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CAPÍTULO 1 — JULIANA NARRANDO
Desde pequena, eu vivo aqui, no Complexo da Maré. As vielas apertadas, os barracos empilhados uns sobre os outros, o som constante de tiros ao longe... tudo isso faz parte da minha história. Fui criada pelo meu pai, Thiago. A única coisa que minha mãe deixou foi o nome. Ela me abandonou quando eu ainda nem sabia andar direito, fugindo com outro homem como se eu fosse um peso do qual precisava se livrar.
Meu pai... ele nunca foi o melhor exemplo. Na verdade, ele sempre foi um homem quebrado, mas era o que eu tinha. E, por mais falho que fosse, nunca deixou faltar comida no prato. Pelo menos, até perder a guerra contra os vícios.
Ele sempre bebeu. No começo era só uma cervejinha no fim de semana, depois passou a ser um litro por noite. E então veio algo pior. Drogas pesadas. O tipo de coisa que muda um homem, que apaga a luz do olhar dele. Hoje, dizem no morro que ele deve para gente perigosa. Gente que não perdoa.
E eu? Eu vivo com medo.
Naquela manhã, eu estava descendo para o asfalto, onde trabalho numa loja de roupas. Sempre escolho o caminho mais longo, só para não cruzar com as bocas de fumo. A última coisa que quero é me esbarrar com os traficantes. Evito olhar para eles, para suas armas penduradas nas cinturas, para os olhos frios e atentos. É como passar por leões famintos — um passo em falso e você pode virar alvo.
— Bom dia, Ana — cumprimento com um sorriso leve ao chegar na loja.
— Bom dia, Juliana — ela responde, simpática como sempre.
— Chegou cedo hoje — ouço a voz da Rafaela vindo do estoque. Minha melhor amiga. Irônica, divertida, e a responsável por ter me arranjado esse trabalho.
O dia passou rápido, como sempre. E graças a esse emprego eu consigo manter as contas de casa em ordem. Meu pai, quando aparece, está sempre com hálito de álcool e olhos avermelhados. O pouco que ganha fazendo b***s vira garrafa no mesmo dia.
— Vamos? — Rafaela pergunta, ajeitando a mochila nos ombros.
— Vamos — digo, pegando minha bolsa.
O caminho de volta até o morro leva horas. Primeiro o ônibus lotado, depois a caminhada longa entre vielas estreitas e escuras.
— Hoje o morro vai pegar fogo — Rafa diz animada. — Vai ter um baile que, segundo geral, vai ser o maior do ano. O dono do pedaço vai estar lá, com a tropa toda.
Reviro os olhos, suspirando.
— Ótimo. Mais uma noite sem dormir. E meu pai provavelmente vai estar por aí... se metendo com quem não deve.
— Ju, já te falei pra largar a mão disso. Vive sua vida, menina! Vai no baile comigo! Vai que tu conhece alguém, se diverte...
— Eu não quero conhecer traficante, Rafa. Nem me divertir cercada por homens armados. Isso não é vida, é roleta-russa. Eu tenho amor pela minha.
Ela ri, jogando o cabelo para trás.
— Você não sabe o que está perdendo!
— Sei, sim — digo, balançando a cabeça. — Estou perdendo a chance de morrer de graça.
Rafaela se despede e vai para casa se arrumar. Ela sempre foi mais solta, mais corajosa. Ou talvez só mais inconsequente.
No caminho passo na padaria.
— Olá, seu Paulo — digo sorrindo, empurrando a porta. — Me vê quatro pães, por favor.
— Tá na mão, Juliana — ele responde, já colocando os pães num saquinho pardo. — E o seu pai? Sumiu daqui.
— Tá bem, sim — minto, forçando um sorriso.
— Rafaela me contou que você tá estudando pro Enem. Isso aí, menina. Vai sair desse morro ainda.
— Tô tentando, seu Paulo. É meu sonho — digo com brilho nos olhos.
A conversa é interrompida quando Ana e Tais entram, falando alto.
— Vê umas cucas aí, seu Paulo — diz Ariane, se encostando no balcão.
Me afasto discretamente.
— Hoje eu vou ficar com ele — Ariane cochicha, empolgada.
— Com Fael? — Tais ri, cúmplice. — Eu quero o amigo dele. Imagina... a gente com o dono e o sub. As rainhas do morro.
— Ia ser top demais! — Ariane sorri, já sonhando acordada.
Eu só escuto e agradeço, em silêncio, por não fazer parte desse mundo. Eu só quero sair dali com vida. Meu único plano é estudar, passar no Enem, conseguir um emprego decente e tirar meu pai daquela lama.
— Aqui, Ju — seu Paulo entrega o troco. — Boa sorte nos estudos, viu?
— Obrigada — digo, antes de sair dali.
Quando chego em casa, sou recebida pelo silêncio. Não há sinal do meu pai. Só o rastro da sua presença: latas de cerveja amassadas jogadas pelo chão da cozinha, cheiro de cigarro e suor impregnando o ar.
Fecho a porta devagar, tentando não fazer barulho, mesmo sabendo que ele não está. Encosto as costas na parede e deslizo até o chão, o saco de pães apertado nas mãos.
Respiro fundo.
Queria tanto tirar meu pai dessa vida. Tirá-lo daqui. Mas como? Como salvar alguém que não quer ser salvo?
Olho para o teto, sentindo meus olhos arderem.
— Só mais um pouco... — sussurro para mim mesma. — Só mais um esforço... E eu saio daqui. Eu juro que saio.
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