Capítulo 7 – O Rei e a Ruína

1380 Words
Eva As ruas do Jacarezinho pareciam mais silenciosas naquele dia. Não era paz. Era pausa. Como o momento antes de uma explosão, um silêncio carregado de expectativa, onde cada sombra parecia esconder um perigo iminente. O ar denso e úmido da favela grudava na pele, trazendo consigo o cheiro de esgoto e fumaça, uma mistura que se tornara o perfume característico daquele lugar. Acordei com a sensação de estar sendo vigiada. De novo. Era a terceira noite em que eu sentia alguém me observando, uma presença sutil, mas inegável. Podia ser da esquina da ONG, do alto da viela, do beco à esquerda. Meus olhos, cansados e atentos, varriam a escuridão em busca de um vulto, de um movimento, de qualquer indício que confirmasse a minha intuição. Não era paranoia. Era Daren. Eu o conhecia bem demais para confundir o peso do seu olhar com a simples ansiedade. Ele achava que podia me seguir sem que eu notasse, um fantasma silencioso nas ruelas estreitas e iluminadas apenas pela fraca luz dos postes e dos barracos. Ele achava que isso era proteção, um escudo invisível contra os perigos do Jacarezinho. Mas pra mim… era prisão. Uma jaula sem grades, onde cada passo meu era calculado, cada suspiro monitorado. A liberdade que eu tanto prezava, a independência que eu lutava para manter, parecia se esvair a cada dia sob o peso dessa vigilância obsessiva. Eu era enfermeira, uma mulher que dedicava sua vida a cuidar dos outros, mas quem cuidaria de mim? Quem me libertaria dessa sombra que insistia em me seguir? — Você quer me proteger ou me controlar? — disparei assim que ele apareceu no portão naquela manhã. Ele parou. Não parecia surpreso. Estava calmo demais. Frio. — Qual a diferença, Eva? — A diferença é que eu não sou um objeto. Eu respiro. Eu penso. Eu escolho. — E tem escolhido m*l. — O que você tá fazendo comigo? Ele cruzou os braços, recostando-se no muro. — O que ninguém nunca teve coragem de fazer. Te manter viva. — Mas a que custo? Ele não respondeu. — Eu não aguento mais viver com medo até de sair da ONG. Você manda me vigiar. Você aparece do nada. Você invade tudo. Eu tô sufocando, Daren! — E o que você prefere? Ser livre pra morrer? O silêncio entre nós era uma linha esticada, prestes a arrebentar. — Eu prefiro ser livre pra viver — murmurei. Ele deu um passo em minha direção. Os olhos negros, intensos, indecifráveis. — Então vai. Anda pelo morro. Vai até onde quiser. Mas lembra: a liberdade aqui tem preço. E às vezes, o troco é cobrado em sangue. Mais tarde naquele dia, caminhei por ruas que ainda não conhecia. Crianças brincavam em frente a um barraco com janelas sem vidro. Mulheres estendiam roupas e falavam sobre filhos, maridos presos, comida que não deu. Aquela era a verdadeira realidade dali. Uma que eu ainda não tinha encarado de perto. Foi quando vi o garoto. Ele sangrava pela boca. Caído no chão, tentando levantar. Tinha uns dezesseis anos. Corri até ele. — O que houve? — M-mandaram me pegar… disse algo… errado… Tentei ajudá-lo, mas ele se encolheu. Estava assustado. De repente, dois homens o agarraram pelos braços e começaram a arrastá-lo. — Ei! EI! Ele precisa de socorro! — gritei, seguindo atrás. Eles não me ouviram. Ou não ligaram. Segui pelas vielas até chegar numa laje vazia, rodeada de caixas de madeira, com um galão de gasolina no canto. Ali estava Daren. Sentado numa cadeira, com um cigarro entre os dedos e o olhar fixo no garoto jogado no chão. — O que está acontecendo aqui? — perguntei, ainda sem acreditar. — Você queria conhecer o morro de verdade. Bem-vinda — ele disse sem olhar pra mim. — Esse menino precisa de ajuda, não de tortura! Daren se levantou devagar. O jeito como ele se movia... era o de um predador. Preciso. Calmo. Letal. — Ele entregou rota da carga. Dois dos meus morreram por causa disso. — É um menino! Ele tem medo! Ele errou! — E o erro aqui custa vida. — Então você vai matar ele? Assim? Comigo aqui? — Eu já matei com padre do lado. Sua presença não muda nada. Senti as pernas falharem. A respiração travar. — Você é um monstro. Ele se aproximou. — E você é uma flor tentando crescer no concreto rachado. Mas o concreto engole, Eva. Sempre engole. — Eu achava que… talvez houvesse algo bom em você. — Ainda acha? — Não. Agora eu vejo o que você é. Ele não respondeu. O menino começou a chorar. Gritar. Implorar. Eu gritei também. Pedi. Me ajoelhei. Tentei impedir. Daren só olhou. Uma única vez. Os olhos estavam mortos. — Você quer mesmo ver como o trono é mantido? Os músculos do meu pescoço enrijeceram enquanto ele sacava a arma, o metal frio refletindo a pouca luz do ambiente. Meus olhos se desviaram instintivamente, procurando qualquer ponto fixo que não fosse aquele objeto letal em suas mãos. O ar ficou pesado, a respiração presa na minha garganta. O som foi seco, cortando o silêncio tenso, e um arrepio percorreu minha espinha. Um misto de choque e medo me paralisou. Não tive coragem de olhar, de confirmar o que meu cérebro já começava a processar. Minha mente gritava para que eu movesse um músculo, mas meu corpo se recusava a obedecer, preso naquele instante de terror e incerteza. Quando abri os olhos, a realidade se impôs com uma brutalidade ensurdecedora. Ele já estava guardando a pistola, o metal frio deslizando de volta para o coldre como se a vida que acabara de ceifar fosse apenas um detalhe insignificante em sua rotina. O corpo do garoto jazia no chão, inerte, uma mancha escura contra o piso claro. Seus olhos, antes cheios de uma curiosidade infantil e um brilho travesso, agora estavam fixos em um ponto distante, vazios, refletindo apenas a ausência de vida. A camisa, que um dia fora vibrante, agora estava manchada por um vermelho escuro que se espalhava como uma terrível flor carmesim. O cheiro de pólvora ainda pairava pesado no ar, sufocante, misturando-se com o aroma metálico e acre do sangue. Era um odor que jamais se apagaria de minhas narinas, um lembrete pungente da violência que acabara de testemunhar. Cada inspiração era um novo fardo, enchendo meus pulmões com a memória vívida daquele instante fatal. E um pedaço da minha alma… arrancado. Não foi um corte limpo, mas um r***o brutal, deixando uma ferida aberta e sangrando. A inocência, a esperança, a crença na justiça – tudo isso se desfez em estilhaços no momento em que o som do disparo ecoou e a vida do garoto se esvaiu. Era como se uma parte de mim tivesse sido arrancada à força, deixando um vazio doloroso e uma sensação de impotência esmagadora. Aquele fragmento, antes parte de mim, agora jazia ao lado do corpo, tão inerte e sem vida quanto ele. Saí correndo. Quase caí nas escadas da viela. Tropecei em pedras, em gente, em gritos. Só queria ir embora. Dele. Daquilo. De mim. Horas depois, estava sentada sozinha na sala da ONG, com a mão tremendo, a mente girando. Ele apareceu. De novo. — Sai daqui, Daren — murmurei. — Você precisa comer. — Preciso vomitar. Silêncio. — Não vou pedir desculpas. — Nem quero. Quero distância. — E se eu disser que isso me doeu também? Olhei pra ele. Os olhos dele estavam baços. Mas ainda frios. — Você não sente dor. Você é a dor. — E mesmo assim, você não consegue me odiar. — Não me testa. — Eu tô tentando entender o que você vê em mim. Porque se você souber… talvez eu consiga ver também. Me levantei. Fui até ele. Pus o dedo no peito dele. — Eu vejo a parte de você que ainda sangra. Mas hoje… hoje você fez sangrar a parte de mim que acreditava. E fui embora. Naquela noite, dormi chorando. Não por ele. Mas porque, mesmo depois de tudo… ainda doía mais do que deveria. E porque, no fundo, algo me dizia que Daren não era só o monstro. Ele era o produto de um morro que mata tudo o que tenta florescer. Inclusive… nós dois.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD