Preeminência

1527 Words
Ao sinal rubro do semáforo, uma mulher atravessou o aglomerado de pessoas, desviando habilmente com seu skate, ao som de Marisa Monte – Não é Proibido. Mascava chiclete de forma desleixada, tendo seu trajeto riscado no ar pelo echarpe esvoaçante. Sua mochila, surrada pelo tempo, contava histórias por meio de adesivos e penduricalhos. Evitando vendedores, pessoas e animais, atingindo seu destino no horário previsto. Encerrou o temporizador de seu smartwatch e jogou a franja para o alto da cabeça, valendo-se dos óculos escuros como tiara. Bateu o tail do skate com o pé, engatou-o num mosquete da mochila e adentrou no Ceisa Center, maior edifício comercial de Santa Catarina. Cumprimentou a portaria, transeuntes, e embarcou no elevador. No décimo primeiro andar, percorreu o corredor acenando para colegas, alcançando a última sala: um espaço amplo, de janelas extensas o bastante para conceder uma vista panorâmica de Florianópolis. Composta por um arsenal indispensável para seu ofício, a sala ostentava a seguinte placa: Rhea Amana Kûara - Restauradora Chefe Largou a mochila na poltrona e abordou o cavalete central, despontando debaixo do lençol, a obra A Esquadra Imperial Brasileira na Baia do Desterro, óleo sobre tela de Joseph Brügmann, de 1867. Sua encarada analítica destinava-se na área branca inferior direita, adjunto as pedras, a qual havia sido preparado antecipadamente para restauração. Vestiu o avental, e da sua mochila retirou luvas de dedos vazados que piscavam LEDs amarelos ao serem vestidas. Na cabeça, acomodou um smartglass, cuja tela transparente se ativou. Sem desviar os foco da pintura, Rhea deu instruções interpretadas pelo dispositivo. — Referência anterior. — o quadro original, em estado deplorável, digitalizou na lente, na proporção um-pra-um, permitindo comparar o antes e o depois através de realidade aumentada. — Aproxime setenta e três porcento, no quadrante seis. — o foco ocorreu na área esbranquiçada. — Referência anterior. — comandou. Peregrinou ao redor do quadro, analisando a luz em diferentes perspectivas. — Simular noite. — o aparelho aplicou um filtro digital noturno. — Simular luz direta. — o dispositivo executou. — Inverter cores. — inclinou a cabeça, pensativa. Quando suas luvas estagnarem no LED verde, apanhou sua paleta, alguns pigmentos e misturou duas gradações de verde. — Extrair pigmentação. — direcionou a visão para os arredores de onde pretendia restaurar. Em segundos, o smartglass parametrizou as matizes. — Igualar. — Rhea misturou os pigmentos na paleta enquanto o aparelho analisava, por paridade, os tons tirados como amostra. Ao atingir a tonalidade, Rhea trouxe para si seu estojo de pincéis. Se afastou do cavalete para criar amplitude, e contemplou. — Simular técnica de reintegração mimética. — o pequeno monitor processou os resultados e os exibiu, permitindo a Rhea reexecutar os comandos de luminosidade para averiguar o resultado. Na tela, um alerta indicava Diferença Cromática: 42%. — Muito alto, não vale a pena. Vai ficar troncho. Simular técnica Tratteggio. — a lente efetuou o processamento, e dessa vez, o indicativo de sucesso foi de noventa e seis porcento. — Justo. Quatro porcento, eu garanto! Armazenar parâmetros e iniciar gravação. Intervalo histórico, oito em oito segundos. — o aparelho decompôs a tela em duas partes: do lado direito, a pintura alternava-se entre a original e a atual, enquanto o lado esquerdo, avaliava em tempo real o cavalete. No canto esquerdo, o sistema solicitou a música. — Qual foi a de ontem? — o título surgido na tela foi Che soave zeffiretto. — Jesus, hoje não tô nesse clima. É sexta-feira. Alterar música para, DJ Shah – Mellomaniac. Cadenciando a respiração com movimentos firmes e olhar compenetrado, Rhea iniciou pelos arredores, em toques sutis, convergindo até o centro, e a cada pincelada, aquele vazio quarado cunhava vida. Sempre atenta as sugestões do smartglass, e alternando entre as simulações de luz e projeções, em algumas horas, a restauração havia finalizado. Inclinou a cabeça feito cão confuso analisando o resultado numa nova perspectiva, ignorando o som de passos se aproximando. O dono dos sapatos caros e barulhentos assistia tudo da porta e só entrou quando assegurou que Rhea havia finalizado. Deixou na mesa um frasco rechonchudo de tampa dourada, envolvida em fita decorativa similar a um perfume. — Você tem ideia do quanto as pessoas te odeiam pela forma que restaura as obras? — questionou o homem. Rhea sorriu, tirou uma última foto com o smartglass, e deu o comando para encerrar a gravação. Nesse instante, os LEDs de suas luvas retornaram ao amarelo. — Cada era tem suas vantagens tecnológicas, e todos fazemos uso dela. Imagino que as pessoas que me odeiam devam talhar pedras, não? — rebateu Rhea. — São saudosistas, Rhea. — sustentou o indivíduo. — Ahã, 'saudosista', claro. Uma palavra bonita para camuflar a incapacidade de se reciclarem. Por mais que existam tecnologias incríveis que auxiliem no restauro, a fonte dessa técnica, está aqui. — sem se virar, Rhea apontou para a têmpora. — E sabe qual a diferença entre mim, e essas pessoas estagnadas? — Rhea virou-se para o homem a sua porta. — Eu sou capaz de fazer o que eles fazem. E eles, são capazes de fazer o que eu faço? O homem sorriu, exultante. — Rhea, sendo Rhea. — Você sabe o que penso dessas pessoas, Heitor? — Profissionais que precisam de emprego. — disse Heitor, imitando comicamente a voz grave de Rhea. Rhea dobrou os joelhos, manteve o rosto erguido e puxou a blusa como se fosse uma saia, num gesto de cortesia tradicional de um subalterno. — Esse seu deboche ainda vai te levar para cadeia. Rhea riu agradecida. — O trabalho não acaba nunca. — disse Heitor, notando a pilha de quadros num canto. — Isso é positivo, na minha opinião. — contrapôs Rhea. Uma das etiquetas sinalizava 2060. — Nossa, tem gente requisitando restauração de obras que m*l saíram do cavalete? — Essa não é a data da pintura, Heitor, e sim a data em que chegou aqui. Heitor torceu a cara. — Não posso fazer nada se eles acumulam, Heitor. A cada semana, entra um quadro de prioridade superior. — A culpa não é minha. — defendeu-se o homem. — A prioridade é do cliente que paga mais. — Esses aí são beneficentes, Heitor... Heitor arqueou os ombros, como quem diz "fazer o quê?". — Pelo visto, o de prioridade zero está pronto. — Heitor beirou a obra a qual Rhea trabalhava. — Excelente, como sempre. — Bajulador, como sempre. — Rhea soltou as tranças. — O que você quer, Heitor? — Nossa, Rhea. Sou tão previsível assim? — Todos somos. A diferença é que uns percebem isso mais do que os outros. — retirou as luvas, guardou-as na bolsa e foi até o computador onde reexibiu a gravação. — Seu desempenho aumentou, Rhea? — Apesar de ser possível efetuar esse tipo de medição, minha intenção é ver quanto tempo gastei em cada área do quadro, e analisar meus movimentos. Gosto de manter um padrão na técnica que uso. — E qual usou nessa obra? — Heitor fazia pose de quem vai ao museu, não sabe o que olhar numa obra e finge interpretar. — Se não percebeu, é porque obtive sucesso. — disse Rhea, satisfeita. Heitor se concentrou, molhou os lábios e disse com pomposidade na voz. — Rigatino. — seu italiano era carregado. — Tanto a criação quanto a intervenção são partes da história de um quadro, e isso deve ser respeitado. A reintegração imitativa vem justamente quando não tenho a intenção de transportar características minhas à obra, sobretudo, quando a área de reparo está destruída. Heitor foi até o monitor e viu o antes e depois. — Caramba. Qual a origem desse estrago? — O quadro caiu no encosto de uma cadeira. — E o que uma cadeira estava fazendo próximo do quadro? — Provavelmente, alguém removeu para limpar. — Rhea arquivou os dados da pintura. — O quadro secará no final de semana. Pode pedir pro pessoal do transporte preparar a entrega para segunda-feira. — Ótimo! Esse vai nos render uma boa imagem! — Que bom. — Rhea organizou suas ferramentas, cobriu com cuidado a pintura e notou o frasco em cima da mesa. — O fato de me trazer presente já diz que veio demandar algo cuja resposta será não. — Tá, tá, eu sei. Sou 'previsível', mas acredite que dessa vez, o mimo não tem relação com o que irei pedir. — satirizou Heitor. — Deixe-me decidir isto depois de ouvir. — Rhea rebateu. — É um assunto delicado. São meio-dia. Quer sair pra almoçar? — Claro. — Rhea retirou o smartglass. — Mas tem que ser à uma. Tenho treino agora. — Treino, justo hoje? — Não, Heitor. São todos os dias! — Nesse caso, que m*l faz perder um dia? — Não sei, Heitor. Você almoça todos os dias? — Óbvio que sim. — Que m*l faz almoçar após o meio-dia, um dia? Heitor enfezou a cara. — Você não muda, Rhea. Rhea sorriu simpática. — Tudo bem. Vá para seu treino e eu irei dar andamento na papelada deste quadro. Nos encontramos no Artusi. — Combinado. Heitor sacou seu smartphone e saiu tagarelando. Rhea fechou a sala e foi para a academia.
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