Ponto de vista de Aurora
Eu já estava na igreja, aguardando com o coração pulsando de alegria. Uma felicidade confusa, misturada. Era o dia da minha irmã, mas de certa forma... também era o meu. Parte de mim sonhava que, agora com Amanda comprometida, Douglas talvez olhasse para mim — me visse de verdade.
Estava tão envolvida com meus pensamentos e expectativas que decidi deixar meu celular em casa. Não queria interrupções. Nada poderia tirar o brilho daquele dia. Nada... ou quase nada.
De repente, o burburinho começou. Um corre-corre, sussurros, celulares tocando por toda parte. As pessoas olhavam umas para as outras, inquietas. Eu não entendia. Sem o meu celular, estava isolada no meio do caos.
Foi quando Douglas apareceu ao meu lado. Ele estava... estranho. Gélido. Seus passos firmes, expressão dura, olhar vazio. Quando me encarou, senti um arrepio subir pela espinha — não havia calor, não havia alma. Apenas um vazio sombrio.
— Amanda e Alessandro... — ele começou, a voz baixa, firme, cortante — sofreram um atentado.
Meu corpo travou. As palavras não fizeram sentido de imediato. Era como se o tempo tivesse parado.
— Alessandro está no hospital, indo para a U.T.I — ele continuou, mas então engoliu seco. Seus olhos, por um segundo, brilharam com algo. Uma fagulha de emoção. Lágrimas ameaçaram surgir. Pela primeira vez naquele momento, vi um resquício de humanidade nele.
Mas foi só um segundo. Ele respirou fundo, endureceu o olhar novamente e concluiu, impiedoso:
— Mas Amanda não sobreviveu. Faleceu no local. Os bombeiros tentaram reanimá-la, mas não houve sucesso.
O mundo à minha volta desabou.
Senti minhas pernas fraquejarem, o coração esmigalhar dentro do peito. Uma dor sürda, profunda, indescritível me rasgou por dentro. Era como se tivessem arrancado um pedaço de mim.
Tudo que fiz. Tudo que abdiquei. Todos os sacrifícios, o esforço, o amor, o silêncio. O tempo todo me anulando, cuidando dela, protegendo-a, mantendo meus sentimentos por Douglas escondidos, engolindo cada desejo, cada frustração, tudo... por ela.
E agora ela se foi.
Nada fazia sentido. E pela primeira vez, eu senti ódio. Um ódio sürdo, contido, engolido como todas as minhas verdades.
Depois daquele dia, eu perdi tudo. Minha irmã. Parte do meu amor próprio. E, talvez, minha sanidade também.
Foi como se uma rachadura invisível tivesse se aberto dentro de mim, engolindo tudo o que eu era. Passei a viver sob outra identidade, me escondendo do mundo — e de mim mesma. Comecei a dançar. Sim, fui trabalhar em um clube noturno. Um lugar de luzes piscantes, corpos em movimento e almas vazias. Eu queria adrenalina. Algo que me lembrasse que ainda estava viva. Algo que doesse — mas de um jeito diferente.
E foi lá, entre música alta e olhares desconhecidos, que conheci Jason. Um daqueles caras que vivem no limite, viciado em velocidade e perigo. Participava de rachas com sua moto — uma Kawasaki Ninja H2R, uma máquina insana. Amanda teria amado aquilo. Ela e Alessandro sempre estavam na moto dele, uma Harley-Davidson Roadster clássica, cheia de estilo e alma.
E agora eu tô aqui, com esse cara em cima de uma máquina feita pra voar. A Ninja ronca como uma fera e corta o vento como uma lâmina. Chega fácil aos 300 km/h. Mas meu cérebro, esse traidor incansável, me lembra que o recorde dessa moto foi 401 km/h na ponte Osman Gazi, na Turquia. Um detalhe inútil, talvez, mas é isso que eu faço. Penso demais. Analiso tudo. Me reservo. Mas isso mudou.
Desde que o mundo ruiu sob meus pés e percebi que viver com medo, com cuidado, com cautela não salva ninguém.
Então agora eu acelero. E danço. Porque é tudo o que me resta.
Jason sumiu, não o vi mais. Meses de dor se arrastaram como uma névoa pesada sobre minha alma. Cada dia era uma batalha silenciosa para levantar da cama, vestir uma máscara e fingir que a vida ainda fazia sentido. Mas eu seguia. Acordava, cumpria minhas necessidades básicas como um robô programado, me arrastava até a BioCom, cumpria meu expediente com uma eficiência mecânica.
Quando o relógio marcava o fim do dia, eu voltava para casa, e era lá que eu me transformava. Montava minha segunda pele, a fantasia da mulher que dança no clube, que vive nas sombras, que busca adrenalina como quem busca ar. À noite, pegava minha moto e cortava o asfalto como uma navalha, voando baixo pelas avenidas, como se pudesse deixar a dor para trás.
Mas mesmo assim... eu nunca fui como o Jason. Nunca tive coragem de entrar nos rachas. Quando eu corria eu me lembrava da Amanda, me lembrava da perda, do grito silencioso que ecoava dentro de mim desde o atentado. Eu pilotava por liberdade, não por disputa.
E foi nesse ciclo vicioso, nessa rotina cansada de morte e fuga, que Jason reapareceu. Quase como um fantasma, um sopro do passado ou talvez um novo capítulo. Já tinha uns dois meses que eu não o via. Ele chegou com aquela leveza fingida de quem “não quer nada”, mas foi ocupando, centímetro por centímetro, o espaço que meu coração tentava manter trancado.
Jason era caos, mas era um caos com cheiro de vida. Ele ria alto, me chamava para a beira do abismo e me segurava pela mão quando eu me inclinava demais. Com ele, senti algo pulsar de novo dentro de mim. Algo quase esquecido.
O mundo ao redor vira um borrão. A velocidade me leva, e por um instante, não há dor — só o rugido da moto, o vento rasgando o rosto e o coração batendo como se quisesse fugir do peito. Jason está na frente, deitado sobre a moto como se fosse extensão do próprio corpo. Ele sorri de lado, aquele sorriso atrevido que sempre me desarmava, e faz um gesto com a mão pra eu acelerar mais.
E eu vou.
Naquela noite, éramos dois fantasmas desafiando a morte.
De dia, eu vestia minha máscara. Aurora, a secretária eficiente, de cabelos presos e roupas neutras, passos firmes pelos corredores da BioCom. Discreta. Organizada. Invisível. De noite, outra coisa despertava. Eu me transformava. Colocava botas de couro, maquiagem pesada, jaquetas rasgadas e meu nome deixava de ser Aurora. Ninguém me chamava pelo nome verdadeiro. Nos bastidores do clube, era apenas "Loba". Selvagem. Imparável.
Jason conheceu as duas. E gostou das duas.
Ele dizia que eu era "perigo com batom e uma dose de inferno nos olhos", e ria, me puxava pela cintura, e me fazia esquecer. Por um tempo, pensei que aquilo era amor. Ou o mais próximo disso que alguém como eu conseguiria chegar. Ele nunca me julgou, nem pelas lágrimas que às vezes escapavam no meio da noite, nem pelas crises de silêncio, nem pelo jeito que eu às vezes sumia por dias pra apenas olhar o teto.
Quando ele sumiu naqueles dois meses atrás, ele me contou o que rolou na época.
Ele havia participado de uma corrida. Uma daquelas insanas, cheias de curvas perigosas e riscos calculados por gente que não tem muito a perder. Contou, quase empolgado, que havia se acidentado fëio. Disse que, depois de bater, rolou por mais de cem metros, e que antes disso a moto o arrastou por duzentos metros como se fosse um boneco preso ao destino.
“Por pouco não morri”, ele falou, com um sorriso que me cortou mais do que qualquer verdade. Me mostrou as cicatrizes — uma casca enorme na lateral direita das costas e ombros, como se sua pele tivesse sido arrancada por inteiro. Disse que, ironicamente, a moto ficou sobre ele e o protegeu do impacto contra o alambrado.
Eu não sabia o que sentir. Se ria, se chorava, se gritava ou fazia carinho. Mas no meio de tudo isso, fiz algo que vinha ardendo dentro de mim há semanas. Eu o beijei. Beijei com fome. Com desejo. Com medo.
E ele correspondeu.
O beijo cresceu como um incêndio incontrolável. Minhas mãos exploravam sua pele áspera, quente, cicatrizada, viva. Jason era carne e dor, era fogo e loucura, e eu estava pronta para me queimar.
Nos encostamos no sofá do meu pequeno apartamento. A cidade pulsava lá fora, indiferente ao que nascia entre nós ali. Ele me olhou nos olhos, e por um momento, tudo ficou em silêncio.
— Tem certeza? — ele perguntou, com a voz rouca, entrecortada.
— Não me pergunta isso agora — eu sussurrei, puxando a camiseta dele para cima.
Minhas mãos tremiam levemente, mas era uma tremedeira boa, de quem quer se entregar e sabe que é chegada a hora. Quando ele deslizou os dedos pela minha cintura e subiu minha blusa com delicadeza, senti meu corpo responder inteiro, como se cada célula acordasse ao toque dele.
Fomos nos despindo aos poucos, sem pressa, com reverência. Cada peça de roupa caída era uma barreira a menos, um medo vencido, uma parte de mim que confiava nele.
Quando ele me deitou sobre a cama, sua respiração quente misturada à minha, eu sabia. Sabia que era o momento certo. Que não era impulso. Era entrega.
Ele entrou em mim com cuidado, firmeza e ternura. E eu me abri, completamente, não só o corpo — mas a alma.
Ali, com os olhos dele nos meus, com nossos corpos colados e respirações entrelaçadas, perdi minha virgindade. Não como em contos de fadas. Mas como alguém que escolheu amar, mesmo depois da dor.
Naquela noite, fui dele.
E, de alguma forma, ele também foi meu.
Mas o destino é um sádico, e os finais felizes não gostam de mim.
Foi numa corrida. Mais uma. Jason queria quebrar um recorde — não o da velocidade, mas o dele mesmo. Queria se superar, se provar, não sei bem a quem. Talvez a mim. Talvez a ele mesmo. Eu tentei impedi-lo. Briguei, gritei, até chorei. Mas ele só sorriu, me beijou com gosto de despedida e loucura, e disse:
— Se algo acontecer, me guarda em você. Como tatuagem na alma.
Ele correu. E não voltou.
A explosão foi pequena, quase elegante. Um erro de cálculo. Um freio que falhou. A moto voou antes do corpo. Quando cheguei no local, tudo que restava era o cheiro de borracha queimada e a memória daquele sorriso torto.
Naquela noite, dancei até os pés sangrarem. Bebi até esquecer o próprio nome. Voltei a trabalhar no outro dia como se nada tivesse acontecido. Ninguém soube. Nem Douglas. Nem ninguém.
Jason virou mais uma cicatriz. Uma sombra a mais no meu rastro.
E agora… agora tudo parece mais silencioso.
Mas eu sigo. Porque é o que se faz com a dor: transforma em armadura, engole com café, e encara o espelho como se ainda houvesse salvação.