Deliberação

2108 Words
Conduzida pela arte das oito armas, desferiu uma sequência de cotoveladas, socos e finalizou com uma joelhada. O oponente esquivou-se, mas não o suficiente para ser pego pelo chute inesperado, desferido com sucesso pelas longas pernas de Rhea. — Caramba! — disse o oponente, se levantando. — Quando eu acho que desviei, ainda vem mais dez centímetros de perna. Rhea juntou as mãos frente ao rosto e abaixou a cabeça. — Sawadee Krap! — estendeu a mão para cumprimentar. — Sawadee Kha! — respondeu cordialmente o oponente, apertando as mãos de Rhea. — Mesmo horário semana que vem? — o instrutor retirou as luvas. — Vamos manter. Sinto que estou rendendo mais no meu trabalho quando intercalo treinos curtos durante o dia. — Rhea removeu e ensacou as bandagens dos braços e pernas. — Vai se inscrever no campeonato? Rhea viu o cartaz na parede, ao lado do estande de troféus de muay thai de seu mestre. — Talvez. É no mês que vem, não é? — Isso. — Mais dois treinos e eu lhe digo. — enxugou o suor da testa. — De acordo. — Vou indo. Muito obrigada, mestre. — Passar bem, Rhea! Seguiu até o vestiário, tomou uma ducha, vestiu-se e partiu para o restaurante. Na entrada, foi guiada pelo atendente até a mesa onde Heitor, taramelando ao telefone, a aguardava. Rhea assentou, fez pose de boa moça e esperou. Percebendo que Heitor iria demorar, a garota acenou para o garçom e fez seu pedido. — Quem eu tenho que matar para as pessoas fazerem as coisas do jeito que eu peço? — resmungou Heitor encerrando a ligação, passados quinze minutos. Nesse instante, o pedido de Rhea chegou. — Ei, você pediu sem me esperar? — Se tivesse desligado o telefone quando cheguei, também estaria comendo. — Rhea temperou a salada e brindou sozinha no ar. — Saúde! — Ei, garçom. — Heitor estendeu o braço. Prontamente, foi atendido. — Gnocchi di 'Mandioquinha' Fonduta i Filetto di Manzo. — Não consegue, né? — Rhea interveio. — Não consigo, o que? — Pedir essas coisas em português. — Se concentre na sua salada, Rhea. — Panzanella. — riu com a boca cheia. — Tá, tá, já entendi seu ponto, Rhea. São poucos os locais que posso exercitar meu italiano. — dirigiu a atenção ao garçom. — Traz também um Pinot Noir... Rhea segurou o riso e Heitor interrompeu a fala. — Me traga uma taça de vinho da casa. A face surpresa de Rhea foi verdadeira. — Satisfeita, Rhea? — Sta progredendo, amore mio. — respondeu quase cuspindo a comida de rir. — Pior é você, que vem num restaurante como esse para comer capim. — Deixo comidas pesadas para momentos oportunos. — E esse não é um? Vamos lá, Rhea, pode pedir o que quiser. Por minha conta. — Estou bem com meu capim, Heitor. — 'Vocês' não tem o tal dia do lixo? Use-o. — Sim, 'nós' temos o 'dia do lixo'. Mas o meu não é um dia, e sim, um momento. — Qual? — Quanto estou estressada. — Entendi. E essa semana foi relaxante? — Sim. — Então tem crédito extra para um nhoque de batata e queijo. — A semana foi relaxante, Heitor, mas não quer dizer que não tenha sido estressante. — Alguma coisa de r**m? — Bateram no meu carro semana passada, num sábado de manhã, ferrando com minha trilha planejada há meses. — É algo a se considerar. — Heitor arqueou os ombros. — E então, sobre o que queria falar? Nesse instante, o vinho e o prato de Heitor chegaram, vaporizando o grana padano. — Isso sim é comida. Obrigado. — equipou os talheres e serviu-se em bocadas generosas. — Fala italiano, mas come feito um babuíno. — disparou Rhea. Heitor engasgou e tossiu, aliviando-se com um gole de vinho. — E a julgar por sua cara torta, esse vinho não possui notas de funcho, na alvorada frutífera do retrogosto de baunilha, envelhecido em carvalho n***o, né Heitor? Após o segundo gole, e reestabelecido a respiração, Heitor limpou a boca no guardanapo antes de proferir: — Cala a sua boca, Rhea. Vamos ao que interessa. Rhea sinalizou para seguir adiante. — A empresa vai muito bem. Estamos com clientes regionais fixos, e nossa expansão para os estados vizinhos é um sucesso. No entanto, prevejo estagnação se continuarmos atendendo apenas o Brasil. Mas veja bem: não estou menosprezando nossa arte, pelo contrário. É muito rica e é um dos fundamentos da empresa. Mas convenhamos..., nosso país, além de não ter incentivo do governo, não tem tradição mundial em obras de artes. — Di Cavalcanti? — o semblante de Rhea era neutro. — Não passou da América Latina. — rebateu Heitor. — Tarsila do Amaral? — Abaporu atingiu o êxito internacional, mas depois das férias na União Soviética, a moça voltou falida para o Brasil, foi presa e suas obras posteriores se restringiram a bienais em São Paulo, e uma ou outra, em Veneza. — Ela é detentora do quadro brasileiro mais valioso no mundo. Passa de um milhão de reais. — Eu sei, Rhea. Mas entenda: a obra é conhecida internacionalmente, mas não reconhecida mundialmente. — Não são a mesma coisa? — Internacional, pode-se considerar um país ou outro. Mundial, é todo o planeta. — Portinari? — sugeriu Rhea. — Foi o que mais se destacou em outros continentes, mas não o suficiente. Os gringos m*l conhecem o Brasil, quiçá sua cultura. — Pois para mim, são artistas muito expressivos. — Eu sei que são, Rhea, e não é esse o meu ponto. Entenda: eu quero o Louvre! O terceiro gole amarrou a boca, obrigando Heitor chamar o garçom. — Um Lupo Meraviglia, Tre di Tre, por favor. Rhea aproveitou a parada para requisitar um suco antes de Heitor continuar a palestra. — Nos últimos anos, tenho ido a dezenas de congressos no exterior à procura de investidores, ou buscando uma conta de museu famoso, para enfim, chegarmos até uma obra de empatia global. Mas apesar de ter você, e uma equipe formidavelmente treinada, não é suficiente, pois ninguém lá fora da atenção para restaurações em quadros de pouca relevância. — Eles estão errados. — disse Rhea. — Concordo, mas não irei entrar nesses méritos, Rhea. São negócios, e é assim que as coisas funcionam. Rhea desdenhou com os ombros. — Temos três salas de quarenta metros quadrados para a empresa. Uma do escritório, outra para a equipe, e uma única só para você. Isso é o quanto eu invisto e acredito em nosso potencial. Mas enquanto não tivermos destaque, nossa habilidade será ofuscada. E esses holofotes estão em obras relevantes. — E qual o seu plano? Jogar a Monalisa no encosto de uma cadeira? — Não seja tola, Rhea. Durante minhas viagens, fiz contatos, expus nossas obras, tornei público as qualificações de nossa equipe, e nada. Contudo, um homem me abordou, dizendo acompanhar nosso trabalho. Brasileiro como nós, vaga pelo mundo em busca de restauradores de habilidades singulares. — E esse cara é o famoso quem? — Um ricaço excêntrico chamado Herodes Gaillard do Nascimento, detentor de obras inimagináveis. — através do smartphone, Heitor exibiu várias fotos de quadros famosos. — Não reconheço o museu. Qual é? — questionou Rhea. — Não é um museu, Rhea. É a galeria pessoal da casa do Herodes. Um pedaço da alface caiu da boca estática de Rhea. — Entendeu agora, não é? — Heitor sorriu faceiro. — Pois bem. Ele é um colecionador fervoroso, dono de uma das maiores coleções de obras de arte do mundo. E só não é célebre, pois esconde-se através de vários pseudônimos. — E o que ele procura? — Algumas obras estão expostas em museus pelo mundo, outras, as mantém em casa. O fato é que elas envelhecem, e Herodes é metódico o suficiente para não deixar qualquer um pôr a mão, muito menos tirá-los de sua residência. Por isso, viaja o mundo em busca de restauradores particulares. — E ele quer nos contratar para restaurar seus quadros. — Exato! — Não vejo problema algum. O garçom retornou com o vinho, sacou e entregou a rolha para conferência. Serviu um pouco e aguardou. Heitor segurou a taça no alto, analisou as lágrimas contraluz, girou o líquido, sentiu o aroma e sorveu. — Negroamaro primitivo, meu preferido. — fez sinal com a cabeça para que fosse servido integralmente. Rhea negou a oferta apontando para o seu suco. — Essa nossa reunião poderia ter sido um e-mail, Heitor. — É aí que você se engana, Rhea. O ricaço quer que os reparos sejam feitos em sua residência. Por você. Rhea engoliu a salada com enrosco. — Que? Como? Pra que isto? — Conforme mencionei, ele proíbe que determinadas obras saiam de sua residência. — E por que eu? — Ora, Rhea. Eu só conheço uma pessoa que, além de formada Artes Visuais e pós-graduada em História e Análise da Obra de Arte, teve a audácia de pós graduar em química apenas para extrair o melhor dos componentes de restauração. — Adulador. — desdenhou a mulher. — Rhea, o cara é rico, poderoso, tem contatos em muitos museus. Ele é nossa porta de entrada para o reconhecimento mundial. — Se ele tem tanto dinheiro assim, por que não movimenta uma caravana e traz as obras sob supervisão do exército? Heitor brincava com a taça. — Porque ele mora no Amazonas. — disse Heitor, fazendo Rhea cuspir parte de uma cenoura na mesa. — Amazonas?! — Precisamente, em Ipixuna. — Heitor deu um gole. — O que diabos um milionário faz em um local tão ermo assim? — Ricos tem o aval da excentricidade, Rhea. Rhea parou de comer, sacou o smartphone, teclou algo e apontou para Heitor. — É pra esse fim de mundo que você quer me enviar? — o Google Maps exibia a localização geográfica de Ipixuna. — Tem bastante natureza. Você gosta de flores e capim. — Heitor findou seu vinho e apontou a taça para salada. — Heitor, sem chances. Eu não vou viajar três mil quilômetros para restaurar um quadro. — Qual o problema? — Quer que eu diga em ordem alfabética? — Não exagere, Rhea. — Ah, é? E como esse ricaço espera levar minha sala e equipamentos de restauração? Vai mandar um helicóptero? — Não precisa levar nada. Ele tem tudo. — Todos os equipamentos? — Sim. — Todos!? — Sim. — Heitor se jogou no encosto da cadeira. — Claro, os seus gadgets específicos, talvez não. Mas as ferramentas padrões, sim. — Ele não pode ter tudo. — Rhea cruzou os braços. — Rhea, restauradores são chamados por Herodes há anos. Cada profissional teve sua demanda atendida integralmente. Ao longo do tempo, transformou parte de sua residência em um ateliê. Se ele diz que tem tudo, é porque tem. E o que faltar, Herodes disse que basta enviar na lista, e será providenciado. — E internet? — Satélite. Rhea fechou a cara. — Vai ser legal, Rhea. É um estado novo. — Não. — Mas é uma oportunidade única. — Não. — É tudo pago. — Não! — Você será a gerente da nova unidade em Londres, que pretendo abrir após o sucesso desse projeto. — Não... — esse último 'não' foi doído. Um silêncio mórbido pairou sobre a mesa, sentenciando o assunto, sendo finalizado com a mão de Rhea pedindo o encerramento da conta. — É um tríptico. — a voz de Heitor soou fatal como uma lâmina afiada. Rhea congelou. — Como? — O quadro a ser restaurado é um tríptico. — Qual? — Rhea cancelou o pedido da conta. — Il Giardino delle Delizie Terrene. Rhea bateu as mãos na mesa. — Você está mentindo. — Rhea, eu não te mandaria para o Amazonas só pra fazer uma piada. — Esse quadro está no Museu do Prado. Eu já o vi. Tenho fotos com ele. — Sim, existe um lá no Prado. Mas o original nunca saiu da casa de seu dono. Perplexa, Rhea fitou o nada. — Não precisa me responder agora, Rhea. Tire o final de semana para relaxar e pensar na proposta com calma. — Heitor levantou, fez sinal para o garçom mandar a conta para a empresa, e tocou o ombro de Rhea, sussurrando em seu ouvido: — Imagina que outras obras o ricaço deve ter por lá, heim! — Rhea deu um empurrão, e aos risos, Heitor sacou seu smartphone e saiu papagueando. Sozinha e estarrecida com a proposta, Rhea fez o esperado: substituiu seu suco pelo vinho, empurrou a salada pro lado, arrastou o nhoque de mandioquinha para si, e devorou-o.
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