Daren
O morro não avisa quando vai sangrar.
Ele simplesmente sangra.
Acordei com o rádio estalando na frequência dos meus homens. Sussurros cortados por ruído. Palavras soltas como farpas:
— Os cara tão subindo.
— Um carro branco, vidro fumê.
— Bala comeu na viela da Baiana.
— Tem criança ferida.
— A novinha da ONG tava por lá…
Eva.
Meu sangue gelou por dois segundos.
Depois ferveu.
Eu disse que ela era perigosa. Que aquele sorriso de paz no meio do caos era um convite pra tragédia. Mas ela não ouvia. Continuava andando no meio da quebrada como se fosse imune, como se o bem que ela queria fazer pudesse blindar sua pele.
Burra. Inocente. Insubstituível.
Fui pessoalmente.
Desci com três dos meus, armado até os dentes, sem alarde. As motos ficaram pra trás. Tínhamos que chegar pelas sombras. O tiroteio ainda estava quente. Um grupo rival tinha tentado entrar pelo beco de trás, e um dos meus respondeu. Reação automática. Bala cruzada. Uma criança ficou no meio.
Eva também.
Quando virei o beco, vi a cena: ela ajoelhada no chão, com as mãos sujas de sangue, pressionando o peito do menino. Chorava. Gritava ordens que ninguém obedecia. O olhar perdido e desesperado de quem está tentando segurar a vida com os próprios dedos.
Parei. Não por hesitação.
Mas porque algo dentro de mim… quebrou.
— Vai pro alto da laje e cobre a entrada. Tem mais dois inimigo nas redondezas — murmurei pro Xandão. — O resto cobre a saída. Eu fico.
— Fica? — ele estranhou.
— Anda.
Fiquei.
Aproximei-me sem barulho. Ela nem me viu. Só percebi o quanto estava abalada quando seus ombros começaram a tremer. O menino ainda respirava. Fraco, mas respirava.
— Vai ficar tudo bem… vai ficar tudo bem… — ela repetia, como um mantra falho.
Ajoelhei do lado.
— Tem que tirar ele daqui.
Ela deu um pulo.
Os olhos, vermelhos de choro, se fixaram em mim.
— O que você tá fazendo aqui? — perguntou com a voz embargada.
— Te protegendo.
— Eu não pedi isso!
— Não precisa. Se você morre, o morro perde a única coisa que presta.
Ela tremeu.
— Você é doente.
— E você é burra. Falei que não andasse sozinha. Agora tá aí… chorando sangue por uma criança que nem vai lembrar seu nome.
Ela não respondeu. Só abaixou a cabeça. O choro começou a vir descontrolado.
Suspirei fundo. Não sou bom com isso. Emoções. Lágrimas. Mas… coloquei minha mão no ombro dela. Ela arregalou os olhos, surpresa, mas não afastou. E então, como se a dor precisasse de um porto, ela encostou a testa no meu peito.
Ficamos ali.
No chão frio. O menino gemendo. A sirene distante. O som do morro sussurrando que não tem lugar seguro — nem pro amor, nem pra esperança.
— Por que eu continuo aqui? — ela perguntou, baixinho. — Por quê?
— Porque você é i****a.
Ela riu entre lágrimas. Baixo. Triste.
— Eu achei que estava fazendo a diferença.
— E está. Só que não é como nos livros. Aqui a diferença é feita com corte, com sangue, com morte.
— Você fala isso como se fosse normal.
— Porque é. A morte mora aqui, Eva. Mas você… você é a única coisa viva que eu vejo há muito tempo.
Ela me olhou. Fundo. Como se tentasse enxergar se havia algo em mim que ainda podia ser salvo.
Talvez houvesse.
Mas não naquele momento.
Peguei o menino no colo. Ele ainda respirava. A bala tinha atravessado a lateral do peito, sem perfurar o coração. Sorte. Ou milagre.
— Vamos — falei.
Ela assentiu.
Na ONG improvisada, ela costurou os pontos com mãos que tremiam. Eu fiquei ao lado, calado. Apenas observando. Quando terminou, se jogou no chão, exausta.
— Você não vai mudar nada, sabia? — perguntei, sentando perto dela.
— Eu sei.
— Então por que continua?
— Porque se eu mudar só uma coisa, uma vida… já é alguma coisa.
Pensei naquilo.
Eu, que matava sem piscar.
E ela, que salvava mesmo tremendo.
Dois mundos que não deveriam se tocar.
Mas já estavam contaminados um pelo outro.
Antes de sair, falei:
— A partir de agora, vai ter sempre alguém vigiando você. Se tentar impedir, mando embora.
Ela quis protestar. Vi nos olhos.
Mas não protestou.
Só disse:
— Você é o problema que me obriga a aceitar sua proteção.
— E você é o veneno que eu escolhi beber.
Saí antes que ela pudesse sequer formular uma resposta, antes que seus olhos verdes, que tanto me enfeitiçavam, pudessem expressar qualquer objeção ou, pior ainda, qualquer confirmação. A verdade era um fardo pesado demais para ser carregado naquele momento, e o ar que nos envolvia já estava denso com a premonição de um futuro que eu temia e, paradoxalmente, desejava.
Porque no fundo, em cada fibra do meu ser, eu sabia. Aquele olhar, aquele sorriso, a maneira como ela se movia e falava – tudo nela anunciava a catástrofe que estava por vir. Ela ainda ia me destruir, fragmentar a minha alma em mil pedaços, e eu não teria forças para reconstruir nada. Seria um fim avassalador, um naufrágio sem botes salva-vidas.
E mesmo assim, apesar de toda a clareza e da iminência da dor, eu já estava disposto a deixar. A deixar que ela o fizesse. A entregar-me de corpo e alma a essa força irresistível, a essa paixão avassaladora que prometia tanto êxtase quanto ruína. Havia uma estranha beleza nessa rendição, uma espécie de heroísmo trágico em abraçar o próprio destino, mesmo que ele levasse à aniquilação. Minha resistência havia se esvaído, substituída por uma aceitação silenciosa e quase serena do inevitável.