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898 Words
CAPÍTULO 1 — JULIANA NARRANDO Desde pequena, eu vivo aqui, no Complexo da Maré. As vielas apertadas, os barracos empilhados uns sobre os outros, o som constante de tiros ao longe... tudo isso faz parte da minha história. Fui criada pelo meu pai, Thiago. A única coisa que minha mãe deixou foi o nome. Ela me abandonou quando eu ainda nem sabia andar direito, fugindo com outro homem como se eu fosse um peso do qual precisava se livrar. Meu pai... ele nunca foi o melhor exemplo. Na verdade, ele sempre foi um homem quebrado, mas era o que eu tinha. E, por mais falho que fosse, nunca deixou faltar comida no prato. Pelo menos, até perder a guerra contra os vícios. Ele sempre bebeu. No começo era só uma cervejinha no fim de semana, depois passou a ser um litro por noite. E então veio algo pior. Drogas pesadas. O tipo de coisa que muda um homem, que apaga a luz do olhar dele. Hoje, dizem no morro que ele deve para gente perigosa. Gente que não perdoa. E eu? Eu vivo com medo. Naquela manhã, eu estava descendo para o asfalto, onde trabalho numa loja de roupas. Sempre escolho o caminho mais longo, só para não cruzar com as bocas de fumo. A última coisa que quero é me esbarrar com os traficantes. Evito olhar para eles, para suas armas penduradas nas cinturas, para os olhos frios e atentos. É como passar por leões famintos — um passo em falso e você pode virar alvo. — Bom dia, Ana — cumprimento com um sorriso leve ao chegar na loja. — Bom dia, Juliana — ela responde, simpática como sempre. — Chegou cedo hoje — ouço a voz da Rafaela vindo do estoque. Minha melhor amiga. Irônica, divertida, e a responsável por ter me arranjado esse trabalho. O dia passou rápido, como sempre. E graças a esse emprego eu consigo manter as contas de casa em ordem. Meu pai, quando aparece, está sempre com hálito de álcool e olhos avermelhados. O pouco que ganha fazendo b***s vira garrafa no mesmo dia. — Vamos? — Rafaela pergunta, ajeitando a mochila nos ombros. — Vamos — digo, pegando minha bolsa. O caminho de volta até o morro leva horas. Primeiro o ônibus lotado, depois a caminhada longa entre vielas estreitas e escuras. — Hoje o morro vai pegar fogo — Rafa diz animada. — Vai ter um baile que, segundo geral, vai ser o maior do ano. O dono do pedaço vai estar lá, com a tropa toda. Reviro os olhos, suspirando. — Ótimo. Mais uma noite sem dormir. E meu pai provavelmente vai estar por aí... se metendo com quem não deve. — Ju, já te falei pra largar a mão disso. Vive sua vida, menina! Vai no baile comigo! Vai que tu conhece alguém, se diverte... — Eu não quero conhecer traficante, Rafa. Nem me divertir cercada por homens armados. Isso não é vida, é roleta-russa. Eu tenho amor pela minha. Ela ri, jogando o cabelo para trás. — Você não sabe o que está perdendo! — Sei, sim — digo, balançando a cabeça. — Estou perdendo a chance de morrer de graça. Rafaela se despede e vai para casa se arrumar. Ela sempre foi mais solta, mais corajosa. Ou talvez só mais inconsequente. No caminho passo na padaria. — Olá, seu Paulo — digo sorrindo, empurrando a porta. — Me vê quatro pães, por favor. — Tá na mão, Juliana — ele responde, já colocando os pães num saquinho pardo. — E o seu pai? Sumiu daqui. — Tá bem, sim — minto, forçando um sorriso. — Rafaela me contou que você tá estudando pro Enem. Isso aí, menina. Vai sair desse morro ainda. — Tô tentando, seu Paulo. É meu sonho — digo com brilho nos olhos. A conversa é interrompida quando Ana e Tais entram, falando alto. — Vê umas cucas aí, seu Paulo — diz Ariane, se encostando no balcão. Me afasto discretamente. — Hoje eu vou ficar com ele — Ariane cochicha, empolgada. — Com Fael? — Tais ri, cúmplice. — Eu quero o amigo dele. Imagina... a gente com o dono e o sub. As rainhas do morro. — Ia ser top demais! — Ariane sorri, já sonhando acordada. Eu só escuto e agradeço, em silêncio, por não fazer parte desse mundo. Eu só quero sair dali com vida. Meu único plano é estudar, passar no Enem, conseguir um emprego decente e tirar meu pai daquela lama. — Aqui, Ju — seu Paulo entrega o troco. — Boa sorte nos estudos, viu? — Obrigada — digo, antes de sair dali. Quando chego em casa, sou recebida pelo silêncio. Não há sinal do meu pai. Só o rastro da sua presença: latas de cerveja amassadas jogadas pelo chão da cozinha, cheiro de cigarro e suor impregnando o ar. Fecho a porta devagar, tentando não fazer barulho, mesmo sabendo que ele não está. Encosto as costas na parede e deslizo até o chão, o saco de pães apertado nas mãos. Respiro fundo. Queria tanto tirar meu pai dessa vida. Tirá-lo daqui. Mas como? Como salvar alguém que não quer ser salvo? Olho para o teto, sentindo meus olhos arderem. — Só mais um pouco... — sussurro para mim mesma. — Só mais um esforço... E eu saio daqui. Eu juro que saio. ---
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