CAPÍTULO 3
Continuação :
ALINE NARRANDO
A porta já tava entreaberta. Bastava um passo. Um único passo pra longe daquele inferno. Mas o barulho atrás de mim veio como um trovão:
— TU VAI ONDE, DESGRAÇADA?
Nem deu tempo de virar. Senti o puxão nos cabelos e meu corpo foi jogado pra trás com tanta força que caí de joelhos no chão. Carlos me puxou pela raiz do cabelo como se fosse bicho, com os olhos injetados, a boca espumando de raiva.
— TU TÁ PENSANDO QUE VAI FUGIR DE MIM, É?
— ME SOLTA! — eu gritei, tentando me desvencilhar, batendo nos braços dele, chutando, desesperada.
Ele me deu outro tapa no rosto, forte, tão forte que tudo girou por um segundo. Depois veio o soco no estômago. E outro. E outro. Eu tentei revidar, bati no peito dele com força, chutei a canela, arranhei o rosto. Não era mais medo. Era sobrevivência.
— TU É MINHA! NINGUÉM VAI TE TIRAR DE MIM! — ele berrava, cuspindo as palavras, me sacudindo pelo cabelo como se quisesse me quebrar.
— ACABOU! TU NÃO VAI ENCOSTAR MAIS EM MIM! — gritei com todas as forças que restavam.
Numa reação instintiva, empurrei ele com toda minha raiva, toda minha dor, todo meu ódio. Ele tropeçou na quina do sofá e caiu pra trás, batendo a cabeça com um estalo seco na quina da mesinha de centro. O barulho foi surdo, mas o impacto... forte demais.
Ele ficou ali, no chão, grogue, tentando se levantar, com a mão na cabeça, cambaleando.
— Sua… v***a… — ele murmurou, com a voz mole.
Eu tava trêmula, o peito subindo e descendo, o coração explodindo de tão acelerado. Olhei pro lado, procurando algo, qualquer coisa.
Meus olhos caíram no vaso de planta da sala. Pesado. De cerâmica. Peguei com as duas mãos. Tremendo. Chorando. Mas decidida.
— Nunca mais… — eu sussurrei.
Ele tentou se levantar de novo, se apoiando no sofá. E eu… eu fechei os olhos e acertei.
CRASH!
O vaso bateu na cabeça dele com força. E ele apagou. Caiu de lado, pesado, com o rosto sujo de sangue e terra.
Fiquei parada, o vaso ainda nas mãos, os olhos arregalados, o corpo em choque.
Silêncio.
Só o som da minha respiração descompassada, do meu coração gritando por socorro. A mão tremia, a visão embaçada. Mas eu sabia o que precisava fazer.
Ele podia acordar a qualquer momento. Eu precisava sair dali. Agora.
Joguei o vaso no chão com força. Ele estourou em mil pedaços, espalhando terra pra todo lado. Mas eu não tava nem aí. O barulho ecoou na minha cabeça como um alarme: corre, Aline. Agora.
Subi as escadas tropeçando nos próprios pés, o corpo tremendo, a mente girando. Entrei no quarto, puxei a mochila debaixo da cama e comecei a enfiar tudo o que via pela frente: duas calças jeans, três blusas boas, uma jaqueta preta, calcinha, sutiã, escova de cabelo, absorvente, remédio pra dor. Nem pensei. Só jogava. As mãos voavam.
Abri a gaveta dele, onde ele guardava a carteira. Peguei. Tinha dinheiro. Contado, dobrado, enfiado num maço. R$700. Guardei no bolso da mochila. Sem culpa. Depois de tudo que ele me tirou, aquilo era o mínimo.
Comecei a procurar o celular, desesperada. Revirei o criado-mudo, olhei embaixo da cama, puxei a gaveta de novo. Nada.
Até que vi: tava enfiado debaixo da carteira. Peguei com as mãos tremendo. A tela acendeu. Tava trincada, mas ainda funcionava. Bateria em 6%.
— Merda… — sussurrei.
Peguei o carregador que tava ali do lado e enrolei com pressa. Joguei tudo na mochila, puxei o zíper e saí do quarto correndo. No corredor, ainda parei e olhei pra escada. Silêncio. Ele não se mexia lá embaixo. Mas eu não ia contar com a sorte.
Desci os degraus voando, passei pela sala com os olhos grudados no corpo dele caído. O sangue escorria devagar da lateral da cabeça. Não sabia se tava vivo ou morto. E naquele momento… não me importava.
Abri o portão e corri. Corri como nunca. Com o coração disparado, o corpo ainda ardendo das pancadas. Corri sem olhar pra trás.
Como se minha vida dependesse disso.
Porque dependia.
Desci a rua correndo, ofegante, tropeçando no próprio medo. Cada passo era como se o chão fosse me engolir. O rosto ardia, o peito doía, mas eu só pensava em uma coisa: sair dali viva.
Na esquina, quase tropecei na frente de um moto táxi parado. O cara tava com o capacete no guidão, cigarro no canto da boca e o olhar desconfiado. Parei na frente dele, desesperada, a mochila apertada no peito, o cabelo molhado ainda pingando no ombro.
— Me leva… me leva pra rodoviária. Por favor… é urgente!
O cara me olhou de cima a baixo. Viu meu rosto inchado, o sangue seco no canto da boca, a expressão de quem não tinha tempo pra perguntas.
— Tá com dinheiro?
— Tô! Pago o dobro, mas vamo agora, por favor!
Ele jogou o cigarro no chão, subiu na moto e bateu no banco de trás.
— Sobe.
Subi com as mãos tremendo. Ele me entregou o capacete e nem esperou eu colocar direito. Girou a chave, acelerou, e a moto partiu cortando a madrugada.
O vento batia no meu rosto, misturado com o gosto de lágrima e sangue. Fiquei abraçada na mochila como se ela fosse minha única proteção. E, de certa forma… era.
Cada rua deixada pra trás era um peso saindo das minhas costas. Cada esquina vencida, uma parte do medo sendo esmagada. Eu não tinha um plano. Não sabia onde ia dormir, nem o que ia comer. Mas eu tinha um objetivo: chegar na rodoviária. Sair de Foz. Começar de novo.
— Tá indo pra onde? — o moto táxi perguntou, gritando por cima do barulho do motor.
— Rio de Janeiro… — respondi, quase num sussurro. — Vou procurar minha irmã.
Ele assentiu com a cabeça e acelerou mais.
Eu fechei os olhos e deixei o vento me levar.
Era o começo da minha fuga.
Ou o começo da minha vida.
A moto parou em frente à rodoviária com um solavanco. Meus pés tocaram o chão e eu quase caí. As pernas tavam bambas, o coração acelerado ainda batendo no ritmo da fuga. Tirei o capacete devagar, devolvi pro moto táxi e puxei a nota de cinquenta do bolso da mochila.
— Aqui… obrigada… de verdade.
Ele pegou a grana e me olhou com aquele ar de quem entende mais do que fala.
— Se cuida, menina… corre enquanto dá tempo.
Assenti, engolindo o choro, e virei as costas. Entrei na rodoviária sem olhar pra trás. O cheiro de café velho e desinfetante bateu no meu rosto junto com a luz fria dos refletores. O lugar tava quase vazio, só alguns passageiros sentados pelos bancos de metal, com malas, mochilas, cobertores. Gente indo e vindo. Cada um com uma história. Cada um fugindo ou voltando de alguma coisa.
Eu segui direto pro guichê de vendas. A mulher atrás do vidro tava de cabeça baixa, digitando qualquer coisa no computador. Parei ali, ainda com a respiração descompassada, e falei:
— Eu quero uma passagem… pro Rio de Janeiro. O mais rápido possível. A primeira que tiver.
A mulher me olhou por cima dos óculos, analisando meu estado. Mas não perguntou nada. Só digitou no sistema, fez uma cara de concentração e disse:
— Tem um ônibus saindo em quarenta minutos. Custa trezentos e vinte e cinco reais.
Balancei a cabeça e abri a carteira que tinha pego do Carlos. Contando as notas de cinquenta com as mãos trêmulas. Setecentos cravado. Entreguei o dinheiro com pressa.
— Pode ser esse. É só ida.
Ela pegou as notas, contou duas vezes, imprimiu a passagem e colocou dentro de um envelope azul.
— Plataforma oito. É da Viação Nacional. Confere ali no telão o horário. Bagagem vai no fundo do ônibus.
Peguei a passagem com os dedos frios. Era real. Eu ia embora. Ia deixar Foz, deixar o inferno, deixar o Carlos, vivo ou morto pra trás.
Olhei em volta. Cada sombra me dava medo. Cada pessoa que passava me fazia prender a respiração. Mas agora… agora eu tinha um destino.
Rio de Janeiro.
Minha irmã.
Uma nova chance.
Continua .....
Deixem bilhetinhos 📚❤️