Liso Narrando
Meu nome é Marcelo, mas todos me chamam pelo o vulgo Liso, tenho 20 anos. Cresci vendo minha mãe ralar mais que todo mundo que eu conheço. Desde que meu pai sumiu eu devia ter uns sete anos, nunca mais apareceu nem pra saber se a gente tava vivo. Minha mãe ficou sozinha comigo e minha irmã, carregando o peso nas costas.
Ela sempre fazia faxina na casa dos outros, saía cedo, voltava tarde, cansada, as mãos cheias de produto e a coluna doída. Mas nunca deixou faltar um prato de comida na mesa. Muitas vezes era arroz, feijão e ovo, mas a gente comia junto, e ela ainda dava um jeito de rir.
Eu lembro dela chegando com o uniforme molhado de suor, o cabelo preso com grampo torto, e mesmo assim perguntando como tinha sido meu dia. Eu respondia qualquer coisa, mas por dentro me mordia de raiva do meu pai, que largou a gente sem olhar pra trás.
Minha irmã mais nova cresceu sem referência de homem em casa, só com a força da minha mãe. Eu, como irmão mais velho, sempre tentei segurar a barra, mas não foi fácil. Moleque sem pai, sem dinheiro, a rua vira escola. Eu não nasci pra isso aqui, ninguém nasce. Mas a vida empurra.
Primeiro dia na gerência. Parece só mais uma manhã no morro, mas pra mim era diferente. O rádio na cintura pesava mais do que nunca, o caderno de anotações parecia chumbo dentro da mochila. Eu sabia: agora não era só contar dinheiro ou mandar recado, era responder por tudo. Se desse certo, era comigo. Se desse errado, também.
A boca já estava no pique. Vapores espalhados, movimento crescendo com o sol esquentando. Cumprimentei cada um, firme, sem arrogância. Eles me olhavam diferente agora, não como mais um parceiro do corre, mas como quem ia dar a palavra final.
— Fala, Liso… é hoje, né? — um dos vapores comentou, meio brincando, meio sério.
— É hoje e daqui pra frente. — respondi seco, mostrando que estava levando a sério.
Enquanto conferia o primeiro pacote de notas, minha mente voou pro passado.
Meus pais se separaram cedo. Minha mãe fazia faxina o dia inteiro, voltava quebrada, e mesmo assim tentava pôr comida na mesa. Meu pai? Sumiu, nem notícia. A gente morava num barraco pequeno, dividido entre eu, minha mãe e minha irmã mais nova. Quando ela adoeceu, os remédios eram caros. Minha mãe se matou pra comprar, mas tinha vez que não dava.
Eu comecei vendendo bala no sinal, depois ajudando a descarregar caminhão. Dinheiro honesto, mas nunca era suficiente. A primeira vez que pisei numa boca foi só pra entregar um recado, levar uma sacola. O dinheiro que pingou na minha mão naquela noite foi mais do que eu ganhava a semana inteira no sinal.
Eu sabia que era errado, mas quando vi minha irmã sorrir porque tinha arroz, feijão e até carne na mesa, entendi porque tanta gente escolhe esse caminho. Não é sobre querer ser bandido, é sobre não querer ver quem você ama passar fome.
De pouco em pouco, fui ficando. Primeiro vapor, depois responsável pelo dinheiro, ajudando a organizar. E agora, gerente. Olhei pros vapores ao meu redor e pensei: cada um tem sua história, mas a dor é sempre parecida.
A cada vez que eu puxava no caderno as anotações do corre, eu sentia o peso da responsabilidade. Não era só número, não era só nota emborrachada de tanto passar de mão em mão. Era a confiança que o Martelo e o Riba tinham depositado em mim. E confiança, no morro, vale mais que ouro.
Os meninos iam e vinham, entregando, voltando, me pedindo orientação. Uns mais jovens, ainda com cara de moleque, tentando bancar o homem. Outros calejados, que já tinham visto mais tiro do que aniversário. Eu sabia que precisava respeitar cada um, do jeito deles, e ao mesmo tempo mostrar firmeza.
— Liso, esse aqui vai pra cima ou guarda? — perguntou um vapor, abrindo a mochila com uns tabletes.
— Guarda. O movimento tá bom, mas a gente não se expõe sem necessidade. Segurança primeiro, sempre. — respondi.
Ele assentiu e foi cumprir minha ordem. Eu vi nos olhos deles que me mediam, testavam se eu realmente tinha peito pra segurar. E ali, naquela manhã, eu comecei a mostrar que tinha.
Mas por dentro… a verdade é que eu sentia medo. Medo de errar, medo de dar r**m e tudo cair na minha conta. Medo de decepcionar quem acreditou em mim. Ao mesmo tempo, era esse mesmo medo que me deixava ligado, esperto, sem baixar a guarda.
No meio da correria, olhei pro alto do morro e pensei na minha mãe. Ela nem imagina a vida que eu levo de verdade. Pra ela, eu sou só um moleque que “trabalha com entrega”. Minha irmã, então… nem se fala. Quando ela descobrir, sei que vai me odiar. Mas como explicar? Como dizer que se eu não tivesse entrado nesse caminho, talvez nem remédio ela tivesse tido quando estava doente? Não tinha outra solução, eu procurei emprego tanto no morro como no asfalto, mais já é difícil conseguir emprego quando só tem o ensino médio e quando você mora no morro se torna mais difícil ainda. E muita sorte quando alguem daqui conseguir um emprego digno que não seja uma exploração. Mais infelizmente essa e a realidade de muitos que entrou pro crime, e o motivo e sempre o mesmo não teve uma oportunidade.
Eu respiro fundo e volto pro presente. Aqui não tem espaço pra se perder em lembrança. No morro, distração custa caro.
Eu fechei o caderno, bati as mãos pra tirar o suor e encarei a rua estreita que descia a ladeira. Primeira manhã como gerente e eu ainda estava de pé.
E é assim que a vida segue: um dia de cada vez, uma decisão de cada vez. Eu não sei até onde essa estrada vai me levar, mas sei que, enquanto estiver aqui, vou fazer do meu jeito. Com calma, com cabeça, sem me perder.
Porque no fim, ser gerente não é só sobre controlar dinheiro e movimento. É sobre controlar a si mesmo.