SUCATA: GUERRA PARTE IV

1695 Words
Ponto de vista de Kira Eu desperto. Calor. Chamas. O cheiro acre de carne queimada e metal retorcido. Os gritos parecem distantes, como ecos de um pesadelo. Tiros. Explosões. O mundo ainda treme. Tudo é barulho, caos e morte. Minha visão se ajusta. Meu corpo está coberto de apêndices metálicos, filamentos vivos de polímeros reforçados que se agarram aos destroços ao redor, puxando matéria para reconstruir meu braço arrancado. A estrutura se refaz camada por camada, até que os dedos finalmente respondem ao meu comando. Ainda estou fraca. Me arrasto, os músculos pesados, a pele latejando onde os nanoides ainda trabalham para fechar os ferimentos. Meu gancho. O vejo jogado a alguns metros de mim. Preciso dele. Forço o corpo para frente, cada movimento um esforço brutal. O calor faz o ar vibrar, dificultando a respiração. Quando finalmente alcanço o dispositivo, agarro-o com a mão recém-formada. Sem perder tempo, o conecto ao braço. A estrutura se ajusta, tudo se alinha novamente. Acho que se passaram apenas alguns minutos, mas tempo demais já foi perdido. Preciso me mover. Killey. Meus olhos percorrem os escombros. O vejo caído, o corpo imóvel no chão alguns metros à frente. Mërda. Me aproximo com pressa e me ajoelho ao lado dele. Seu peito sobe e desce—está vivo. Sem pensar duas vezes, o ergo e o coloco sobre meus ombros, segurando-o firme. Eu não vou deixar ele aqui. O calor ainda é intenso, mas sigo em frente, me forçando a ignorar o cansaço. Uma residência intacta surge à minha frente—rara em meio à destruição. Já estamos no bairro Central. Empurro a porta, entro e encosto Killey no chão com cuidado. Então, ouço. Lá fora, tiros ecoam. O confronto está acontecendo. Preciso chegar até lá. Rápido. Saio da residência e me deparo com dois sicários sob fogo supressivo¹. O cenário é um caos absoluto—pessoas correm em busca de cobertura, granadas explodem no solo, mísseis cruzam o ar antes de atingirem seus alvos. Torres desabam, corpos caem, tudo está ruindo. Mas eu continuo de pé. Uma rajada de balas me arranca dos pensamentos. Minha roupa blindada já não existe; estou praticamente nua. Mas minha pele reforçada absorve todos os tiros. O impacto ainda queima um pouco, mas nada que me detenha. Corro na direção dos homens abrigados atrás de trincheiras, onde operam uma metralhadora de apoio pesado, mantendo o fogo supressivo. Quando me aproximo da zona de impacto, salto sobre ela. A biomecânica do movimento é precisa: minhas ciberpernas possuem ligamentos reforçados que maximizam a impulsão, enquanto minha coluna é reforçada com placas que oferecem suporte estrutural, impedindo fraturas ou sobrecarga no pouso. Afinal, são 79 quilos aterrissando com força—sem essa biomecânica, o impacto poderia ser danoso até para mim. Caio sobre eles com força. Minha monokatana se foi—quebrada na última ação—mas ainda sou letal. Aterrisso com uma voadora certeira no primeiro homem, esmagando-o contra o solo. Antes mesmo que o segundo possa reagir, giro sobre o próprio eixo e enfio minha wakizashi direto em seu ouvido esquerdo. O corpo dele estremece por um instante antes de desabar. Com ambos mortos, o fogo supressivo cessa, e nossos homens finalmente avançam. A investida continua feroz. O som de tiros, explosões e gritos ecoa ao nosso redor enquanto empurramos a linha inimiga para trás. E então, finalmente, o vejo—o Castelo. Uma mansão colossal, um verdadeiro monstro de concreto e aço. Tão imponente que parece uma fortaleza medieval, uma aberração do passado em meio à guerra tecnológica do presente. Mas algo está errado. Eu sinto isso. O muro já não é mais uma barreira; um buraco gigantesco foi aberto, provavelmente por um ataque de artilharia. Sem hesitar, avanço por entre os destroços, pisando sobre corpos espalhados pelo chão. O cheiro de pólvora e sangue se mistura no ar espesso. Meus instintos estão em alerta máximo. Tem algo esperando por mim lá dentro. Algo grande. O pátio se abre diante de mim, uma cena de luxo em ruínas. No centro, uma fonte grandiosa resiste ao caos, mas sua água cristalina agora se mistura ao vermelho escuro do sangue. Os degraus de mármore ao redor estão rachados, lascas de pedra espalhadas pelo chão. Escadarias suntuosas serpentam para os andares superiores, conectando mezaninos cheios de corredores e portas que escondem segredos. O lugar realmente parece um castelo, uma relíquia medieval no meio de uma guerra moderna. Mas eu não quero subir. Quero ir para baixo. Pelo rádio, confirmo que nossas forças já tomaram quase todo o local. O som dos combates diminuiu, substituído por comemorações e gritos de vitória. Para eles, acabou. Para mim, ainda não. Ouço um assobio agudo cortando o ar. Algo se move rápido demais. Olho para cima. Um corpo despenca do mezanino, braços e pernas se debatendo no vazio. O impacto na fonte faz a água espirrar em todas as direções. O estalo seco do pescoço quebrando ecoa pelo pátio. O corpo flutua ali, imóvel, afundando lentamente no líquido tingido de carmesim. Nada disso me distrai. Sigo em frente, atravessando uma cozinha ampla. Pego mais transmissões de rádio—vozes exaltadas, soldados aliviados, risadas soltas. Mas algo dentro de mim continua alerta. Meu caminho me leva até uma escada estreita que desce para o subterrâneo. Masmorras. Que tipo de louco mantém masmorras nos dias de hoje? O cheiro de ferrugem e mofo se intensifica conforme desço. O corredor subterrâneo é escuro e frio, os degraus cobertos de poeira e umidade. Celas de metal alinham-se dos dois lados, algumas abertas, outras ainda trancadas. Meus passos ecoam entre as paredes de pedra. E no final do corredor, eu a vejo. Dra. Kelly Chambers. Está sentada no chão de sua cela, encostada contra a parede. Suja, visivelmente machucada, mas com os olhos brilhantes de astúcia. Ela está medindo cada um dos meus movimentos. Avaliando. — O que faz aqui, Dra. Chambers? — minha voz soa irônica, mas meu tom carrega uma ponta de curiosidade. — Não me parece a ala VIP para alguém tão importante. Ela não responde de imediato. Apenas me encara. — Que pena que não ficará viva após nosso encontro. Por um instante, ela esboça um sorriso fraco. Mas não é medo que vejo ali. Algo mais à frente prende minha atenção. Uma porta metálica gigante, cerca de duzentos metros adiante, no final do corredor. — Posso te dizer o que tem ali — ela murmura. — E, em troca, você me deixa viver. A proposta me faz rir. Seguro as grades da cela e, com um puxão seco, arranco a porta das dobradiças. Metal retorcido range, e a cela se abre como uma casca frágil. Ela mäl tem tempo de reagir antes que eu a agarre pela garganta e a arremesse contra a parede. O impacto ressoa pelo espaço confinado. Ela luta para respirar, as mãos tentando afrouxar meu aperto. Mas ainda assim, mesmo sufocando, ela sorri. Um sorriso estranho. Algo que faz meu instinto gritar. — Bom, somos duas, então — ela sussurra. Um calafrio percorre minha espinha. Algo está errado. Mas não dou chance para que ela continue seu jogo. Com um movimento preciso, giro seu pescoço. O estalo ressoa na cela escura. Seu corpo desaba, inerte. Respiro fundo. O ar aqui embaixo parece mais pesado agora. Algo não se encaixa. Meus olhos se voltam para a porta metálica gigantesca à frente. Seja lá o que está atrás dela é grande. O silêncio ao redor se torna opressor, como se o próprio ambiente segurasse a respiração comigo. Meus instintos gritam, mas a curiosidade e a adrenalina superam qualquer hesitação. Saco meu thermite e aplico ao longo da extensão da porta, focando nas dobradiças grotescamente grossas. O material incandescente começa a corroer o metal, cuspindo faíscas e fumaça enquanto corta através da estrutura reforçada. Seguro um fósforo e o risco sem falhas. A chama se acende e toca o thermite, que queima com uma luz branca intensa. O calor é sufocante, quase me cegando. Então, com um estrondo ensurdecedor, a porta cede. Ela despenca com um impacto violento, levantando uma nuvem de poeira e detritos. As paredes estremecem, pequenas lascas de concreto caem do teto, e por um momento, tudo fica envolto em uma névoa cinza. Quando a poeira começa a assentar, o que se revela diante de mim é um cofre. Mas não um cofre comum. É uma sala inteira, abarrotada de riqueza e decadência. Peças de arte penduradas em suportes de alta segurança, dinheiro empilhado em feixes organizados, joias cintilantes em vitrines blindadas, armas dispostas em suportes como se fossem troféus. Caixas abertas exibem drogas empacotadas com precisão milimétrica. Cada item ali representa poder, crime e influência. Mas nada disso me interessa. Meu olhar se fixa no centro do cofre. Ali está ele. Um artefato de fusão nuclear. E a contagem regressiva já está em três minutos. O tempo desacelera na minha mente. O bip da contagem pulsando como um segundo coração dentro do cofre. Meu corpo responde antes da minha mente processar: minha mão já está puxando as ferramentas da mochila. Mochila. Algo chama minha atenção no canto da sala. Entre tantas caixas e suportes luxuosos, há algo que destoa completamente. Uma mochila simples, de lona escura, jogada displicentemente ao lado de uma mesa. Me aproximo e a pego. É gasta, com alguns rasgos no tecido, mas não parece abandonada há muito tempo. Isso não pertence ao lugar. Isso pertence a alguém. Puxo o zíper e reviro o conteúdo. Papéis. Muitos papéis. Franzo o cenho. Quem diabos ainda usa papel hoje em dia? Folheio rapidamente, vendo diagramas, anotações à mão, fórmulas rabiscadas com pressa. Entre eles, localizo vários chips de dados, organizados em pequenos estojos plásticos. No fundo da mochila, há algo mais sólido. Puxo e vejo um notebook fino, sem identificação aparente. A ficha cai. Isso era da Dra. Kelly Chambers. Alguém deixou isso aqui. Mas quem? E por quê? O que estava tentando esconder ou levar? Não tenho tempo para pensar agora. Seguro a mochila firme e a jogo para trás, prendendo-a nas costas. Meus olhos voltam para o artefato nuclear. Dois minutos. Preciso desarmá-lo. Puxo minha desparafusadeira e começo a abrir a carapaça.
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