EP 8

1427 Words
Clara Menezes Eu não consigo tirar isso da minha cabeça. Essas páginas... essas palavras da Lila que agora tenho nas mãos são como facas que se cravam no meu peitö, me lembrando de coisas que eu nunca imaginei, de possibilidades que eu nunca quis cogitar. Passei a noite inteira me perguntando se o homem com quem ela se envolveu sabia. Se ele tinha plena consciência de que ela estava grávida e, mesmo assim, escolheu abandoná-la. Porque se for isso... se for essa a verdade, não existe riqueza, não existe recurso, não existe desculpa capaz de apagar o fato de que ele simplesmente virou as costas. A ideia me revolta. Me dá nojö. Ela era minha irmã, e eu sei que ela passou meses tentando dar um jeito em tudo sozinha. Sei que ela não teve apoio, que ela escondia a barriga e fingia que estava bem, quando na verdade estava se desmanchando por dentro. E agora, saber que talvez tenha sido abandonada... mesmo estando grávida? Isso é crüel demais. E ela foi forte. Em momento algum pensou em interromper a gestação. Mas também tem o outro lado. O lado que me atormenta tanto quanto o primeiro: e se ele não sabia? Até agora não encontrei uma linha sequer que confirme que a Lila contou. Nada nas anotações que li deixa claro que ele foi avisado. Então e se ele estiver vivendo a vida dele em plena ignorância? Eu não sei o que é pior. A dúvida me consome mais do que qualquer resposta definitiva. Reviro na cama, sem conseguir me acomodar. A madrugada avança lenta, e eu continuo com os olhos abertos, fitando o teto. Mateo dorme tranquilo no bercinho, com o som suave da respiração enchendo o quarto. O contraste me fere: ele dorme em paz, enquanto eu estou aqui com a mente em guerra. Fecho os olhos, mas em vez de sono, só vem lembranças. A imagem da Lila me invade. Ela isolada no quarto, escrevendo por horas em silêncio. Eu passava pela porta e via a luz da luminária acesa, a sombra do lápis correndo pelo caderno. Quantas vezes eu quis saber o que ela tanto escrevia, mas ela sempre me dizia para não mexer, para respeitar o espaço dela. Eu respeitei. Agora, finalmente, tenho acesso a tudo e é como se cada página fosse uma bomba de revelação. Quero ler tudo de uma vez, devorar cada palavra. Mas ao mesmo tempo, eu tenho medo, porque e se as próximas páginas trouxerem ainda mais dor? Eu já estou sufocada, não sei se aguento mais. Eu ainda o pego aqui, mas desisto. Então largo o caderno por algumas horas. Fecho a tampa, deixo em cima da cômoda e tento respirar fundo. Preciso pensar. Preciso digerir tudo. O problema é que, quando penso, é pior. Porque penso demais. Quando o dia finalmente amanhece, já me sinto exausta. Não dormi nada. Mas não tem escolha: eu preciso levantar. Preciso trabalhar. Preciso cuidar do Mateo. A vida não espera pelas minhas dúvidas. Faço o café apressada, tomo um gole amargo, e começo a rotina de sempre. No computador, respondo os e-mails, atualizo planilhas, atendo ligações. O barulho das teclas me ajuda a não enlouquecer. Deixo Mateo em sua cadeirinha ao meu lado, e enquanto ele brinca com os dedinhos e solta uns resmungos engraçados, eu sigo firme, tentando manter a mente ocupada. As horas correm até que finalmente o relógio marca o fim do meu expediente. Respiro fundo, fecho o laptop e me permito relaxar por alguns minutos no sofá. Mateo cochila, e eu aproveito esse raro instante de silêncio. Mas não dura muito. De repente, escuto batidas na porta. Três batidas firmes. Levanto, ajeito o cabelo com a mão e vou atender. Quando abro, vejo duas figuras conhecidas: Gorete e Judite, as irmãs da igreja. Ambas carregam um sorriso doce no rosto e uma caixa enorme entre elas. — Clara, querida! Tudo bem? — Diz a Gorete, já entrando devagarinho. — Trouxemos a doação deste mês. — Caramba! Isso tudo? Abro espaço, agradecendo, e ajudo como posso. A caixa é pesada. Assim que a colocamos sobre a mesa, fico surpresa com o tamanho. É mesmo muito pesada e quase se rasgä. Nem sei como trouxeram aqui em cima. Judite começa a abrir e me mostra o que tem dentro. — Este mês foi especial! — Diz ela, com brilho nos olhos. — Conseguimos bastante coisa. Não só para você, mas para mais cinco famílias que estavam precisando. Foi realmente um mês generoso. — E-eu nem sei o que dizer... olha isso tudo! — Eu estou mesmo chocada. Espio o conteúdo e fico sem palavras. É como se fosse o dobro, talvez o triplo do que recebo normalmente. Vejo feijão enlatado, pacotes de macarrão, arroz, farinha, açúcar, sal, óleo, sopas prontas, leite, sucos, carnes, ovos e frango. Tem até temperos, enlatados diversos, coisas que raramente chegam. E mais! Muita coisa mesmo. O meu coração dispara, e as lágrimas me escapam antes que eu consiga conter. Eu não esperava nada disso! — Isso... isso é demais... — A minha voz falha, embargada. Gorete segura a minha mão com carinho. — Não é demais, querida. É o mínimo. Você merece comer bem... relaxe! Deus nos capacita para ajudar! — Eu aceno mesmo ainda aérea. Judite acrescenta, puxando mais itens da caixa. — E veja só. Três pacotes de fraldas, lenços umedecidos e pomadas. O pastor pediu uma doação especial para você e todos ajudaram. Aceite com gosto! O meu queixo treme. Eu realmente não sei como agradecer. Isso tudo aqui é algo surreal e tão grande. Eu reconheço o tamanho do esforço deles todos lá. — Vocês são uma benção na minha vida! — Digo, soluçando entre as lágrimas. Elas me abraçam forte, e nesse abraço eu sinto o calor de um amor genuíno. É tão raro encontrar pessoas assim, que fazem sem esperar nada em troca. Mateo desperta com o barulho, e logo abre um sorriso enorme ao ver as duas. Gorete corre até ele, cutuca a barriguinha e arranca gargalhadas. Meu bebé lindo ali é bem receptivo com carinhos. — Mas olha esse anjinho! — Diz ela, encantada. — Que risada gostosa! Ele rir mesmo e ainda solta uns gritinhos. Ofereço café, coloco biscoitos na mesa, e nós nos sentamos para conversar. Conto um pouco de como tem sido os dias e da correria. Ela olham bem ao redor e tudo que estava arrumado, já tem coisas reviradas. — Não sei bem ainda o que é dormir... — Confesso, rindo nervosa. — Ele tem ficado muito agitado, demora a pegar no sono. Às vezes passo horas tentando niná-lo. E ainda tem insõnia. E, com o trabalho, tem sido bem puxado. Por isso não consegui ir à igreja. As duas me olham com compreensão, sem julgamento algum. — Não precisa se sentir culpada, Clara! — Diz Judite, com firmeza. — Deus sabe do seu coração. Você já faz muito. — E nós sempre estaremos aqui para ajudar! — Completa Gorete, sorrindo. — As doações continuarão vindo. Conversamos mais um pouco. Elas me contam novidades da comunidade, falam de alguns eventos futuros, e por um momento eu consigo esquecer o peso que tenho carregado. É como respirar ar fresco. Depois de algum tempo, elas se despedem, me abraçam novamente e partem. Fico na porta observando enquanto se afastam, sentindo uma gratidão imensa. Volto para dentro e pego Mateo no colo. Troco a fralda dele que ele fez um enorme xixi, dou banho, coloco uma roupinha confortável. Ele fica cheirosinho, com a pele macia, e se aninha em mim com um suspiro satisfeito. Esses pequenos gestos me dão forças para continuar. Quando a tarde cai, começo a organizar todas as doações. Cada item que coloco na despensa ou no armário me arranca lágrimas discretas. É impossível não se emocionar. Pego um pacote de arroz, passo a mão pela embalagem e murmuro um agradecimento. Depois o feijão, a farinha, o leite... cada coisa é uma bênção que me dá fôlego para mais alguns meses. — Obrigada... obrigada... — Repito baixinho. Hoje eu tenho motivo para agradecer. Hoje, mesmo com todo o peso, sinto que não estou sozinha. E ainda tem a torta de frango da Serena esperando por mim. Pego um pedaço no fim da tarde, aquecido no forno, e saboreio devagar. Está deliciosa. É incrível como pequenas coisas assim aquecem o coração. Sento à mesa, com Mateo já adormecido novamente, e respiro fundo. A vida tem sido dura, mas hoje... hoje eu consigo ser grata e quero deixar essa sensação predominar.
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