A procura de trabalho..cap..1
ISABELA FERRARI
— Não... não, Bernardo... para... por favor, você...
Mais uma noite, mais um pesadelo.
Eles nunca somem. Apenas se escondem até decidirem me devorar outra vez.
Me levanto em silêncio. A casa está quieta, apenas o som do meu próprio coração batendo acelerado ecoa dentro de mim. Sigo até o banheiro, lavo o rosto, escovo os dentes, amarro o cabelo em um coque bagunçado e visto um vestidinho leve, só o suficiente para cobrir a pele marcada por memórias que preferia esquecer.
Na cozinha, preparo o café — pra mim e pra Fernanda, minha melhor amiga e minha salvação.
Dividimos essa casa e a vida desde que meu irmão, Bernardo, foi preso.
Enquanto o aroma quente invade o ar, minha mente vagueia por lugares que me machucam.
Antes, eu era apenas uma adolescente comum. Feia, segundo os padrões cruéis da sociedade. Mas feliz. Porque, mesmo sendo invisível aos olhos dos outros, eu tinha minha família. E ela era tudo.
Bernardo sempre foi meu orgulho e minha paixão.
Sim, minha paixão. Lindo, com um sorriso de tirar o fôlego e um charme absurdo.
Ele era meu porto seguro. Meu herói.
Meus pais também… um casal de novela. Amor de verdade, daquele que parece não existir mais.
E tinha a Fer… minha amiga desde sempre. Linda, estilosa, extrovertida.
Muitos se perguntavam por que ela andava comigo. A “feia da escola”.
Mas Fer nunca ligou. Sempre esteve do meu lado. Sempre.
Ela era — e ainda é — louca pelo Bernardo. Nunca disse nada a ele, mas eu sei.
E, mesmo não sendo correspondida, seguia tentando… se enchia de namorados gatos, talvez só pra ver se ele reagia.
Mas tudo desabou.
Meu pai morreu em um acidente. Minha mãe... entrou em depressão profunda e tentou tirar a própria vida.
Foi quando Bernardo e eu decidimos interná-la.
E aí veio a tragédia final: a prisão dele.
Meu mundo acabou.
Passei meses sem sair do quarto, sem comer, sem respirar direito. Queria morrer.
Mas Fer não deixou.
Ela se mudou pra cá, segurou minha mão e me reconstruiu — pedaço por pedaço.
— Bom dia, miguxa — a voz animada dela me tirou dos devaneios.
— Bom dia, Fer.
— Hmm, esse cheiro de café tá salvando minha vida.
— Toma, fiz pra você.
— Obrigada, gata.
— Tá tudo bem, Isa? Eu ouvi você gritar essa noite.
— Foram só pesadelos... os mesmos de sempre. Não se preocupa.
— Hoje faz seis anos que o B foi preso, né?
— Seis anos... e seis anos que ele não me deixa visitá-lo na cadeia.
— Ele só queria te proteger daquele lugar. Não suportava a ideia de você o ver ali.
— Mas fui eu quem colocou ele lá, Fer...
— Ele faria tudo de novo. Mil vezes. Pra te proteger.
— Hoje vou visitar minha mãe. Você quer ir?
— Queria, mas vou trabalhar até tarde no salão da Cris.
— Tudo bem.
— E a entrevista, Isa?
— Mais tarde...
— Se arruma, hein. Vai linda.
— Só vou colocar um jeans e uma camisa branca. Tá ótimo.
— Você quem sabe. Onde é mesmo?
— Na empresa Alencar.
— Aquela dos carros de luxo?
— Essa mesma.
— Esse emprego já é seu, miga.
— Não sei, Fer...
— Nada de pensamento negativo. Vai dar tudo certo, ouviu?
— Tomara... tomara mesmo.
Ficamos ali por mais alguns minutos, conversando, rindo, tentando esquecer das dores que nos moldaram. Depois, cada uma seguiu seu caminho.
Ela pro trabalho.
E eu… pro lugar onde tudo desmoronou: a clínica onde minha mãe vegeta, presa entre memórias e arrependimentos.
Mas hoje… hoje alguma coisa dentro de mim pressente que tudo vai mudar.
E talvez não seja para melhor.