Clara Menezes
Hoje eu acordo com uma sensação diferente no peitö. Não sei explicar se é alívio, esperança ou apenas um respiro depois de tantas tempestades. Talvez seja um pouco de tudo isso. Ontem, entreguei aquele documento extra que o meu chefe pediu e hoje já recebi a bonificação.
Um valor pequeno para muitos, mas para mim é como se tivesse ganhado uma fortuna. É a diferença entre ter apenas o mínimo e poder comprar o que falta em casa para os próximos dias.
Mateo ainda dorme, sereno na minha cama, o rostinho redondo encostado no travesseirinho que parece sempre pequeno para ele. Eu o observo alguns segundos antes de me levantar. Essa criança não tem ideia do quanto me dá forças todos os dias. Ele respira fundo, faz aquele barulhinho suave com a boca, e eu amo ouvir isso.
Apesar de amá-lo, eu não sei se um dia vou querer ser mãe. Não consigo nem me ver com alguém. Na verdade, isso nunca fez parte da minha vida. Foram tantas preocupações e mudanças.
É, nunca namorei e acho que não dá para sentir falta do que nunca tive.
Enfim!
Preciso aproveitar enquanto ele está calmo. Abro o guarda-roupa, pego uma muda de roupas simples, mas arrumadas, e me visto. Depois, preparo a roupinha dele, separo o casaquinho leve, porque o vento na avenida costuma ser frio, e deixo tudo pronto.
Quando o acordo, ele abre os olhos sonolentos e me dá aquele sorriso desdentado que derrete qualquer parte de mim que ainda resiste ao cansaço.
— Vamos ao mercado, meu amor! — Digo baixinho, enquanto o troco.
Mas, ao ver o estoque de fraldas, o meu coração aperta. Só restam algumas, não o suficiente até chegarem as doações da igreja. Vou precisar comprar pelo menos um pacote, por mais que pese no bolso.
Enquanto ajeito a bolsa dele, já penso na lista mental do que preciso trazer: enlatados, frutas frescas para o Mateo, aveia, leite… e, se sobrar, carne. E tem outros itens. Não vou comprar muita coisa, apenas o essencial. Sempre é o essencial. Nunca sobra espaço para supérfluos.
— Olha só! Que lindão…
Saímos do apartamento. Mateo no carrinho, eu com a sacola dobrada dentro da bolsa. O mercado fica na mesma avenida, e agradeço por isso. Com ele, qualquer deslocamento maior é uma luta. No caminho, respiro fundo. Estou feliz. Hoje, pelo menos hoje, não vou me preocupar tanto. Posso comprar.
As prateleiras me recebem com aquele cheiro típico de mistura de limpeza e comida. Pego um carrinho, ajeito Mateo dentro e começo a andar. Vou riscando a minha lista mental, colocando tudo no cesto e calculando os valores rapidamente, como sempre faço.
Não é só hábito: é sobrevivência.
Enquanto estou na sessão de frutas, escuto uma voz familiar.
— Clara?
Viro e vejo Serena, minha vizinha. O sorriso dela é largo, iluminado.
— Que bom te ver! Como você está?
— Estou bem, graças a Deus. — Respondo sincera. — Consegui um trabalho extra, um projeto, no caso. Eu recebi uma bonificação, e decidi aproveitar para comprar o que está faltando. Ele precisa de frutas!
Ela abre um sorriso ainda maior, e seus olhos brilham.
— Isso é maravilhoso! Você merece demais.
Sinto um calor bom no peitö. Não estou acostumada a elogios, nem a pessoas comemorando as minhas pequenas vitórias.
— Obrigada, Serena!
Ela se aproxima, faz uma gracinha para o Mateo, que gargalha, e depois me acompanha entre os corredores. Enquanto escolho enlatados, ela me pergunta da minha rotina, se estou cansada, como andam as coisas no trabalho. Conversamos com leveza. Ela fala da rotina dela e que já pensa em voltar a trabalhar. Ela sente uma saudade apesar de nem precisar.
O marido dela ganha bem e ela guardou uma boa economia.
Quando chegamos ao caixa, começo a colocar as compras na esteira. Os meus olhos ficam presos nos números que aparecem na tela, e o coração já bate mais rápido. Eu tenho o dinheiro, mas a cada soma meu estômago se aperta.
É o costume!
De repente, antes que eu entregue o pagamento, Serena coloca o cartão dela.
Fico paralisada.
— Não, Serena… eu não posso aceitar.
Ela me encara com firmeza e delicadeza ao mesmo tempo.
— Clara, aceite. Use o dinheiro que você ganhou para comprar algo para você. Você merece!
Sinto o rosto corar, os olhos arderem. As palavras dela me desarmam. Tento falar, mas só consigo balbuciar.
— Eu… eu não sei nem como agradecer…
— Não precisa agradecer. — Ela aperta a minha mão. — Eu gosto de você, Clara. Vejo o quanto você se esforça. Isso é de coração.
As lágrimas quase escapam, mas consigo segurar. Serena avisa ainda que amanhã chegarão as doações da igreja. Mais um alívio. Mais um respiro.
Posso dizer que ela é um anjo!
No caminho de volta, ela insiste em me acompanhar. Carregamos as sacolas juntas, e Mateo segue rindo no carrinho, brincando com um brinquedinho velho, mas que ele ama. Quando chegamos ao prédio, subimos até o apartamento e, depois de guardar as compras, Serena se senta comigo na sala.
Mateo vai para o colo dela, encantado com o botão brilhante da blusa. Ele puxa, tenta morder e ele tem toda a atenção. A cena é tão leve que eu me derreto.
Mas, enquanto ela brinca com ele, os meus olhos caem sobre a pasta em cima da estante. A mesma que encontrei ontem. O coração dá um salto. Ainda não tive tempo, nem coragem, de abrir direito.
Sei que é da Lila. Tudo dela ainda me deixa em sofrimento.
Fico em silêncio, observando.
Quando Serena finalmente se despede, me abraça forte e vai embora.
Coloco Mateo na cadeirinha e fico parada diante da estante, como se a pasta fosse um segredo vivo, chamando por mim.
Por fim, estendo a mão. Pego. Sinto o peso dela nos meus dedos, um peso que não é físico. Sento no sofá, abro com cuidado.
O primeiro que vejo são papéis soltos. Bilhetes escritos à mão, na letra inconfundível da Lila. Eu conheço bem.
Leio o primeiro.
“Eu o amei e não consegui fugir. Achei que ele gostava de mim e quebrei uma regra que jurava nunca fazer. Mas fiz! E vou pagar caro por isso.”
Meu sangue gela.
A cada linha, sinto como se estivesse invadindo algo sagrado. Mas não consigo parar.
Outro bilhete:
“Ele é lindo, tão charmoso que não consigo parar de olhar. É um homem de presença e eu acho que me apaixonei.”
As palavras parecem tão dela. Sonhadoras, intensas.
Vou passando os papéis. Uns são leves, quase inocentes. Outros, carregados de dor.
E então encontro um caderno. A primeira folha me derruba:
“Não podemos ficar juntos e preciso ir embora urgentemente. Não tem jeito!”
O mundo gira. Sinto o ar faltar. As minhas mãos tremem.
Fecho os olhos, tentando respirar fundo. É íntimö demais. Mais do que eu imaginava. Ela não ia querer que eu olhasse isso, só pode! É muito pessoal!
Se Lila escondeu, é porque não queria que ninguém lesse.
Mas agora?
O que faço com isso?
Seguro o caderno no colo, olhando para Mateo, que brinca tranquilo. Uma parte de mim sente culpa, como se eu estivesse traindo a confiança dela. Outra parte sabe que talvez aqui estejam as respostas que nunca tive. Ela nunca me disse nem o nome do pai do Mateo. Será que tem aqui?
Ah! Caramba.
A sala parece menor. O ar mais denso. E eu, perdida entre a curiosidade e o medo do que vou descobrir.