EP 1

1374 Words
Clara Menezes Hoje parece ser um dia comum. Lá fora, a chuva cai fina contra a vidraça, deixando pequenos riscos no vidro da janela. O céu está cinza, carregado, e as nuvens parecem pesar sobre os prédios de Nova York, mas aqui dentro está tudo tranquilo. É feriado local, o que significa que eu não precisei trabalhar. Um raro dia de descanso e amanhã é sábado. Ou seja, fim de semana de descanso. A cozinha está tomada pelo cheiro de aveia, canela e baunilha. Os meus braços se movem devagar, misturando a massa na tigela com uma colher de paü, e o som suave da peça raspando o fundo do recipiente preenche o silêncio entre nós. Estou preparando bolinhos de aveia, o desejo da Lila. Ela acordou com vontade de comer algo doce, e eu não sou do tipo que negä isso a ela, não agora. Olho de relance para a sala. Minha irmã está afundada na poltrona, coberta com uma manta leve, rindo baixo de uma comédia qualquer que passa na TV. O sorriso dela aparece e desaparece em ondas curtas, e mesmo quando sorri, não consigo deixar de notar as caretas discretas que ela faz. De vez em quando, ela muda de posição, ajeita as costas, respira fundo. Pequenos sinais que não escapam de mim. — Está confortável aí? — Pergunto, mexendo a massa. — Mais ou menos… — Ela responde, sem tirar os olhos da tela. — O Mateo parece estar treinando boxe aqui dentro... não seu explicar. A minha coluna está... doendo. Mateo. Eu sorrio sozinha ao lembrar o nome. Foi ela quem escolheu, semanas atrás. Disse que sempre achou bonito, forte, com significado. E eu não discordei. Gosto da sonoridade, gosto de imaginar o meu sobrinho correndo pela casa, atendendo quando chamarem por “Mateo”. A ideia me aquece, mas logo o medo me gela por dentro. A verdade é que eu não sei o que esperar. Lila está a poucos dias de completar nove meses. A qualquer momento, ele pode chegar. E eu… eu não sei se estou pronta. Não sei se nós estamos prontas. Respiro fundo e continuo mexendo a massa. Penso nas fraldas, nas pomadas, nos lenços, nas roupinhas que temos guardadas no pequeno armário do quarto dela. Sei que não vai durar muito tempo. Dinheiro sempre escorre pelas mãos quando se trata de criança. E já não temos tanto assim. Além disso, Lila não trabalha desde que a gravidez começou a pesar. Tudo ficou em cima de mim: o aluguel, as contas, a comida, as vitaminas dela, consultas. Eu não posso parar. Não posso simplesmente deixar de trabalhar. E, ainda assim, como vou sair e deixar ela sozinha com um bebê? A minha irmã nunca cuidou de um bebê. Eu também não. É a primeira vez para nós duas e o medo me corrói. Coloco a massa na forma e levo ao forno. Enquanto a cozinha se enche do cheiro doce, limpo a bancada automaticamente, passando o pano sobre cada migalha como se isso fosse me ajudar a organizar os pensamentos. Mas não ajuda. A cabeça lateja. Sinto a pressão subindo atrás dos olhos, como acontece sempre que penso demais nos problemas. Ultimamente, essa tem sido a minha rotina: preocupar-me. Faço um suco, tentando afastar a enxaqueca iminente. Corto as frutas em silêncio, mas meus olhos se voltam para Lila o tempo todo. Ela ainda assiste ao filme, mas se mexe inquieta. Leva a mão às costas, faz uma careta. — Você está bem? — Pergunto, levando o copo até ela. Ela sorri de lado, mas é um sorriso meio que forçado e um pouco estranho. — Só uma dorzinha na coluna. E o bebê mexendo sem parar. Acho que são aquelas contrações de treino que você falou... — Braxton Hicks — Digo, tentando soar confiante. — É normal. Ainda não é a hora, mas tem que ficar atenta. Fala alguma coisa… você está muito calada! Ela assente, mas não parece convencida. Eu também não estou. Tem alguma coisa! Os bolinhos finalmente ficam prontos, dourados, cheirosos. Deixo esfriar um pouco sobre a bancada, arrumo tudo na mesa com o suco, e tento disfarçar o nó no meu estômago. Conversamos sobre coisas bobas: a vizinha do andar de baixo que reclama do barulho, o vestido que ela comprou pela internet e que nunca chegou. Tudo para não falar sobre o que realmente pesa no ar. Até que Lila tenta se levantar. Ela segura os braços da poltrona, faz força, e com algum esforço fica de pé. Mas, no mesmo instante, os seus olhos se arregalam. Ela segura a barriga, olha para mim, e eu entendo antes que qualquer palavra seja dita. Um líquido escorre por entre as suas pernas, molhando a barra do vestido. — Clara… — A voz dela treme. O meu coração dispara. Por um segundo, entro em pânico, mas me forço a respirar fundo. Eu sabia que esse momento chegaria. Só não sabia que era hoje! — Vai dar tudo certo, Lila. — Corro até o quarto, eu pego a bolsa de maternidade que já estava pronta, ajudo-a a trocar de roupa com mãos trêmulas. — Vamos, rápido. É do jeito que conversamos... lembra? — Ela acena mesmo com medo. Chamo um táxi. A chuva lá fora parece mais forte, grossa e o trânsito pesado. Lila respira entrecortado, as mãos apertando a minha, enquanto o carro avança devagar pelas ruas encharcadas. No hospital, tudo vira correria. Enfermeiras surgem de todos os lados, colocam-na em uma cadeira de rodas, me fazem preencher papéis que mäl consigo enxergar. Lila começa a sentir as contrações. Ela geme, respira fundo, aperta a minha mão até quase machucar. As horas passam em um borrão de dor e tensão. Estou ao lado dela o tempo todo, enxugando o suor da sua testa, repetindo palavras de encorajamento que nem eu acredito. São horas que só ouço choro e gemidos de dor. — Você consegue, Lila. Você é forte. Vai dar tudo certo... Mas ela chora, soluça, me olha com desespero. — Clara… alguma coisa está errada. Eu sei que está. — Não, não está. Você só está com medo. — Digo, mesmo com o coração se partindo. Quando finalmente chega a hora, estou ao lado dela, segurando a sua mão. O grito dela ecoa na sala, e o tempo parece estar mais lento. Ela empurra demais, chora demais e parece que nada acontece. Vejo uma certa inquietação em algumas pessoas e eu fico mais tensa. Demora tanto assim? Eu não imaginava isso. Vejo uma delas correndo para buscar algo e a Lila empurra mais. De repente, o grito dela é seguido pelo choro alto do bebê. Eu vejo o pequeno corpo ser erguido, o som mais bonito que já ouvi. E eu choro! É, não tem como não chorar. É uma cena forte! — Deu certo, Lila! Deu tudo certo! — Digo, lágrimas escorrendo pelo meu rosto. — Ele está aqui, ele está bem... eu falei que... Mas quando viro para ela, o meu sangue gela. Os olhos dela se fecham, a cabeça pende para o lado. — Lila? — Chamo, desesperada. — Lila, fica comigo! As enfermeiras se agitam ainda, o médico grita instruções. Uma delas me segura pelo braço. — Você precisa sair agora. — Não! É minha irmã! — Precisamos cuidar dela! Precisa sair! Sou arrastada para fora contra a minha vontade. Meus gritos se misturam aos sons do hospital. Então alguém diz que posso acompanhar o Mateo até a maternidade. Ele é levado, eu fico atrás de um vidro vendo o local e ele começa a ser limpo, cuidado e fazem as primeiras checagens. Ele é lindo, perfeito, saudável e noto que aqui está bem mais calmo. Lila precisa ver isso! O tempo passa devagar. Ninguém vem dizer nada dela. Eu fico maluca aqui nessa espera, com o coração apertado e com medo do que eu posso ouvir. Até que finalmente o médico aparece, o olhar cansado, sombrio. — Fizemos tudo o que podíamos…, mas ela perdeu muito sangue. Houve complicações. Sinto muito. As palavras caem sobre mim como pedras. O meu chão desaparece. Minha irmã. Minha única família. A minha melhor amiga. Se foi. Isso não pode ser real. Não pode ser real!
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