Clara Menezes
Eu até tento pensar mais com isso tudo, mas não dá!
O cheiro é insuportável.
Eu largo o caderno e tudo ao lado aqui, porque um certo bebê conseguiu se superar dessa vez. Mateo solta um chorinho abafado e, junto, o odor invade o lugar inteiro como se fosse uma pequena bomba. Minha nossa! Eu balanço a cabeça, rindo sem acreditar. Juro, até os meus olhos ardem agora.
Caramba!
— Ah, meu amor, você exagerou dessa vez, hein? — Digo, tentando prender a respiração. — Como é que um bebê tão fofo consegue produzir algo tão… tão forte assim? Aí, nossa! Não dá...
Eu fico com o estômago contorcendo.
Ele me olha, rindo um pouco, como se entendesse a piada. Dá palminhas, os olhos brilhando, e eu negö com a cabeça sem saber por onde começar. Mas, eu o pego no colo, falo baixinho no ouvido dele que vou dar um jeito e o levo direto para a pia improvisada que virou banheirinha. Eu deixo a água enchendo ali, vou descartando essa bomba nuclear aqui e o cheiro fica mais forte.
Nunca tive tanta dificuldade como hoje!
A água já está preparada. Coloco o corpinho dele na água morna, e os risadinhas dele ecoam enquanto ele bate na água sem parar. Esfrego o sabonete infantil, lavo cada dobrinha, cada pezinho gorducho, cada dedinho pequenino. O lugar inteiro vai sendo tomado pelo cheirinho de shampoo de bebê, aquele perfume que eu poderia engarrafar e guardar para sempre.
Esse cheiro é casa, é amor, é tudo o que restou de leveza na minha vida. Sério, produto de bebê é uma paz perfeita.
Depois, o enrolo na toalha. Pego o spray que preparei com um pouco de colônia de bebê e borrifo pelo quarto. Só assim o cheiro rüim se rende e some. Canto baixinho para ele, e ele fica todo animado, mexendo os pezinhos, gargalhando como se a vida fosse só riso. Que safadinho, em!
Eu o seco bem, possa a pomadinha e talco, coloco uma fralda limpa, visto um body azul claro e o seguro pelos bracinhos, encostando os pezinhos dele no chão. Ele adora!
— Vamos lá, meu príncipe, um, dois… anda com a titia! — Incentivo, e ele balança as pernas como se estivesse pronto para correr uma maratona.
Eu não consigo mais imaginar a minha vida sem ele. Digo isso sempre em silêncio, mas é a mais pura verdade: Mateo é meu coração fora do corpo. O que mais queria, era que as coisas fossem mais fáceis, mais leves. Ele merecia tanto mais do que eu consigo oferecer.
— É, meu amor... você gosta, não é? — Ele resmunga com a língua para fora. — Vem!
É, ele merece mais.
Mateo não vai ao médico na frequência que deveria. Não tem brinquedos suficientes para estimular bem como os bebês da idade dele. Já está com poucas roupinhas e só dois pares de sapatinhos que ainda cabem. Isso me consome, me preocupa. A bonificação que recebi… preciso guardá-la. Talvez, quando der, eu compre algo essencial para ele. Quem sabe amanhã, quando vier a doação da igreja, tenhamos sorte de receber também alguma roupa ou brinquedo. Mas sei que já é pedir demais. Eles já ajudam tanto.
Coloco Mateo na cadeirinha da sala. Ele pega o chocalho e balança com força, feliz da vida e também da atenção ao mordedor macio. Sento no sofá para respirar um pouco. É aí que os meus olhos caem sobre o caderno outra vez. O maldito caderno.
A foto do homem ainda está sobre as folhas. Eu pego de novo, analiso os traços sérios, o corte impecável do terno. Parece arrancada de revista. Os meus dedos tremem quando volto a folhear o caderno onde encontro páginas cheias, não mais bilhetes soltos.
Começo a ler.
"Finalmente consegui um emprego. Bom, não era exatamente o que eu queria, mas pelo menos é algo. Fui contratada como empregada auxiliar na mansão dos Lancaster’s. Precisava muito do trabalho, e o salário era melhor do que qualquer outro emprego que vi recentemente. Depois de uns meses, a governanta, Érina, adoeceu. Câncer. Ela pediu para sair. E, de repente, eu fui promovida. Nunca pensei que pudesse lidar com tantas responsabilidades… mas aceitei. Eu precisava. O valor era melhor, eu precisava mais controlar a cozinha e as refeições. E ordenava a equipe das empregadas."
O meu coração acelera. Mas continuo.
"E eu fui promovida no mesmo dia que ele chegou à mansão. Andrew Lancaster. O único filho. O herdeiro de um império de carros de luxo. Um homem que não parece real. Lindo, poderoso, inalcançável. Não era para eu chegar perto, não era para eu olhar. Mas ele me olhou primeiro. Eu senti."
Eu paro. Olho para a foto, depois para Mateo. Ele bate o chocalho, rindo alto, e o meu estômago dá um nó.
Lila… minha irmã… com um homem desses? Um milionário?
Eu seguro a foto com mais firmeza e, antes de enlouquecer, pego o celular. Digito o nome: Andrew Lancaster. O navegador mostra algumas notícias, matérias em revistas de negócios, fotos de eventos. E então… eu congelo.
É ele. Exatamente a mesma imagem que estava escondida no caderno, só que cortada de forma amadora. O rosto sério, os olhos castanhos claros. A mesma boca.
O meu olhar vai devagar até Mateo.
Mateo também tem os olhos castanhos claros. Idênticos. O mesmo formato da boca. O cabelo escuro, o tom da pele. O meu coração bate forte demais, quase saindo do peitö.
— Meu Deus… — Sussurro, sem fôlego. — Não… não pode ser…
Isso é loucura!
Mas é. Eu sinto que é.
A minha mente grita. A minha irmã se deitou com um homem rico, milionário, talvez bilionário. E, em nenhum momento, ele apareceu. Nenhum. Como pode? Como ele deixou ela sozinha? Como pode ignorar um filho? Como que ela não me disse nada disso? Como que ela foi capaz de uma loucura dessa?
Uma empregada e um homem desse?
Estou prestes a me perder nesses pensamentos quando batem na porta. O som me arranca do transe num susto que me faz saltar.
Corro até lá tremendo, mas respiro fundo e abro.
É Serena. Ela segura uma travessa mediana, coberta com um pano florido. O cheiro invade o corredor antes mesmo de ela falar.
— Oi! Fiz uma torta de frango quentinha e deliciosa! — Diz, sorrindo, mas com os olhos preocupados. — Ia levar para um jantar de amigos, mas preciso correr para ver a minha mãe. Ela caiu, machucou o joelho e o calcanhar. Vai ficar uns dias no hospital. Então… pensei em te dar a torta para não se perder.
— Poxa, Serena… é algo grave? — pergunto, já preocupada.
— Não, não… só fraturas, nada que coloque a vida dela em risco. — Eu aceno. — Mas vou precisar estar com ela.
— Claro, vá! E obrigada, de verdade.
Ela me entrega a travessa, dá um beijo estalado na bochecha do Mateo e vai saindo, mas ela dá meia volta!
— Aproveita bem, viu? Tá uma delícia... eu fiz duas, então... eu sei!
Aceno, agradecendo e fecho a porta. O cheiro maravilhoso da torta enche o apartamento, mas eu não sinto fome. Não consigo. A minha cabeça gira.
Volto ao sofá. O caderno ainda está aberto, a foto do homem ao lado. Seguro-a de novo. Olho para Mateo, agora batendo o chocalho no ar como se o mundo fosse simples.
E a minha respiração falha.
Mateo não é apenas o meu sobrinho lindo e perfeito. Ele é filho de um homem extremamente rico. Um homem que provavelmente nem sabe que ele existe. Ou pior… pode saber e resolveu mandá-la embora e se livrar.
E escolheu ignorar.
Será? Tem gente assim capaz de ignorar um filho dessa forma?
Eu preciso de muito mais respostas!