EP 6

1205 Words
Clara Menezes O apartamento está silencioso, exceto pelos sons baixinhos de Mateo brincando com o chocalho na cadeirinha. Eu seguro a pasta azul contra o peitö, o coração batendo como se quisesse escapar. Já sei que não deveria, que talvez não fosse para eu ver nada disso, mas não consigo evitar. É como se Lila tivesse deixado um pedaço dela escondido aqui e agora eu tivesse a chance de tocar. — Respira fundo... você consegue. — Falo comigo mesma. Respiro fundo, me sento no sofá e abro de novo. Os papéis me aguardam como se guardassem um segredo pesado demais. Pego o próximo bilhete. “Eu nem sei como aconteceu, mas já houve. Eu fui fraca demais e sonhei demais. Como eu pude deixar as coisas chegarem a esse ponto? Isso piorou de um jeito que chega a sangrar!" A minha mão treme. E vem o segundo. “Era simples: apenas trabalhar, receber o meu salário e ir embora. Mas, um buraco no meio disso e vou perder tudo!" Olho para Mateo, que continua sacudindo o brinquedo, feliz, alheio a tudo. A inocência dele me dá coragem. Volto a ler. “Preciso ir embora. Não posso ficar. O que sinto é maior do que eu, mas se mais alguém descobrir... se a Clara descobrir... não vou suportar.” Sinto o meu coração se quebrar. O nome está ali: o meu. E o que quer dizer: se mais alguém descobrir? Leio outro bilhete, e as lágrimas descem antes mesmo de terminar. “Clara sempre foi a minha melhor amiga, além de irmã. Ela é meu porto seguro. Eu a amo tanto. Mas tenho medo. Medo de decepcioná-la, de ela nunca mais olhar para mim do mesmo jeito. Por isso me calo. Depois de tudo que ela fez por mim, eu não posso arriscar e decepcioná-la.” A folha cai do meu colo. Cubro o rosto com as mãos e o choro vem forte, incontido. O aperto na garganta é insuportável. Sinto tanta falta dela que parece que o meu corpo inteiro dói. É como se, de repente, a voz dela ecoasse aqui dentro. Posso jurar que ouço Lila rindo comigo, chamando o meu nome como fazia quando queria dividir algum segredo ou apenas um biscoito. Mas é só memória, e isso rasgä. Não tem como eu lembrar dela sem chorar. A minha última lembrança dela foi naquela cama de hospital. Apagada, sem cor e em risco. Me levanto, cambaleando até a cozinha. Abro o filtro e encho um copo com água. Bebo de um só gole, tentando me recompor. Não dá. Apoio as mãos na pia, respiro fundo. Eu preciso ser forte. Por mim. Por Mateo. O fato que mais acaba comigo, é que ela jamais pode ao menos pegar o Mateo nos braços. Nem isso. O tempo não deixou. É tanta crüeldade da vida. Eu jamais vou entender isso! Quando volto à sala, ele me olha e solta um gritinho alegre. Eu forço um sorriso, enxugo o rosto e me abaixo para beijar a sua cabecinha. — Você é a minha força, meu amor. — Digo, e ele ri, sem entender. Eu fico com ele para me acalmar. Aqui bem perto, ele traz a mãozinha ao meu rosto e eu beijo a palma da mão dele e isso o faz sorrir muito. É aquele riso alegre, animado e eu faço várias vezes. E em todas, ele sorrir. Mateo é uma preciosidade que apenas eu entendo. Ele é bem gordinho, saudável e tão perfeito. Um tempo depois, eu me sento de novo, ainda trêmula, e pego o caderno. A capa é gasta, como se tivesse sido muito usado. Abro. Logo nas primeiras páginas, encontro uma lista de nomes. Camila. Helena. Valentina. Miguel. Rafael. E, no meio, sublinhado várias vezes, está escrito: Mateo. A respiração prende no peitö. Ela passou um tempo decidindo. Ela tinha dúvidas e anotou outras sugestões, mas Mateo ganhou de longe. Sinto o chão sumir por alguns segundos. Pego Mateo no colo e o aperto contra mim, chorando em silêncio. Ele é a lembrança viva da minha irmã. Tudo faz ainda mais sentido e, ao mesmo tempo, tudo pesa ainda mais. Abro mais páginas. Cada folha é preenchida por sentimentos, desabafos, medos. Lila escreve sobre noites sem dormir, sobre sonhos quebrados, sobre paixão e dor. Tem tantos sentimentos aqui, é tão pessoal e cru. “Não posso ficar com ele. É impossível. Mas o meu coração insiste. Quando o vejo, tudo em mim treme. Não sei como fugir.” Viro mais uma página, as mãos suadas. “Tenho medo de não conseguir criar meu filho sozinha. Tenho medo de deixá-lo desamparado. Mas sei que, se algo acontecer, Clara cuidará dele. Ela é a única pessoa em quem confio.” Fecho o caderno por um instante, pressionando contra o peitö. As lágrimas descem sem controle. É como se ela tivesse escrito isso para mim, como se já soubesse. Lila foi esperta demais. Eu entendo esconder certas coisas, mas nunca entendi o motivo de ela nunca ter me contado coisas importantes, tipo: como tudo começou, quem é o pai do Mateo, por que ele nunca apareceu, o que eles tinham de verdade... Preciso parar. Largo tudo sobre o sofá, me levanto e vou até à janela. O ar da rua entra, fresco, mas não refresca o que sinto. Lembro da Lila de verdade, não só das palavras. Da forma como ela cantava junto comigo, das tardes em que ríamos sem motivo, dos segredos compartilhados na adolescência. A nossa fuga, a nossa adaptação, tudo. E agora, só restam lembranças. Fico aqui parada alguns minutos até conseguir respirar melhor. Mateo resmunga e eu volto para ele. Pego um brinquedinho, faço uns sons engraçados, e logo o seu riso enche a sala outra vez. Eu rio também, mesmo com o rosto ainda molhado. Ele é meu remédio. Quando me sinto um pouco mais firme, volto ao sofá. Preciso guardar as coisas, pelo menos por hoje. Não consigo mais ler! Junto os papéis, fecho o caderno. Mas, no movimento, algo escorrega de dentro das folhas. Uma foto. Abaixo-me para pegar e fico curiosa e confusa. É a imagem de um homem, recortada de uma revista. O rosto é sério, marcante, postura elegante. Aparenta ter trinta anos, mais ou menos. Não reconheço imediatamente, mas há algo nele... um jeito familiar. Como se eu tivesse visto em algum lugar, não sei. É um tipo de sensação. O meu coração acelera. Reviro as folhas de novo e encontro outra foto. Também de revista, também de negócios. O mesmo homem em outra pose. Atrás, já mostra outra coisa escrita e não tem nada a ver com ele. Por que Lila guardava isso? A época de colecionar fotos de famosos já passou! Seguro às duas imagens, analiso. Não há nada escrito, nenhuma explicação. Não vejo nelas nomes, alguma referência e nem faço ideia de alguma explicação para ela ter isso aqui. Volto a olhar para Mateo. O coração bate forte e tento pensar. Mateo me olha com os olhinhos enormes e bate as mãozinhas sem parar. Ele mexe a boca como se quisesse falar. Depois, volto para as fotos. Quem é esse homem? E, mais ainda... o que isso faz aqui nesse meio?
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