EP 2

1212 Words
Clara Menezes Eu coloco Mateo na cama com o máximo de cuidado, como se cada movimento meu pudesse decidir entre o sono profundo e um choro estrondoso. Seguro até a respiração por alguns segundos, ajusto o travesseirinho pequeno e puxo o cobertor até sua barriguinha. Ele suspira, o corpinho dele se remexe, mas não acorda. Ufa. Eu me afasto com cautela, me sento na poltrona ao lado, apenas para observar, só por garantia. Fico aqui uns bons minutos, paralisada, vigiando a respiração dele, aquele sobe e desce suave do peitö, o rostinho relaxado. É nesses instantes que percebo como ele é perfeito, como mesmo em meio ao caos absoluto da minha vida, existe um pedacinho de luz. Ergo as mãos para o alto e, num sussurro quase imperceptível, agradeço. — Obrigada, Deus, por esse momento. — Prendo até o choro. — Só... obrigada! E respiro fundo, tentando relaxar. Ou pelo menos fingir que relaxo. A verdade é que esses meses têm sido os mais desafiadores, dolorosos e exaustivos da minha vida. Nunca imaginei que fosse capaz de suportar tanta coisa ao mesmo tempo. Tudo mudou. Literalmente tudo. A casa em que moro continua a mesma, mas parece que não me pertence mais. Talvez porque eu mesma já não sou a mesma. Olho ao redor e o cenário é de guerra: almofadas jogadas pelo chão, embalagens vazias de fraldas, panos úmidos largados em qualquer canto, restos de comida endurecida na mesinha de centro. O pior não é a bagunça, é a sensação de que nunca vou dar conta. A cabeça lateja, os olhos piscam pesados, a garganta arde, o corpo dói. Há meses não sei o que é dormir bem. Sinto que nesses quase oito meses, eu envelheci uns cinco ou até mais anos. E enquanto fico aqui, imóvel, algumas lágrimas escorrem sem que eu consiga evitar. Choro baixinho, para não acordar Mateo. Puxo o ar com força, tentando encontrar coragem em algum lugar escondido dentro de mim, mas ela escapa pelos meus dedos como areia fina. Olho o relógio. Quatro da manhã. Ele acordou às três, e demorou quase uma hora para voltar a dormir. Eu já estava maluca sem saber mais o que fazer. Estou em tempo de enlouquecer, mas se comparo aos primeiros dias… ah, esses aqui são mais leves. Porque no começo foi um verdadeiro infernö. — Eu consigo... é, eu posso conseguir! — Eu tento me acalmar. Um filme se passa na minha mente. Depois de receber a notícia da morte da Lila, tudo perdeu o sentido. Nada mais importava. Mas não tive tempo de viver o luto, não tive tempo de me jogar na cama e chorar até desidratar. Porque havia o Mateo. E ele precisava de mim, eu não tinha escolha. Os primeiros dias foram desesperadores, principalmente por causa da alimentação dele. Amamentação? Impossível. Não havia como. Entrei em pânico. Achei que não conseguiria. Mas o hospital me deu uma luz: falaram sobre um programa de ajuda, o Programa Especial de Nutrição Suplementar para Mulheres, Bebês e Crianças. O médico me explicou como funcionava, deu instruções, e aquilo virou a única esperança. O problema era: até o programa aprovar, até o leite chegar, como alimentar um recém-nascido? A resposta veio da porta ao lado. Minha vizinha. Ela tinha dado à luz três meses antes e, sem eu esperar, se ofereceu para ajudar. Todos os dias, religiosamente, ela vinha ao meu apartamento, retirava leite e me entregava. Às vezes até segurava Mateo para me dar uns minutos de respiro. Nunca pediu nada em troca, nunca reclamou. Foi generosa de uma forma que jamais vou esquecer. Ela foi uma luz do céu. E ali, no meio do caos, percebi: quantas vezes ela bateu na minha porta pedindo um pouco de açúcar, um punhado de farinha, um pouco de sal… e eu nunca nëguei. Eu nunca imaginei que um dia seria eu pedindo algo, e que ela me daria muito mais do que eu já ofereci. O bebê dela, dono de olhos azuis como o mar, parecia um anjo. Esse gesto salvou Mateo. Salvou a mim também. Semanas depois, finalmente, o programa me aprovou. O leite passou a chegar com regularidade. Um milagre. Um alívio. Mas não resolveu tudo. Só me deu uma pausa para respirar. Eu precisava trabalhar. Era recepcionista em um escritório de advocacia, mas já fazia bem mais do que apenas atender telefone. Sabia mexer em relatórios, planilhas, fichas, contratos, tudo. Eu sempre fui atrás de saber mais e ainda bem que fiz isso. Então supliquei ao meu chefe para deixar que eu trabalhasse de casa, nem que fosse meio período. Foi uma negociação difícil, mas consegui. Com isso, o salário caiu quase pela metade. A conta não fecha. Nunca fecha. Todo o dinheiro que entra vai direto para o aluguel. O resto… bom, não sobra nada. Precisei engolir o orgulho e pedir ajuda na igreja do bairro. Expliquei a situação e, para minha surpresa, as pessoas foram generosas. Recebi doações de fraldas, roupas, até alguns móveis usados. Até hoje eu recebo até comida. Ainda assim, cada dia é uma luta. Virei especialista em economizar. Respondo pesquisas online, peço amostras grátis em sites, corto tudo o que posso. Me desfiz de serviços, de pequenos luxos. Já emagreci de tanto me privar. E, se não fosse pelo dinheiro que encontrei escondido entre as coisas da Lila, uma quantia que ela havia guardado para emergências, eu já teria desmoronado. Aquilo segurou as pontas por alguns meses. Mas agora acabou. Da minha parte, já não resta nada. E nem preciso falar quanto eu devo ao hospital. Houve dias em que me vi vasculhando a casa como uma louca: dentro de potes, nos bolsos de roupas antigas, embaixo do colchão, no fundo das gavetas. Procurava moedas, qualquer coisa que pudesse virar pão, leite, fralda. Hoje já não há onde procurar. Já reviramos todos os cantos possíveis. Olho para Mateo novamente, dormindo sereno, alheio a todo esse desespero. Puxo o cobertor um pouco mais e ajeito algumas almofadas ao redor, criando uma espécie de muralha improvisada para protegê-lo. Depois, com os olhos pesados, me arrasto até a sala. — Ainda tem... muita coisa. — Eu falo sozinha. Ainda há tanto para fazer. O chão da sala parece um campo de batalha: brinquedos espalhados, roupas esquecidas, uma pilha de louça esperando na pia. O banheiro precisa urgentemente de limpeza. E ainda nem são cinco da manhã. Estou exausta, mas dormir não é opção. Então me ocupo. Pego um pano, começo a arrumar. Cada movimento parece pesar dez vezes mais do que deveria, como se o corpo pedisse socorro. Mas insisto, porque é o que resta. Enquanto esfrego a mesa, penso no que mais queria. Só uma coisa. Não mais dinheiro, não mais ajuda, não mais descanso. Só queria a Lila de volta. Só isso. O meu coração se aperta, e a dor é tão forte que preciso segurar a borda da mesa para não cair. O vazio que ela deixou é impossível de descrever. Tento acreditar que estou sendo forte, mas a verdade é que, no fundo, eu só sobrevivo. Cada dia é mais um degrau arranhado que escalo, mais uma batalha silenciosa que ninguém vê. E sigo, porque não tenho escolha. Porque Mateo respira. E porque ele precisa de mim.
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