CAPÍTULO 4
ALINE NARRANDO
Me sentei numa das cadeiras de metal da rodoviária, daquelas geladas e duras que fazem a gente lembrar que ainda tá viva… por pouco. A mochila apertada no colo, o rosto quente das pancadas, e um silêncio por dentro que gritava.
Olhei pro lado, vi uma tomada na parede. Encaixei o carregador com a mão trêmula e pluguei o celular. A tela piscou, ainda resistindo. 3% de bateria. Respirei fundo, destravei, e abri o contato que eu nunca tinha tido coragem de usar pra isso:
Adriana 🌻
Minha irmã.
A chamada de voz começou a tocar. E eu tremia. O coração socava meu peito.
— Alô? — a voz dela atendeu com aquele tom de quem tava dormindo. Quente, familiar. A voz que me lembrava casa.
— Dri… sou eu… — minha voz falhou, engasgada de dor, e só de ouvir o som dela, eu comecei a chorar.
— Aline? Que foi, meu Deus? Que que aconteceu, tu tá chorando? Fala comigo!
Fechei os olhos, apertando o celular contra o ouvido como se aquilo fosse me salvar.
— Eu… eu nunca te falei nada… eu não queria te preocupar… mas o Carlos… ele me bate, Dri. Me batia há muito tempo. Me trancava em casa, mexia nas minhas contas, me xingava… me apagava todos os dias, aos poucos… e eu deixei. Eu deixei por medo. Por vergonha… — solucei. — Mas hoje… hoje ele passou dos limites.
Silêncio. Um silêncio cheio de dor do outro lado.
— Ele… te batia? — ela repetiu, em choque. — E tu nunca me contou? Nunca, Aline?
— Não… — murmurei, sufocada. — Eu achava que ia passar… que era fase… que era culpa minha. Só que hoje… ele tentou me matar, Dri. E eu… eu reagi. Eu bati com um vaso na cabeça dele. Eu acho que… eu acho que matei ele.
— Meu Deus, Aline… — a voz dela veio embargada. — Onde tu tá agora?
— Na rodoviária… consegui pegar o dinheiro da carteira dele, comprei uma passagem… tô indo pro Rio. Ônibus sai em quarenta minutos.
— Escuta aqui… tu fez o certo. Tu salvou tua vida, ouviu? Vem, Aline. Vem pra cá. Eu vou tá te esperando. Tu não vai mais passar por isso nunca mais. Eu vou te proteger. Aqui, ninguém encosta em ti.
— Eu tô com tanto medo, Dri…
— Não precisa mais ter. Tu tá livre. Me manda a hora certinha da chegada que eu vou tá lá te esperando, tá? Promete que vem?
— Prometo… — sussurrei, limpando o rosto, mas as lágrimas não paravam.
A chamada caiu. Bateria zerada.
Fiquei ali, segurando o celular apagado, o corpo tremendo, mas o peito… o peito pela primeira vez com um fio de esperança. Eu ia embora. Eu ia recomeçar.
O painel da rodoviária piscou:
Plataforma 8 – Embarque autorizado.
Me levantei devagar, puxando a mochila pro ombro. O celular desligado ainda na mão. Era só uma carcaça agora… mas dentro de mim tinha algo novo.
Vontade de viver.
Fui andando até a plataforma com o rosto abaixado. Cada passo era pesado. A dor nas costelas latejava. O olho direito quase não abria. Mas eu seguia. Porque parar não era mais opção.
O ônibus já tava com o bagageiro aberto, e alguns passageiros entregavam as malas pro motorista. Eu não tinha mala. Só uma mochila velha, rasgada numa das alças e com o peso do meu desespero lá dentro.
Entreguei a passagem com a mão trêmula. O motorista olhou pra mim com aquela expressão mista de susto e pena. Mas não falou nada. Só apontou com a cabeça:
— Pode subir.
Subi.
Os olhares vieram como flechas. Cada pessoa que já tava sentada me olhou. Alguns desviaram logo. Outros demoraram. Mas todos viram. Todos notaram o rosto inchado, o roxo no olho, o corte na boca.
E eu senti.
Senti o julgamento.
Senti o medo.
Senti a vergonha queimando minha pele.
Fui direto pra uma das últimas poltronas, lá no fundo, encostada na janela. Me afundei ali, encolhida, abraçada na mochila. Virei o rosto pro vidro pra não precisar encarar ninguém.
A buzina do ônibus soou. As portas se fecharam. O motor roncou forte.
E eu chorei. Chorei baixinho, com o rosto virado pro vidro, enquanto o ônibus deixava a rodoviária e começava o caminho que ia mudar tudo.
Não era só uma viagem de Foz do Iguaçu pro Rio de Janeiro. Era da dor pra esperança.
Do inferno pro desconhecido.
Da morte… pra tentativa de vida.
A estrada era longa. Muito mais longa do que eu imaginava. O céu fora da janela já tinha trocado de cor umas três vezes, escuro, depois alaranjado, agora cinza. A paisagem mudava devagar, e meu corpo doía como se cada buraco da estrada lembrasse o que eu tinha vivido.
De vez em quando eu dormia. Cochilos curtos, pesados. Daqueles que mais parecem desmaio do que descanso. Acordava assustada com o barulho da marcha, com o choro de uma criança, com o som abafado do ônibus vencendo o asfalto.
Tava frio dentro do ônibus. A blusa que eu trouxe era fina demais. Me encolhi na poltrona, com os pés descalços puxados pro banco, abraçada na mochila como se fosse um cobertor.
Do meu lado, na tomada perto do pé, o carregador tava conectado no celular. A tela acendeu de leve. Peguei ele com cuidado, e quando desbloqueei, vi a mensagem:
Adriana 🌻:
– Já tá na estrada? Tá bem? Me responde, por favor…
Meus olhos marejaram de novo. Não era só uma mensagem. Era um abraço. Um colo. Respirei fundo, e mesmo com os dedos ainda trêmulos, respondi:
– Tô… na estrada ainda. Muito cansada. Mas tô viva.
Mandei.
Fiquei olhando pra tela, como se isso me fizesse sentir mais segura. E por um segundo, fez.
Deitei a cabeça de novo no encosto, fechei os olhos e deixei o chacoalhar do ônibus me embalar.
Era esquisito… Mesmo com o corpo moído, mesmo com o medo ainda ali, grudado…
Pela primeira vez em muito tempo, eu dormi em paz.
Continua.....