Capítulo 6 – Onde Ela Não Estava

1252 Words
Daren Nunca gostei de ser seguido. Por isso, sempre fui o que segue. O que observa. O que antecipa. Era assim que eu me mantinha vivo. Mas então apareceu ela. E eu comecei a seguir alguém que nem sabia que era meu alvo. Comecei a vigiar uma mulher como se a vida dela fosse minha. E talvez, de algum jeito fodido, já fosse. Eva. A enfermeira de mãos tremidas e coragem teimosa. Que me enfrentava com os olhos, mas se derretia com a dor alheia. Que limpava sangue de ferido sem pestanejar, mas se engasgava quando eu chegava perto. Ela me tirava do eixo. E eu... deixei. Depois do episódio com os bêbados na ONG, mandei um dos meus — Negrete — ficar de olho nela. De longe. Sem se aproximar. Só observação. Relatório diário. Mas isso não bastava. Comecei a descer o morro sozinho, em horários aleatórios. Sem rádio. Sem escolta. Só pra vê-la de longe. Pra saber se ela ainda estava lá. Respirando. Sorrindo. Ou pelo menos… resistindo. Me odiava por isso. Mas não parava. Vi ela dançando com uma criança num fim de tarde. Gargalhando. Vi ela limpando as mãos na calça jeans depois de um atendimento. Vi ela brigando com uma moradora por causa de um antibiótico vencido. Vi ela... sendo ela. Do jeito que nenhuma mulher jamais foi. Do jeito que nenhuma deveria ser… aqui. Tentei afastar. Tentei ignorar. Fiz o que sempre fiz com quem me ameaçava: dei ordens pra me manter distante. Mas meu corpo… não obedecia. Comecei a sonhar com ela. Comecei a ficar inquieto quando não a via. Comecei a sentir raiva de qualquer homem que falava com ela por mais de dez segundos. — Você tá comendo a doutora? — perguntou Xandão, rindo numa roda de cerveja com os caras. Respondi com um soco. — Não fala dela. — Foi m*l, chefe. Não sabia que era santa. Santa. Aquilo me corroeu. Porque era verdade. E eu era o demônio rondando o altar dela. Na quinta, às nove da manhã, Negrete me chamou no rádio. — Ela não apareceu hoje. — Deve ter se atrasado. — Já são onze. Fui até a casa da ONG. Porta trancada. Ninguém viu. Silêncio. Frio no estômago. — Continua procurando. Mas sem alarde. Desliguei. Peguei minha arma. Meu celular. Minha moto. E fui atrás dela. Subi e desci becos. Passei em pontos de tráfico. Falei com velhos, com mães, com crianças. Perguntei por ela como quem pergunta por algo roubado. E era isso mesmo. Como se alguém tivesse me roubado algo que… eu nem devia ter. Fui até a casa improvisada onde ela dormia. Arrombei a fechadura. Entrei. Tudo em ordem. Roupa na corda. Caderno em cima da mesa. Um livro caído no chão. Mas ela não estava. E era o não estar que me destruiu. Porque pela primeira vez em anos… eu me vi impotente. Comecei a pensar em todas as possibilidades. Sequestro? Ameaça da milícia? Ataque da outra facção? Polícia? Cada pensamento era uma facada. Cada minuto sem resposta, um inferno. Até que meu celular tocou. Número desconhecido. — Alô? — Daren? Minha espinha congelou. Era ela. — Onde você tá, p***a? — rosnei. — Tá doida? Sumiu por horas, c****e! — Eu… desculpa. Eu fui visitar a mãe de uma paciente do hospital no Engenho. O sinal caiu. O ônibus atrasou. Eu tô voltando… — Você sai do morro SEM avisar? — Eu não preciso da sua permissão! — Mas precisa da minha proteção, ou já esqueceu onde você pisa? — Eu só queria fazer uma visita, Daren. Eu só queria respirar fora desse caos por um instante. Silêncio. Longo. Doído. — Só não some assim de novo. Nunca mais. — Por quê? — Porque se você morrer, eu mato alguém. Ela não respondeu. Nem precisava. Esperei por ela, o coração batendo forte no peito, escondido nas sombras do beco estreito que margeava a ONG. A noite começava a cair, trazendo consigo um ar gélido que se infiltrava nas minhas roupas finas, mas eu m*l sentia o frio. Toda a minha atenção estava voltada para a rua, para a expectativa de vê-la. Minutos que pareceram horas se arrastaram até que, finalmente, avistei o ônibus. Ele parou no ponto, soltando alguns passageiros antes de seguir seu caminho. E lá estava ela. Descendo os degraus com um cansaço visível em cada movimento, o rosto que eu conhecia tão bem estava abatido, as feições marcadas pelo peso de um dia exaustivo. Ainda assim, para mim, ela era a imagem da vida, da resiliência. Meus olhos seguiram cada passo dela. Vi-a caminhar lentamente até a porta da pequena casa anexa à ONG, onde sabia que ela morava. Vi quando enfiou a chave na fechadura, um som metálico que reverberou no silêncio da rua. Vi quando empurrou a porta, que rangou levemente, e se esgueirou para dentro, a silhueta desaparecendo na escuridão do interior. Vi quando, um instante depois, a porta foi trancada com um giro seco da chave. E, por fim, vi a luz se apagar, mergulhando a casa em completa escuridão. Somente então, com a certeza de que ela estava em segurança, protegida dentro de seu lar, meu corpo relaxou. A tensão que me prendia se dissipou, e um suspiro longo e contido escapou dos meus lábios. E só então… com a imagem dela segura gravada em minha mente, fui embora, deixando o beco e a escuridão da noite para trás, levando comigo a certeza de que ela estava viva. Naquela noite fatídica, a garrafa de uísque se tornou minha única confidente, e cada gole, um passo mais fundo no abismo do esquecimento. O álcool, um lenitivo traiçoeiro, prometia apagar as chamas que ardiam em minha alma, mas só servia para avivá-las, distorcendo a realidade em um borrão turvo. Bebi até que o mundo girasse sem controle, até que as luzes se dissolvessem em um breu, e o peso do meu corpo se tornasse insuportável. Mas, antes que a escuridão me engolisse por completo, antes que o sono me levasse para longe da dor, um sussurro escapou dos meus lábios, uma confissão murmurada no silêncio do meu quarto. Era um nome, um lamento, uma sentença: — Você é minha maldição, Eva. E eu estou começando a querer ser condenado. Aquelas palavras, proferidas para as paredes silenciosas, ecoaram em minha mente, carregadas de uma ironia amarga. Maldição. Sim, ela era. Uma maldição que se manifestava em cada pensamento, em cada batida do meu coração, em cada fibra do meu ser. Uma maldição que me prendia a uma realidade que eu não desejava, mas da qual não conseguia escapar. E, no entanto, havia uma estranha atração nessa condenação. Uma atração perigosa, tentadora, que me puxava para mais perto do abismo. Eu sabia que estava jogando com fogo, que a paixão por Eva era uma chama que poderia me consumir. Mas, naquele momento de embriaguez e desespero, a ideia de ser condenado por ela, de me perder em seus braços, parecia menos assustadora do que a perspectiva de uma vida sem ela. O álcool embaçava minha visão, mas não podia apagar a imagem dela em minha mente. Seus olhos, seu sorriso, o toque de suas mãos. Cada detalhe, uma tortura, um lembrete constante do que eu não podia ter, mas desejava com cada fibra do meu ser. E, à medida que a consciência me abandonava, a última coisa que senti foi o peso dessa maldição, desse desejo proibido, que me arrastava para um sono sem sonhos, mas não sem angústia.
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