Capítulo 5 – Entre Curativos e Contradições

974 Words
Eva A ferida na criança fechou com oito pontos. A minha, eu ainda não consegui contar. Desde o tiroteio, minha respiração ficou diferente. Como se tivesse areia nos meus pulmões. E quando eu fecho os olhos, vejo a camisa de Daren suja de sangue, o menino nos meus braços e o estampido de cada tiro martelando no meu ouvido como se fosse agora. Eu tentei me convencer de que foi só mais um dia r**m. Que era parte da realidade do morro. Mas eu sabia — nada mais ia ser “só” depois daquilo. Especialmente… com ele. *** Nos três dias seguintes, evitei o máximo possível qualquer lugar onde Daren pudesse aparecer. E isso, no Jacarezinho, significava quase não sair da ONG. Minhas pernas tremiam quando ouvia motos. Meus olhos procuravam o vulto dele sem querer. E minhas mãos, sempre tão firmes nos curativos, agora hesitavam. Como se tocassem pele e pólvora ao mesmo tempo. Mas o pior não era o medo. Era a lembrança do toque dele. Da mão pesada no meu ombro. Do calor repentino. Do modo como ele me olhou no beco, como se eu fosse a única coisa viva num campo de guerra. E eu… me deixei encostar. — Tá pálida, doutora — disse Julia no segundo dia. — Tá com medo dele? — Dele… do morro… de mim mesma — respondi, tentando sorrir. Ela me olhou como quem entende mais do que diz. — Medo não é o problema. O problema é quando a gente começa a se sentir segura com o que deveria nos assustar. Fingir que estava tudo bem funcionou até a quinta-feira. Estava dando vacina em um menino pequeno quando ouvi a batida do portão. Não precisei ver pra saber. O ar mudou. A rua ficou mais silenciosa. As mulheres que conversavam em voz alta no boteco da esquina pararam de rir. Levantei devagar, com a seringa ainda na mão. E lá estava ele. Encostado no batente da ONG, camisa preta colada no peito, o olhar mais escuro do que o céu antes da tempestade. E um saco de pão na mão. Sim. Pão. — O que… você está fazendo? — perguntei, sem conseguir disfarçar o espanto. — Trouxe café da manhã. — E desde quando você é o padeiro do morro? — Desde que percebi que você só come quando alguém te obriga. Fiquei alguns segundos sem resposta. A criança olhou de mim pra ele e cochichou: — Ele é seu namorado? Quase engasguei. — NÃO! — respondi alto demais. Daren riu. Um riso curto, discreto, mas genuíno. — Eu gosto desse moleque — murmurou. Ele entrou sem pedir. Sentou. Tirou os pães da sacola como se fosse o rei da padaria. — Você precisa parar de invadir esse lugar — falei, cruzando os braços. — Eu bati na porta. — Você entrou mesmo assim. — Você abriu com o olhar. Revirei os olhos, mas meu coração estava uma bagunça. — Você tá brincando com coisa séria. — Não. Se eu quisesse brincar, teria levado flores. Mas flores murcham. Pão é mais útil. — E eu sou o quê? A nova mascote do tráfico? Ele ficou sério. Totalmente sério. — Você é o único ponto que eu não entendo nesse mapa. E eu não gosto de não entender. Aquela frase me desmontou mais do que qualquer grito. Ele ficou ali por quase uma hora. Me ajudou a montar caixas com curativos novos que haviam chegado, conversou com duas senhoras e, em um momento surreal, até ensinou um menino a segurar melhor um balde de água. — Tá educando as futuras gerações agora? — perguntei, de canto de boca. — Se eles não aprenderem com alguém, vão morrer cedo. — Isso vindo de você é irônico. — Isso vindo de mim é trágico. Silêncio. No fim da manhã, ele foi embora como tinha chegado. Sem alarde. Mas deixou o cheiro de pão quente, suor e caos no ar. E um bilhete dobrado no balcão da ONG. "Se você sair do morro, quem é que vai me fazer querer ficar nele?" Passei o resto do dia tentando rasgar aquilo da minha mente. Joguei o bilhete fora. Depois peguei de volta. Guardei. Queimei. Me arrependi. Naquela noite, a ONG foi invadida por um grupo de jovens bêbados. Não eram da facção, nem soldados. Eram “malucos de beco”, como o povo diz. Entraram gritando, quebrando uma cadeira, fazendo piadas sujas. Me escondi atrás do armário com duas crianças. E aí ouvi os passos dele. De novo. Como um vulto. Não sei como ele chegou tão rápido. Nem quero saber. Só lembro dos gritos. Dos pedidos de desculpa. Da dor nos ossos dos caras quando bateram contra as paredes. — Essa ONG é dela. Quem mexer com ela, mexe comigo. E quem mexe comigo… morre — ele disse. E eu ouvi. E o morro ouviu também. Depois que os rapazes fugiram como ratos, ele me olhou. Eu ainda estava atrás do armário. — Você tá bem? Assenti, mas minha voz não saiu. Ele se aproximou, agachou e estendeu a mão. — Eva… tá tudo bem agora. Segurei a mão dele. Era a mesma mão que já havia puxado gatilhos. Que já tinha esfaqueado, batido, destruído. E naquele momento… era a única que me dava paz. — Eu não quero me envolver com você — sussurrei, sem soltar. — Mas já tá envolvida. — Isso aqui não pode acontecer. — Já tá acontecendo. — Eu tenho medo. — Eu também. Aquela foi a frase mais humana que ele já disse pra mim. E doeu. Porque era verdade. *** Naquela noite, fui pra casa e chorei. Não porque ele me assusta. Mas porque ele me quebra. E porque, no fundo… uma parte de mim já queria ser dele. E isso, no Jacarezinho, não era só perigoso. Era fatal.
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