CAPÍTULO 2
ALINE NARRANDO
Meu nome é Aline. Tenho 22 anos, nasci em Foz do Iguaçu, e até pouco tempo atrás, minha vida parecia um romance dos bons. Daqueles que a gente escreve achando que vai dar tudo certo no final. Mas não deu. A realidade me atropelou com força, e hoje eu só quero escapar com vida.
Sou escritora. Daquelas que passam a madrugada em claro criando mundos melhores do que o que a gente vive. Sempre amei escrever. Comecei cedo, escrevendo em caderno velho, depois fui publicando ebook atrás de ebook. Hoje trabalho pra uma plataforma digital gringa, e é com isso que pago minhas contas, ou pelo menos pagava, até as coisas desandarem de vez.
Fui criada por uma tia, a Lurdes. Minha mãe morreu de câncer quando eu tinha sete anos, e meu pai? Nem sei quem foi. Nunca conheci. Nem foto. Nem nome. A única referência de pai que eu tive foi o vazio. Minha irmã mais velha, Adriana, também passou por isso. Ela tinha doze quando nossa mãe se foi, e desde então virou meio que meu porto. Mas não ficou muito tempo.
Quando Adriana fez dezoito, ela foi embora. Disse que ia tentar a vida no Rio de Janeiro. Nunca mais voltou. Mas nunca me abandonou. Sempre mandava dinheiro, perguntava de mim, pagava escola, comprava material. A gente se falava por ligação, mensagem, vídeo… mas o abraço, esse eu não sentia há anos.
Enquanto ela batalhava no Rio, eu fiquei em Foz. Estudei, me formei, comecei a escrever. Os livros começaram a dar certo. Romance era minha especialidade. Ironia, né? Logo eu, vivendo uma história de terror em casa, escrevendo histórias de amor na tela.
Conheci o Carlos numa livraria. Eu tava autografando um dos meus livros quando ele apareceu. Bonito, simpático, envolvente. Daqueles que sabem exatamente o que dizer. Começamos a conversar, depois a sair… e quando vi, tava casando. Tinha 20 anos.
No começo, parecia perfeito. Flores, jantares, presentes caros. Ele dizia que me amava, que queria cuidar de mim, que ia me proteger do mundo. O que ele não contou é que eu ia precisar ser protegida dele.
Depois que casou, o Carlos mudou. Ficou agressivo. Ciumento, controlador. Batia quando eu questionava. Xingava quando eu tentava me impor. Me humilhava até eu acreditar que era nada. E eu… com medo. Medo de reagir, medo de fugir. Porque o Carlos é envolvido com o tráfico de Foz. Todo mundo o conhece, todo mundo tem medo dele.
Eu tentei sair, tentei pedir ajuda. Mas ele sempre dava um jeito de me calar. Me trancar em casa, cortar meu contato com o mundo, invadir minhas redes, mexer nas minhas contas. Tudo.
Minha escrita foi ficando pra depois. Eu já não conseguia mais criar nada. Como escrever sobre amor quando se vive com o ódio dentro de casa? Como imaginar finais felizes quando o presente é um pesadelo?
Naquela noite, eu tava sentada no chão do quarto, abraçada a uma foto antiga minha e do Carlos. Sorrindo. Fingindo felicidade. Me perguntando em que momento tudo desandou. As lágrimas escorriam sem controle. A tia Lurdes já tinha morrido, e eu não tinha mais ninguém aqui em Foz. Nenhuma família, nenhum amigo, nenhum lugar pra correr. A vontade era de sumir… desaparecer. Mas como? Pra onde? Com que força?
O soluço m*l tinha secado quando ouvi o portão bater com força. Me encolhi no canto. Reconhecia aquele barulho. Ele tava chegando.
Carlos entrou cambaleando, fedendo a whisky e perfume de mulher, os olhos vermelhos de droga. Bateu a porta com força, jogou a mochila no chão e veio direto pra cozinha. Abriu a geladeira, chutou a porta, e gritou:
— CADÊ A p***a DA JANTA, ALINE?
Fiquei muda. O corpo travado. Não tinha janta. Eu não consegui levantar. Eu só… chorei o dia todo.
Ele veio pra cima como um animal. Derrubou o ventilador, quebrou o copo da pia, e quando me viu no corredor, apontou o dedo.
— Tu tá achando que eu sou teu empregado agora, é? Que eu vou trabalhar e tu fica de madame nessa casa?
— Carlos, por favor… — tentei dizer, com a voz trêmula.
A mão dele veio primeiro. Um tapa forte no rosto que me jogou contra a parede. Senti o gosto de sangue na boca. Depois vieram os chutes, os empurrões, os xingamentos. E eu ali, caída, tentando me proteger com os braços, chorando baixo… pra não provocar mais.
Depois de me bater até cansar, ele subiu pro quarto tropeçando nas próprias pernas, batendo a porta com tanta força que a parede tremeu. Eu fiquei na sala, encolhida entre o sofá e a parede, com os olhos inchados, a boca cortada, o rosto quente de tanto apanhar. O sangue escorria devagar pelo queixo, e minha respiração era só soluço e dor.
Eu abracei meus joelhos e chorei tudo de novo. Mas não era mais choro de tristeza. Era de revolta. De desespero. De quem sabe que ou foge… ou morre.
Naquela noite, deitada no chão frio, só existia uma certeza dentro de mim: se eu ficasse ali por mais um dia, eu não ia sair viva.
Meu celular, ele tinha pegado e escondido. Como sempre fazia quando queria me isolar do mundo. Eu não tinha como pedir ajuda pra minha irmã. Nem rede social eu tinha mais. Ele me apagou do mundo. Me deletou de mim.
Cambaleei até o banheiro ali do corredor. Acendi a luz, me encarei no espelho. A cara inchada, o olho já roxo, o sangue seco no canto da boca… e uma mulher que eu quase não reconhecia mais. Onde foi parar a Aline sonhadora? A que escrevia histórias de amor? Que acreditava em recomeço?
Abri o chuveiro no quente, entrei sem nem tirar a roupa. A água foi escorrendo pelos meus cabelos, pela blusa, pela pele machucada… levando um pouco do sangue, mas deixando a dor toda ali. A água batia forte no corpo, mas nem doía mais. Nada doía mais do que o silêncio que eu vivia. O vazio.
E ali, no meio daquele vapor todo, com o som da água abafando o mundo, eu chorei. Chorei como quem perde tudo. Mas no meio daquele choro, a revolta começou a crescer. Fervendo no meu peito.
— É a última vez… — murmurei, com os dentes cerrados. — A última vez que esse desgraçado encosta um dedo em mim.
Não tinha mais desculpa. Não tinha mais “ele vai mudar”. Não tinha mais nada. Eu tava sozinha. Sem celular, sem saída, sem ninguém. Mas ainda com uma coisa: ódio. E foi esse ódio que me deu força.
Saí do banho com os olhos vermelhos, os cabelos pingando, o corpo tremendo, mas a alma… a alma tava em brasa. Vesti uma calça jeans velha, uma camiseta larga e enfiei o único dinheiro que eu tinha, uma nota de cinquenta escondida dentro da capa de um caderno velho, no sutiã. Era pouco. Mas era tudo.
O coração batia tão alto que eu podia ouvir. Cada passo até a porta parecia uma eternidade. Peguei minha bolsa, joguei dentro dela uma escova de dente, um caderno de anotações e meus documentos. Só. O resto? Que ficasse pra trás junto com tudo que eu não era mais.
Continua.....